O que pode o clínico advertido pela psicanálise? Reflexões sobre o tema

Patrícia Regina Guimarães
Mestre e Doutora em Ciências da Saúde
Médica do Hospital das Clínicas da UFMG
Professora do Departamento de Medicina da PUC-MINAS
E-mail: patrguimaraes@gmail.com

 

“Estou passando mal essa semana toda… sentindo muito cansaço”: Trata-se da fala de paciente do sexo feminino, adulta jovem, acompanhada em serviço de referência por doença crônica com comprometimento pulmonar importante. Apresenta limitações para as atividades cotidianas. Sem adesão ao tratamento. Violências diversas desde o primeiro mês de vida. Três filhos pequenos, o mais velho com seis anos. A queixa de cansaço, acompanhada por esforço respiratório, chega associada ao relato de cansaço de viver.

Assim como o “cansaço”, as queixas de dores, desconfortos e males diversos localizados no corpo levam pacientes à avaliação médica, buscando no organismo a sua origem, e a medicina apresenta um amplo arsenal de investigação desse corpo-organismo.

A semiologia médica é a disciplina que se ocupa de paramentar o médico com as perguntas certas, que conduzirão à identificação da doença. As várias manobras executadas no corpo, assim como os instrumentos médicos que amplificam seus sentidos, como o estetoscópio, levam à localização da patologia, da alteração. E há um aparato tecnológico diversificado que permite determinar a alteração, mesmo que microscópica. “Os elementos que o médico utiliza para o diagnóstico são o exame clínico e os exames complementares. O exame clínico compreende a anamnese e o exame físico” (LÓPEZ, 1990, p. 5).

O “olhar clínico”, treinado por anos, pretende que as alterações e doenças se revelem ao clínico experiente. Mas a própria clínica e o médico já experimentam o declínio desse poder a ele atribuído, do olhar que penetra o corpo e desvela o mal. Hoje, profissionais da educação, o Google, até os vizinhos fazem diagnósticos. A clínica cedeu lugar à tecnologia, que substitui o médico com maior precisão. E o mercado das medicações traz a promessa da cura e alívio.

Médicos e pacientes acreditam na consistência material do corpo, que pode ser palpado, auscultado, percutido, e em um mal-estar que possa ser localizado, circunscrito, diagnosticado e, com isso, curado. Considera-se, para a cura do corpo doente, os efeitos de substâncias sobre essa matéria. Todo o processo acontece quase à revelia do sujeito que habita esse corpo.

É certo que na medicina se admitem as particularidades – as doenças manifestando-se de maneira particular nos diferentes corpos. Mas a subjetividade, que se relaciona à forma como cada sujeito toma o adoecimento do seu corpo, ainda é um campo a ser explorado.

Em muitas situações, mesmo se empregando o recurso da tecnologia de ponta e exames sofisticados, não se encontra no corpo-organismo a alteração que justifique a queixa do paciente. Ou, se encontrada, seu tratamento não traz o alívio esperado. Outras vezes, as queixas orgânicas ancoram e delimitam no corpo um mal-estar muito mais difuso, insuportável e mortífero. Um nome (diagnóstico) para o que faz sofrer pode ser apaziguador – “eu sofro disso”.

Nesse contexto de crise da clínica e diante do paciente que fala da sua dor e do que o faz sofrer, localizando seu mal-estar no corpo-organismo, o que é possível para o médico advertido pela psicanálise?

O paciente chega à consulta apresentando seu corpo como sendo ele mesmo, portador de uma doença. Ele sente e localiza no corpo-organismo seu mal-estar e parece demandar uma resposta técnica que acabe com seu sofrimento. Por outro lado, o médico traz, da sua formação, a crença que esse corpo-organismo guarda uma doença em forma de mistério a ser descoberto. E acredita que o arsenal tecnológico será capaz de localizar, melhor que ele próprio ou que o próprio doente, o mal-estar. Assim, o profissional investe pouco na entrevista médica – que persegue a doença – e menos ainda no exame desse corpo. Pede exames que não cumprem a promessa de revelar o mal. As medicações são experimentadas tantas vezes sem nenhuma lógica amparada no raciocínio clínico. E seguem, médico e paciente, nesse desencontro que frustra a ambos.

Mas também é possível o encontro entre o médico e seu paciente e, a partir disso, a produção de algo. Através do vínculo, do desejo de saber (do médico) e da suposição de saber (do paciente no médico), pode-se operar uma escuta que vai além das queixas orgânicas, provocando no paciente a busca do seu mal-estar além do corpo. É nesse ponto da percepção de que “não se trata disso” – de uma doença orgânica – que se torna possível localizar na dimensão psíquica o desconforto e a elaboração possíveis.

Jacques Lacan (1966/2001), em seu textoO lugar da psicanálise na medicina”, traz contribuições importantes para a discussão. Ao diferenciar demanda de desejo, e a estrutura falha entre essas duas dimensões, Lacan (1966/2001, p. 11) chama a atenção para o que resta, o que fica fora, tão familiar aos médicos: “Permita-me assinalar como falha epistemo-somática o efeito que terá o progresso da ciência sobre a relação da medicina com o corpo”.

É necessária ao médico atenção ao que há para além daquilo que o paciente apresenta como demanda, imbuído do discurso poderoso da ciência e do direito à saúde. “Isto porque aquilo que é excluído da relação epistemo-somática é justamente o que o corpo em seu registro purificado vai propor à medicina” (LACAN, 1966/2001, p. 11). A dimensão do gozo aparece completamente excluída da relação epistemo-somática, fora do que pode saber a ciência.

Na prática médica, a perplexidade diante de adolescentes vivendo com doença crônica que não aderiam ao tratamento proposto, numa marcha em direção à morte, introduziu para esta autora um furo no saber médico e a busca de referencial que trouxesse alguma resposta. Freud (1920/1996), em “Além do princípio de prazer”, introduz para o médico uma dimensão importante – a pulsão de morte – para o manejo clínico de pacientes que não fazem a opção pela saúde. E Lacan (1966/2001, p. 12) aponta que “a direção ética é aquela que se estende em direção ao gozo”, indicando duas balizas: a demanda do doente e o gozo do corpo.

Ao médico atento ao inconsciente e à dimensão do gozo é possível, a partir da escuta do paciente, ocupar uma posição diferente daquela de quem demanda (o tratamento). Roberto Assis Ferreira discutiu, em 2013, em uma aula dada na Faculdade de Medicina da UFMG sobre a relação médico-paciente na adolescência, os lugares que o médico pode ocupar diante do paciente. Ele adverte para a importância de ocupar o lugar de quem não sabe, fazendo surgir, a partir do vínculo, o saber que está com o paciente (FERREIRA; CUNHA, 2014). Apresentou também, citando Miller (2012, p. 98), o “médico-passador”, que seria aquele que é capaz de sustentar uma escuta até que algo surja, localizando o sofrimento em outro campo, que não seja o orgânico, tornando possível uma transferência de cuidado que leve o paciente a um trabalho analítico com outro profissional.

Aqui outro ponto surge: a angústia do profissional diante dessa posição despretensiosa e modesta da escuta ativa. A discussão do caso com a equipe, ou melhor, a conversação, poderia ser um espaço de apoio para o profissional que se angustia. Mas esse dispositivo não é suficiente para dar conta de algo que toca o médico de forma singular, apontando para a própria análise, ou para a supervisão do caso, como uma possibilidade.

Diante dessa reflexão, uma direção possível para médicos e estudantes de medicina seria cuidar do corpo-organismo, que pode mesmo adoecer, mas estar atento ao que se apresenta de outra ordem. O “médico-passador” poderia estar ao lado – que é da posição clínica –, nesse percurso do paciente na direção do seu tratamento em outro campo profissional.

Também seria possível tomar a psicanálise como a última flor da medicina, seguindo na direção que Lacan (1966/2001, p. 14) aponta: “Se o médico deve continuar a ser alguma coisa que não a herança da sua função antiga, que era uma função sagrada, é a meu ver, prosseguir e manter em sua própria vida a descoberta de Freud”.

 

 

Referências
FERREIRA, R. A.; CUNHA, C. F. Relação médico-paciente na adolescência. Revista Médica de Minas Gerais. n. 24, p. S80-S86, 2014.
FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. (Trabalho original publicado em 1963).
FREUD, S. Além do princípio do prazer. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XVII, 1996. (Trabalho original publicado em 1920).
LACAN, J. O lugar da psicanálise na medicina. Opção Lacaniana, n. 32, p. 8-14, dez. 2001. (Trabalho original publicado em 1966).
LÓPEZ, M. Introdução ao diagnóstico clínico. In: LÓPEZ, M.; MEDEIROS, J. L. (Orgs.). Semiologia Médica: as bases do diagnóstico clínico. 3. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Livraria Atheneu Editora; Belo Horizonte: Livraria Interminas, 1990. p. 3-19.
MILLER, J.-A. Embrollos del cuerpo. Buenos Aires: Paidós, 2012.



O ENIGMA DO FEMININO E AS MÁSCARAS EM PERSONA

 Mariah Casséte
Doutora em Teoria Política (UFMG)
Aluna do Curso de Psicanálise do IPSM-MG
E-mail: mariahlqc@gmail.com

 

A posição feminina sempre impulsionou a psicanálise. O que é ser mulher? O que quer a mulher? Essas questões estruturam o campo psicanalítico desde que Freud tomou as histéricas como inspiração. No texto “Sobre a Sexualidade Feminina” (1931/1996, p. 204), ele destaca o mistério do desenvolvimento feminino, mencionando uma fase pré-edípica “remota, penumbrosa, quase impossível de ser revivida”. A castração feminina resulta de um processo prolongado, marcado por uma ligação profunda com a mãe. A ausência do falo posiciona a mulher no “não ter”, gerando uma angústia intrínseca que a confronta com um real indizível.

Nessa experiência singular de encontro com a castração, a referência fálica é insuficiente no continente feminino: há um “gozo do corpo, que é […] para além do Falo”. (LACAN, 1972-73/2022, p. 100, grifo nosso). Se há algo do gozo feminino que escapa ao simbólico, seria possível dizer que as mulheres seriam mais amigas do real? Essa é a questão colocada por J.-A. Miller (2010a, p. 2), sugerindo que, na lógica imaginária do falo, o feminino sempre representará o Outro absoluto – o “mistério absoluto fora do falo” – a quem não se imputa uma consistência definível. Essa falta de substância impulsiona uma busca incessante por identificações que preencham o vazio. A histérica, ao se perguntar sobre o desejo dos homens por outras mulheres, tenta apaziguar a angústia da inconsistência, como se as outras guardassem o segredo do feminino. Marie-Héne Brousse (PASSELANDE, 2012) afirma que essa busca ainda está no campo fálico, na tentativa de encontrar um Nome que defina seu lugar e sentido.

O vazio da posição feminina pode ser deslocado do “ter” para o “ser”, trabalhando com a falta e “fabricando um ser com o nada” (MILLER, 2021, p. 5). A relação entre mulheres e semblantes torna-se então um tema central na psicanálise. Apesar de os semblantes serem fundamentais para o laço humano, as mulheres se destacam pela “enorme liberdade com o semblante” (LACAN, 1971/2009, p. 34). O homem usa semblantes para proteger seu “pequeno ter”, já o semblante feminino é a máscara da falta. No jogo das aparências, as mulheres se aproximam mais do real, usando máscaras para sugerir algo que, na verdade, não existe. Encarna-se o falo para mostrar o que não se tem. O problema é que a falta de substância apavora, levando as mulheres, muitas vezes, a relações de devastação. Há, portanto, uma ambivalência estruturante no feminino e sua relação com as máscaras: seriam insígnias ou fetiches? Como questiona M.-H. Brousse, teriam algo a dizer sobre um ideal do feminino ou servem como suportes para esconder o que não se sabe e nem se suporta? (PASSELANDE, 2012).

Freud nos convida a buscar na experiência, na ciência ou na arte meios de avançar sobre o “enigma da feminilidade”. Vejo no filme Persona, de 1966, de Ingmar Bergman (2006), uma excelente fonte para essa busca, ao apresentar a interação entre uma atriz que se absteve da fala e uma enfermeira que usa a fala como investigação. As duas se isolam em uma casa à beira-mar, onde desenvolvem uma relação ambivalente de distância e complementaridade. O olhar, a voz, os semblantes, assim como gozo e devastação, são temas centrais dessa obra visualmente poética e clássica expressão do enigma do feminino.

Prólogo

No prólogo de Persona, Bergman estabelece o tom misterioso da narrativa. Em um clima onírico e sombrio, cenas fragmentadas surgem na tela, culminando em duas faces femininas, projetadas como sombras. As protagonistas são observadas por um menino que, atraído, as toca curiosamente. Quem seriam essas figuras enigmáticas? Parecidas, mas únicas. O que essas faces (ou máscaras?) ocultam em seu mistério?

Seria a sequência do prólogo uma metáfora do próprio cinema? Janela para nossas inquietações mais profundas. A partir do início da narrativa propriamente dita, o espectador se tornará – assim como o próprio diretor – testemunha e observador da jornada dessas duas mulheres. O cinema, portanto, é apresentado como reflexo do Outro e como reflexo da alma. Alma, aliás, é o nome de uma das protagonistas que dirige incessantemente seus questionamentos a uma outra mulher, Elisabeth, que, em sua visão, deveria portar as respostas que tanto demanda.

Ambas parecem ocupar lugares diferentes na relação estabelecida. Em um primeiro momento, é possível inclusive separá-las em polos distintos: a fala e o silêncio; a iniciativa e a passividade; a expectativa e a desesperança; a enfermeira e a paciente. No entanto, gradativamente, a narrativa entrelaça os polos aparentemente opostos em um sem limite, de modo que se perde quaisquer certezas sobre quem de fato ocupa cada posição ou imagem do corpo, demarcadas por um tênue litoral.

A atriz

Elisabeth, uma famosa atriz de teatro e cinema, encontra-se, no início da trama, internada como paciente em um hospital. Não se sabe o diagnóstico de seu “problema”, apenas se revela que abdicou da fala. Em um momento em que atuava no palco, é tomada por uma paralisia que retira de si a vontade de continuar representando suas personagens, ou mesmo de representar a si mesma na vida, fora dos palcos. A partir de então, emudece, abdica de seu papel de atriz, esposa e mãe e, assim, é internada. A enfermeira designada para o caso é Alma, uma jovem mulher que fica deslumbrada na presença da atriz.

O ofício da atriz é também um campo que remete ao feminino. Afinal, que outro tipo de trabalho permite a participação tão ativa no jogo de máscaras que encobre o vazio? Essa intimidade com os personagens, essa capacidade de ser o que não se tem, certamente torna essas pessoas magnéticas aos que testemunham sua atuação. Chico Buarque (1983), nos versos da música Beatriz, expressa essa captura do outro promovida através do enigma da atuação:

Olha/ Será que ela é moça/ Será que ela é triste/ Será que é pintura/ O rosto da atriz/ Se ela dança no sétimo céu/ Se ela acredita que é outro país/ E se ela só decora o seu papel/ E se eu pudesse entrar na sua vida

Elisabeth torna-se um ímã para sua enfermeira. Guardaria a atriz respostas sobre o “ser mulher”? É ilusório pensar que o desejo produzido pelas máscaras levaria à descoberta de significantes que resolvem os mistérios da vida ou do feminino. M.-H. Brousse (2004) afirma que, quando exposto, o semblante se transforma em mentira, estalando sob os assaltos do real, desqualificando a fala. Talvez a paralisia no palco tenha sido um assalto do real para Elisabeth, que se cala diante da falta de sentido. O silêncio da atriz pode ser lido como uma encenação desse vazio que suas máscaras ocultam.

No desenrolar da narrativa, somos apresentados a momentos que apontam para a frustração de Elisabeth em sua função materna. Ela parece demonstrar uma dificuldade em assumir o papel de mãe com a mesma desenvoltura que desempenha os outros personagens nos palcos. Quando ainda está internada no hospital, chega a amassar uma fotografia de seu filho. Sua enfermeira Alma, já no final da trama, em um monólogo perturbador, como em uma interpretação selvagem, diz o que parece ser, de fato, o sentimento de sua paciente em relação a ser mãe: a repulsa dessa posição e o arrependimento dessa decisão. Ainda assim, em outros momentos, Elisabeth escreve a seu marido, demonstrando interesse no bem-estar de seu filho, alegando, ainda, sentir a falta dele. Em qual encruzilhada Elizabeth se encontra?

Tal ambivalência parece ser aspecto fundamental na abordagem da posição do feminino por J.-A. Miller (2010b, p. 6), segundo o qual encontra-se a mulher na “distância subjetiva da posição de mãe. Porque ser uma mãe […], é para uma mulher querer se fazer existir como A. Fazer-se existir como A mãe é se fazer existir como A mulher que tem”. Gabriela Grinbaum (2021) também expressa essa problemática, ao apontar que o feminino se localiza na disjunção entre o desejo da mãe e o desejo de ser mãe. Seu silêncio seria uma expressão da angústia perante o vazio de sentido que se vislumbra nessa posição?

A saída pela identificação materna não é suficiente para aplacar a inquietude de Elisabeth em relação ao feminino. A atriz permanece perdida e emudecida perante o enigma de seu lugar no mundo. Sua enfermeira Alma, parece também estar perdida perante esse mesmo mistério. No entanto, o caminho escolhido por ela – embora também esteja situado no campo fálico – é de outra ordem. Em vez do silêncio, a verborragia. Em vez da maternidade, a identificação com a Outra.

A histérica

Como indica Lacan (1971/2009, p. 118), “nada comunica menos de si do que um dado sujeito que, no final das contas, não esconde nada”.

Alma é a enfermeira da atriz e, ao contrário de sua paciente, ela se desnuda a todo instante. Fala sobre si, seus projetos de futuro, sua vida atual, seus amores, seu passado e suas experiências. O fato de Elisabeth permanecer em silêncio parece, inicialmente, causar em Alma o desejo de continuar falando, incessantemente. Vez ou outra, deixa escapar – como lapsos – momentos de incerteza ou fissuras pelas quais o vazio pode ser espiado: seja em seu olhar, numa gargalhada ou em lágrimas inesperadas. Em certos momentos, ainda que de forma caricata, é nítida a dinâmica analista/analisando que parece se instaurar entre as duas mulheres.

Em uma das cenas iniciais, Alma fala a si mesma: seus planos de casar-se, tornar-se mãe e “ser aquilo que se espera de uma mulher”. Entretanto, ao se expressar, fica claro um momento de dúvida, como se tal projeto de vida não fosse aquilo que de fato ela deseja seguir, ou como se não fosse o suficiente. O ser mulher – tal como se constitui nas expectativas do Outro – vacila na subjetividade da personagem. Há, assim, um desespero latente nas palavras de Alma, que não consegue lidar com essa sensação de vazio que a domina. É como se estivesse perdida e procurasse a máscara para tapar a falta que insiste em aparecer. Sua busca, então, dirige-se àquela outra mulher a quem considera portadora dos segredos do feminino. A atriz, que é sua paciente, exerce um encantamento sobre a enfermeira, que lhe dirige todas as angústias e experiências, em busca de uma identificação que lhe confira alguma substância e apaziguamento, como se essa outra pudesse ter algo a revelar.

Na casa à beira do mar, pouco a pouco, Alma se espelha na atriz que, em um primeiro momento, torna-se seu objeto de amor e seu modelo. As roupas vestidas, os gestos e até a forma de usar seu cabelo parece se aproximar gradativamente aos modos de Elisabeth. Essa transformação é narrada de forma belíssima pela fotografia de Sven Nykvist, que expressa a dinâmica especular estabelecida entre as duas personagens.

A dinâmica entre ambas pode ser vista como uma encenação do discurso histérico, pelo qual Alma tenta revelar a verdade do desejo da outra, questionando sua própria identidade. Sua posição histérica se manifesta tanto na angústia frente ao silêncio de Elisabeth, quanto na oscilação entre identificação e rejeição em relação àquela que ela cuida, revelando um discurso que procura incessantemente um saber que nunca será pleno. Assim, a enfermeira mantém uma relação ambivalente com seu objeto de amor, caracterizada por um duplo movimento de destituição (ao apontar a falta na outra) e de devoção (ao atribuir a essa outra um infalível referencial identificatório). Essa forma de lidar com a falta pode, no entanto, reverter em devastação, quando ela sente não ser mais amada.

A precariedade da identificação revela a fragilidade da busca de Alma. Ao ler escondida uma carta de Elisabeth para seu marido, Alma se sente exposta e traída pelas impressões negativas da atriz. A devoção então se transforma em agressividade. A atriz, antes vista como espelho, ou por causa dessa relação especular, agora se torna alvo das frustrações de Alma, que continua a enfrentar o vazio que rompe suas máscaras.

A “outra para si mesma”

Elisabeth e Alma, duas mulheres que investigam em si e na outra aquilo a que suas faltas não são capazes de responder. O manejo de seus semblantes vacila sob as investidas do real. Essa ausência de um termo para dizer A Mulher deixa indeterminada uma identificação especificamente feminina. Uma jornada de perdas: perde-se a identidade, o nome, as máscaras, no caminho em direção ao gozo que lhe é próprio – que Lacan denomina de o “Outro gozo” e que Dominique Miller (2021, p. 7) expressa como uma “estranheza que as carrega”.

Não há caminhos definidos para abordar o feminino, mas Persona pode contribuir para o que está justamente nesse inescapável (des)encontro entre as duas protagonistas e na impossibilidade da identificação com a Outra. A cada tentativa de fusão, uma quebra. A cada palavra, uma falta de sentido. O desafio enfrentado é, portanto, o reconhecimento dessa Outra que existe em si mesma, desse gozo estrangeiro inominável, mas que, ainda assim, é constitutivo do ser. Alma e Atriz permanecem nessa dualidade entrelaçada, assim como cada mulher, uma a uma, tem de se haver com a falta no Outro – S(Ⱥ). A mulher experimenta um tipo de alteridade ou diferença em relação a si mesma, uma espécie de opacidade interna, porque o gozo feminino não é completamente acessível ao saber ou à consciência.

A beleza de Persona é conseguir construir na tela um universo entre as protagonistas que escapa às palavras, mas que invade, transborda e devasta para além daquilo que a linguagem pode significar. Ao longo das décadas, muitos ousaram decifrar o mistério de Persona, apresentando teorias para explicar a natureza da relação entre as duas mulheres, suas angústias e destinos. Porém, prefiro destacar a interpretação de Susan Sontag (1987), que não busca decifrar, mas, sim, abraçar a potência dessa dualidade entre máscara e pessoa, discurso e silêncio, alma e performance.

 

Referências
BEATRIZ. [Compositor e intérprete]: Chico Buarque e Edu Lobo. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 1983.
BROUSSE, M.-H. Uma dificuldade na análise das mulheres: a devastação da relação com a mãe. Latusa – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 9, p. 203-218
FREUD, S. Sexualidade feminina. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XXI, 1996, p. 239-254.  (Trabalho original publicado em 1931).    
GRINBAUM, G. Una mujer sin maquillaje. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2021.
LACAN, J. O Seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. (Trabalho original proferido em 1971).
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2022. (Trabalho original proferido em 1972-73).
MILLER, D. As duas margens da feminilidade. In: ANTELO, Marcela; GURGEL, Iordan (org.). O feminino infamiliar: dizer o indizível. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, 2021. p. 251-261. 
MILLER, J.-A. Mulheres e semblantes I. Opção Lacaniana Online Nova Série, ano 1, n. 1, mar. 2010a. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_1/mulheres_e_semblantes_i.pdf. Acesso em: 24 nov. 2024.
MILLER, J.-A. Mulheres e semblantes II. Opção Lacaniana Online Nova Série, ano 1, n. 1, mar. 2010b. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_1/mulheres_e_semblantes_ii.pdf. Acesso em: 24 nov. 2024.
PASSELANDE, A. O que é uma mulher? Entrevista com Marie-Hélène Brousse. Latusa Digital, ano 9, n. 49, p. 1-39, 2012.
PERSONA. Direção: Ingmar Bergman. Produção: Ingmar Bergman. Suécia: Versátil Home Video, 2006. 1 DVD.
SONTAG, S. A vontade radical. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda., 1987.



Corpos e discursos: as respostas das crianças

Mônica Campos Silva
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
E-mail: monicamposilva@hotmail.com

 

“Um cristal significante é uma formação do inconsciente feita de um número limitado de significantes, do qual a criança explora todas as permutações possíveis.” (MILLER, 2012, p. 5)

A 30ª conversação da Seção Clínica do IPSM-MG, ocorrida no 2º semestre de 2024, tratou das respostas das crianças frente aos discursos. Com a participação de Lúcia Melo, Margaret Couto, Frederico Feu e Márcia Rosa, abordou a articulação do saber, do gozo e da palavra da criança frente aos discursos que a constituem.

Segundo Miller (2012, p. 6), a criança é por excelência o sujeito entregue ao discurso do mestre pelo viés do saber. O mestre trata “sempre de reduzir, de comprimir, de dominar, de manipular o gozo daquele que chamamos uma criança, para dela extrair um sujeito digno desse nome, quer dizer um sujeito ‘assujeitado’”.  Nesse sentido, é importante delinear a estrutura do discurso do mestre contemporâneo e, a partir desse ponto, investigar de que modo os corpos são aprisionados, ou seja, como são constituídos e responsivos aos significantes mestres da época.

A criança tem o seu saber sobre os segredos de família, sobre o desejo dos pais – sendo deste o sintoma –, e “não se enganam sobre o caráter de semblante dos saberes que se lhes impõe”, de tal modo que “O saber da criança é um saber autêntico, que ele seja sabido ou não sabido, e é como tal que ele se inscreve no discurso analítico” (MILLER, 2012, p. 8). Assim, a criança como objeto resulta em variações diversas do abandono simbólico, associadas ao lugar estranho, à dimensão real da família, trabalho clínico paradoxal que se serve do recurso ao apaziguamento promovido pelas ficções (MELLO, 2024).

Observamos como os diagnósticos, realizados por vários profissionais e instituições, se tornaram o modo de apresentar as crianças que chegam nos consultórios. Situações em que a singularidade, as diferenças, são nomeadas, categorizando a criança. É preciso considerar também nesse contexto a aceitação e o interesse familiar por diagnósticos de transtornos, pelo fato de a criança poder ser “favorecida” com benefícios governamentais.

No que se refere à psicanálise, a verdade que a criança traz não é um mal, mas um sintoma, sua subjetividade, sua posição objetalizada, podendo inventar diante das vicissitudes de sua existência, sendo que, muitas vezes, um pouco de simbólico pode auxiliar a deslocar o sujeito do real que o aprisiona, salvando um certo lugar, experimentando, entretanto, sem ser engolido.

Nos dois casos apresentados na referida conversação da Seção Clínica, vemos os efeitos para a criança do encontro com um psicanalista. Seguindo Miller (2012, p. 9),

no discurso analítico, o saber da criança é respeitado. A criança entra no discurso analítico como um ser de saber e não somente como um ser de gozo. […] Primeiro porque acolhemos na psicanálise sujeitos traumatizados pelo saber do Outro, por seu desejo e por seu gozo os quais, saber, desejo e gozo do Outro tomaram, para certas crianças, valor de real.

Então, trata-se de levar as crianças “ao Outro que não existe” (MILLER, 2012, p. 9), considerando, com Lacan, que o sujeito está sempre não entre, mas hiante (LACAN, 1971-72/2012, p. 222). Essa é a porta aberta, a brecha que a psicanálise pode introduzir na clínica. A criança será escutada, sua palavra tem valor, mas não pesará sobre ela o gozo, a transgressão do Outro.

Por essa via, em uma análise, a criança poderá apresentar o drama familiar em sua dimensão real por convocar o sujeito na construção de soluções diante dos discursos que a constituem. O sintoma e as histórias que ela traz comportam invenções para tratar o mal-entendido que precedeu sua vinda ao mundo, o desamparo, o traumatismo da linguagem, a construção de uma fantasia, os objetos fragmentados do seu gozo, podendo dizer respeito ao pai ou à própria sexualidade.

De toda forma, o analista está do lado do sujeito e buscará levar a criança “a jogar a sua partida com as cartas que lhe foram distribuídas” (MILLER, 2012, p. 9), evitando o tamponamento do intervalo, da hiância, e, consequentemente, permitindo a interpretação do próprio sujeito e as articulações daquilo que é dito, não do dizer (LACAN, 1971-72/2012, p. 224), da enunciação, não do enunciado. Por tal ação, podemos dizer que “a sessão analítica é um lapso de tempo absolutamente especial, em que o sujeito é levado a fazer a experiência pura da reversão temporal […] que determina a significação do inconsciente” (MILLER, 2000, p. 49).

Através dos casos discutidos, percebemos que a análise de uma criança permite a experiência de um trabalho com o trauma da linguagem em seu avesso, sobre como se conectar e separar, talvez vislumbrando o que não tem relação. Ou seja, no tratamento de uma criança, é preciso dar a ela a chance de uma possível construção de seu próprio fantasma. 

No caso clínico apresentado por Margaret Couto, podemos extrair a pergunta sobre as soluções de cada sujeito ao se deparar com o impossível de simbolizar. Aqui o recurso ao duplo é oferecido como manifestação sintomática, sendo necessário diferenciar seu uso na psicose e no autismo:

diferentemente do que ocorre na psicose, o duplo autístico não é fundamentalmente persecutório. Ao contrário, em sua função de borda, o sujeito encontra nele um elemento próprio para apaziguar os seus transtornos. No autismo esse duplo está no real e não se constitui como um objeto estranho e maléfico. É um objeto familiar, que pode ser controlado ou considerado como um amigo do qual o sujeito pode se utilizar para tratar o gozo pulsional, assegurar algum controle ao seu mundo e permitir uma enunciação. Por outro lado, os esquizofrênicos nem sempre conservam a capacidade de se distanciar de seus duplos. Eles acabam por se tornarem persecutórios e perdem sua função pacificadora. (COUTO, 2024)

Margaret indaga, ainda, como diferenciar o que seria da ordem de uma fantasia infantil e de um delírio? Segundo ela, no último ensino de Lacan, com suas formulações sobre a inexistência do Outro e sobre a foraclusão generalizada é possível reler os fenômenos alucinatórios e do delírio, indicando que todos deliram. Contudo, é necessário distinguir, na condução de um caso, o que seria da ordem de uma foraclusão generalizada, posta para todo ser falante, e de uma foraclusão específica, restrita aos sujeitos psicóticos. Isso permite ao analista operar de boa maneira com uma construção delirante.

O psicanalista segue o sujeito delirante e faz vacilar suas convicções sem retirar-lhe o delírio por completo, porém retirando a consistência do Outro. Não se trata, portanto, de um analista guardião da realidade, mas sim um analista que possa seguir o paciente na construção de sua defesa diante do Real. (MILLER, 2015)

Em seu comentário, Frederico Feu nos lembra, com Freud, que “o inconsciente é o infantil”, lugar em que se sedimentam e se cristalizam as vivências, percepções, enigmas e traumas da criança. São esses restos e fragmentos solidificados, conforme a metáfora freudiana de uma arqueologia do inconsciente, que a fala analisante depositará em filigranas a cada sessão analítica e que alimentam a construção dessa infância perdida.

Em seu comentário, Márcia Rosa indica que os corpos são subordinados ao discurso, porque os corpos também têm discurso. O significante entra no corpo, mesmo sendo incorporal, ou seja, temos o efeito corporal do significante, seus efeitos de gozo.

Para Frederico Feu, os casos apresentados nessa Seção Clínica do IPSM-MG são como massa de argila sendo moldada. Como ocorre com o pequeno Hans, ou com o neto de Freud e o seu jogo de fort-da, a cerâmica se quebrará e dela não restará memória que não sejam vestígios da infância, como peças avulsas e peças que faltam no mosaico da construção analítica.

Se, para a criança, há um inconsciente a trabalho, é aí que o desafio de construir um apoio para o corpo e para o Eu que seja menos atrelado ao objeto do fantasma materno e ao duplo caracteriza o trabalho analítico. 

Para concluir, observamos, contemporaneamente, de um lado, o mestre em sua tentativa de fazer valer o universal, com tudo que este é capaz, valendo-se do DSM – que tenta salvar o universal da saúde mental e dos comportamentos –, e, de outro lado, temos a criança, que com seu sintoma faz vacilar cada passo do diagnóstico.

A criança, no discurso analítico, é o grande interpretador. Ela é o sujeito analisando que pergunta “onde estou no dizer?” (LACAN, 1971-72/2012, p. 225), construindo, para essa questão, várias possibilidades, sem deixar que as conclusões se solidifiquem. A criança em análise coloca o real em jogo, não deixando que o discurso do mestre o tampone, sustentando o lugar para a presença do sujeito na criança, suas ficções, seus impasses e suas invenções. É nessa vertente que podemos dizer: quando a criança pode fracassar em sua certeza, o sujeito advirá.

Se, para Lacan, o sintoma da criança se encontra na situação de responder por aquilo que há de sintomas na estrutura familiar, definindo-se como representante da verdade do casal parental, o que constatamos é que a criança revela o gozo.  Então, qual o lugar para a palavra da criança?

Constatamos que o mestre contemporâneo tende a dispensar a interpretação. E, nos casos que se apresentam, faz-se necessário dar lugar ao que fala além do que se diz. Um espaço que permita à criança uma saída do lugar de objeto que ocupa. A psicanálise nos salva de acreditar que aquilo que digo é uma verdade, havendo em cada sujeito uma diferença entre aquilo que se diz e aquilo que se é.

 

Referências
COUTO, M. P. Michael e seu trabalho de produzir uma defesa diante do real. 2024. (Trabalho inédito).
LACAN, J. O Seminário, livro 19: …ou pior. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de Vera Ribeiro; versão final de Marcus André Vieira; preparação de texto de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012. (Trabalho original proferido em 1971-72).
MELLO, L. M. L. O pequeno vampiro. 2024. (Trabalho inédito).
MILLER, J.-A. A erótica do tempo. Rio de Janeiro: Latusa, 2000.
MILLER, J.A. A criança e o saber. CIEN-Digital, n. 11, jan. 2012. Disponível em: https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2018/11/CIEN-Digital11.pdf. Acesso em: 01 out. 2024.
MILLER, J.-A. Todo el mundo es loco. Los cursos psicoanaliticos de Jaques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2015.



O ENCONTRO COM O SIGNIFICANTE MARCA O CORPO

Ilka Franco Ferrari
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
E-mail: ilkafferrari@gmail.com

 

O marco para a abordagem deste tema foi encontrado no que Lacan apresentou no Seminário Mais, ainda (1972-73/1985) e no que Miller (2016) ajudou a elucidar, ou seja, o mistério da união da fala com o corpo.

Tal mistério esbarrou em outro, que Lacan nos fez ouvir, ou seja, o impenetrável da essência do fenômeno da vida. Na impossibilidade de definir o que é a vida, ele se perguntou o que ela quer, ofertando a resposta de que ela quer durar, não acabar, se transmitir. Considerou-a muda, impossibilitando que se saiba o que é estar vivo, mas nela deixando falar o saber de que, na existência, corpos vivos e gozosos (LACAN, 1972-73/1985, p. 35), mortificados e vivificados pela entrada do significante nesse circuito.

A primeira tese de Lacan sobre o corpo o situa como imaginário, sendo que a imagem no espelho, sua forma, o distingue do organismo. No paradigma clínico inaugurado com o nó borromeano, orientado pelo sinthome, o corpo se estabeleceu no campo do gozo e, a partir daí, Miller destaca o imaginário como o próprio corpo, para gozar ou não. Mas relembra: “é no corpo imaginário que as palavras da língua fazem entrar as representações que nos constituem um mundo ilusório sob o modelo da unidade do corpo” (MILLER, 2016, p. 23). O corpo simbólico então constituído outorga ao corpo imaginário sua unidade.

Di Ciaccia se pergunta de qual corpo se trata nesse momento da orientação lacaniana. A partir de orientações millerianas, ele afirma: “corpo que Aristóteles propõe como base da definição de indivíduo, aquele corpo que ‘se mantém como uno’’’ (DI CIACCIA, 2016, p. 75), apresentado por Lacan no Seminário 20. No empenho de uma definição, Di Ciaccia (2016, p. 75) escreve: “Um corpo é alguma coisa que se goza – substância gozante, portanto, que se revela no indivíduo falante, por meio do acontecimento de corpo, singular para cada um, que é o sinthoma”. A palavra “singular” não pode deixar de ser aqui considerada. Ela ressalta o momento teórico em que de fato se distanciou de concepções universalistas, cuidando da vida como o real de uma ex-sistência individual.

Da carne ao corpo

No “corpo vivo” – não simbólico, ou imaginário –, que goza de si, consequentemente acontece o afetamento do gozo advindo do que Lacan (1972-73/1985) denominou lalíngua, ou seja, através da palavra antes de seu ordenamento gramatical. Materialidade sonora do significante, anterior à linguagem, se encaixando nesse corpo vibração que “serve para falar”, distinto do “corpo fala” proposto pela psicologia. O vivente traz em si possibilidades de eventos, de acontecimentos de corpo, a partir das ressonâncias da linguagem materna, ecos dos sons maternos “afetando cada sujeito de maneira diferente, como o tom, o ritmo, a maneira, o estilo de falar” (RAMIREZ, 2024). Momento estrutural em que acontece o encontro entre o corpo como vivente e lalíngua, em troumatisme que esburaca (trou) o corpo, carne tatuada pelo verbo antes que ele se estruture em linguagem. A esse primeiro trauma, posteriormente somam-se outros na vida de cada qual.

De acordo com Miller (2003), Lacan (1964/1988), no Seminário 11, utiliza de forma exemplar a palavra “carne”, possivelmente influenciado por Merleau-Ponty. Nela, haverá a marca do signo linguístico, em evento que separa carne e corpo, com o simbólico tomando o corpo. E o mistério apresentado na união da fala com o corpo, corpo agora fato de experiência, se esclarece com o registro do real, em intervenção que destaca a presença de um traço transformado em significante, mas apagado. Afirmou Lacan (1962-63/2005, p. 73): “O significante, disse-lhes eu a certa altura, é um traço, porém um traço apagado”. Referência à noção de traço unário, anterior ao sujeito e introduzido no real, primeiro significante, entalhe com o qual se marca, se tatua, na relação do sujeito com o Outro. Assim, o sujeito se constitui, na exigência de busca do objeto perdido, de um não sabido original, e na construção de rastros falsos para encontrá-lo. Nas palavras de Lacan (1962-63/2005, p. 75), “Quando um traço é feito para ser tomado por um falso traço, sabemos que há aí um sujeito falante, sabemos que há aí um sujeito como causa”.

O sujeito, ali onde nasce, portanto, se dirige à “racionalidade do Outro”, não tendo outro alcance senão o de posicionar-se no lugar do Outro numa cadeia significante. Em sua vida invadida pela mortificação de significantes que falam entre si sem signo de presença de um ser, estala a morte em vida que, no entanto, assegura a sobrevida significante. Tal formalização levou Miller (2003) a ponderar que no estruturalismo lacaniano há co-pertencimento entre o simbólico e a morte, excluindo o gozo que supõe a vida biológica.

Mas chegou o momento em que a experiência analítica fez com que Lacan (1972-73/1985) ponderasse essa lógica do inconsciente que supõe o sujeito morto, ao considerar que o sujeito se produz no corpo. Apareceu, então, o que ele chamou de indivíduo afetado pelo inconsciente, pela língua que não se pode ler, palpitante e com o corpo vivo. Consequentemente, o significante não tem só efeito de significado, mas efeito de afeto – efeito do saber no corpo – perturbando, deixando marcas no corpo, agora substância gozante. O significante é causa do gozo e a via do inconsciente real se fortalece.

As investigações acerca dos enlaces e desenlaces entre corpo e linguagem prosseguiram, considerando que o real do inconsciente é o corpo falante. Agora, só há inconsciente no falasser entendido como o sujeito e seu corpo de gozo. Sujeito não mais na vertente do significante, mas “sujeito do gozo”, um ser falado e falante, com fala que lhe dá sentido. Ser que só o é por falar, mas, essencialmente, fala de seu gozo, que é a razão última de seus ditos (MILLER, 2011). Seu sentido de ser é presidir o ter, porque o falasser não é o corpo, mas o tem. Nas palavras de Lacan (1975-76/2007), ele é ser carnal devastado pelo verbo, pois o homem fala com seu corpo, é um corpo falante – expressão que surge no Seminário 20 –, falasser por natureza. Tal concepção não apaga o ensino sobre o inconsciente e sua relação com a linguagem, mas acentua valor à corporizarão da imagem que dá consistência ao ser que fala. A fala é o que lhe dá sentido e, por falar, é também falado.

O estudioso das formalizações lacanianas nota, portanto, que, a partir do Seminário 20, está presente o efeito corporal do significante, ou seja, não mais seu efeito semântico (significado), não mais seu efeito sujeito suposto saber, não mais seus efeitos de verdade, mas seus efeitos de gozo. Se, antes, a cadeia significante mortificava o corpo, localizando o gozo nos objetos mais de gozar, agora o significante é também causa de gozo. No último ensino, Lacan aproximou significação e satisfação, passando do conceito de linguagem para lalíngua, expressando que o significante não trabalha para a significação, mas para a satisfação, base do que se chamou sentido gozado. Esse entrelaçamento entre corpo e gozo, ao final de seu ensino, colocou Lacan novamente diante da questão da vida, e também da morte. Nesse momento, o real se sustenta no gozo do vivente, mas é também a morte, um impossível de se pensar e de representar no campo da vida.

A materialidade do significante, todavia, é motivo de equívocos no último ensino. Segundo Miller (2003), tudo indica que a última palavra de Lacan sobre o assunto sugere equivaler o significante ao semblante, em possível desdobramento do que aparece no Seminário 3. Melhor dizendo, se o significante como tal não significa nada, se na natureza ninguém se serve do significante para significar; no entanto ele está aí, e se não fosse por ele não encontraríamos nada na natureza. Ao manejarmos com os pequenos signos que trazemos pela vida, continua Miller, acontece a oportunidade da materialização do significante naquilo que ele sustenta, suportando o sentido. O corpo oferece sua matéria, sua realidade, ao significante. Consequentemente, ele pode tomar sua matéria do som e do corpo, como bem demonstra o sintoma histérico. O depoimento de Jorge Assef ilumina a questão.

Agarre-se forte!

Na riqueza do testemunho de Jorge Assef (2024), pode-se extrair alguns relatos que auxiliam essa transmissão. Ele conta, por exemplo, a pergunta direta que a analista lhe fez, no início de sua segunda análise, acerca de que seu corpo gozava, e sua resposta, sem hesitação, foi: de abraçar e de comer! Percorre a dramaticidade dos momentos de despedidas, os abraços em seus parceiros, familiares e amigos, a recordação dos choros na despedida do pai quando o deixava na escola, sua insaciável demanda de amor e uma cena traumática dentro de uma igreja, na qual, assustado, se agarra ao pai. Um sonho lhe trouxe, nesse contexto, importante constatação: “o ursinho carinhoso” com o qual se apresentava escondia o parasita “carrapato”, nome atribuído pelo inconsciente para as distintas facetas de seu sintoma. Modo de viver agarrado no outro para devorá-lo.

A lembrança de uma cena no parque de diversões, tal como conta, o fez encontrar o imperativo da voz materna gravada em fogo, no supereu. Quando o brinquedo ganhou velocidade, a mãe começou a gritar, insistentemente, “agarre-se forte!”. Precisaram pará-lo. Em outro momento, voltando do México após ouvir um testemunho de Passe em que se destacava o significante “soltar” e ainda comovido, em meio a uma zona de turbulência se recordou que sua mãe lhe havia dito, várias vezes, que ele quase nasceu em um avião e que costumava falar com este filho ainda no ventre. Ela fazia tratamento em outra cidade, depois de dez abortos espontâneos. Ao aterrissar, imediatamente buscou saber o que ela lhe dizia, e a resposta foi: “agarre-se forte!”. Impactado, buscou um lugar para se sentar. Ao relatar o ocorrido para analista, ela lhe disse: “Você encontrou a marca original!”.

Em sua experiência analítica, tal como comunica, a fórmula da fantasia se escreveu como “agarre-se no Outro”. A retroalimentação entre o “sintoma carrapato” e a fantasia delineava uma dinâmica pulsional ordenada pelo objeto oral, presente em um dos sonhos. Perfilaram-se as declinações agarrar-se, fazer-se agarrar, soltar-se, não se deixar agarrar, que podiam ser reconhecidas nas eleições que fazia ao longo da vida, inclusive a da analista. E não foi fácil deixá-la. Gozo e desejo se articularam no sinthoma “Garra” (extraído de garrapata, em espanhol, “garra-pata”), nome para seu ser de gozo, invenção singular que marca seu estilo de trabalho pela causa analítica.

 

Referências
ASSEF, J. Testemonio 1. Revista Lacaniana de Psicoanálisis, n. 30, 2024.
DI CIACCIA, A. Corpo falante/falasser. In: Scilicet: O corpo falante – Sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016. p. 73-75.
 LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. (Trabalho original proferido em 1964).
LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão final de Angelina Harari e preparação de texto de André Telles; tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1962-63).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
MILLER, J.-A. La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, 2003.
MILLER, J.-A. Sutilezas analíticas. Buenos Aires: Paidós, 2011.
MILLER, J.-A. O inconsciente e o corpo falante. In: Scilicet: O corpo falante – Sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016. p. 19-32.
RAMIREZ, M. E. Acontecimientos de cuerpo en una exguerrillera. Erèhtyc, p. 9-16, 2024.



Entrevista acerca da criação da Coleção Almanaque Impresso

Em dezembro de 2024, sob o selo do IPSM-MG, foi lançada uma linha de publicação impressa com o nome Coleção Almanaque Impresso. Não há dúvida de que essa iniciativa de ampliar a circulação de livros de psicanálise lacaniana em nossa comunidade é um acontecimento de grande relevância e repercussão.

Almanaque On-line, igualmente uma publicação do IPSM-MG, dá as boas-vindas à chegada de sua xará e gostaria de conhecê-la melhor. Apressamo-nos a fazer perguntas às duas responsáveis pela empreitada: Lilany Pacheco, Diretora Geral do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, e Luciana Silviano Brandão, organizadora da nova Coleção

Almanaque 34: Lilany, parafraseando Jacques-Alain Miller (1998, p. 3), que lança a questão “Por que o Instituto é necessário”, perguntamos-lhe: por que é necessária a nova Coleção Almanaque Impresso?

Lilany Pacheco: Essa coleção nasce do interesse em darmos testemunho da riqueza de nossas atividades, em especial das Lições Introdutórias que aconteceram durante o ano de 2024, com a temática das neuroses na contemporaneidade. Assim, brindamos o leitor com o trabalho primoroso de nossos colegas membros da Escola Brasileira de Psicanálise, que gentilmente aceitaram o convite para realizar a transmissão de cada tema atribuído e formalizá-la em um texto que a perenizasse.      

Almanaque 34: Luciana, os dois primeiros volumes da Coleção Almanaque Impresso foram lançados com o produto das Lições Introdutórias do ano de 2024 sobre Histeria e Obsessão, programa da Diretoria de Ensino do IPSM-MG. Poderia nos falar sobre essa escolha?

Luciana Silviano Brandão: A escolha desse tema se deu em razão de eu estar pessoalmente envolvida na coordenação das Lições Introdutórias, juntamente com Kátia Mariás e Lucia Melo. O tema das Lições foi escolhido no sentido de privilegiar o tema da 27ª Jornada da EBP-MG, instituição parceira na transmissão da psicanálise de orientação lacaniana no estado.

Almanaque 34:  Lilany, ainda no contexto das teses que Miller nos ensinou ao criar o Instituto do Campo Freudiano, a pesquisa, o trabalho teórico e a competência intelectual estão no âmbito do saber exposto, terreno próprio ao Instituto. Com a criação da Coleção Almanaque Impresso você estabelece, para as publicações da Almanaque, o binômio on-line e impresso. Gostaríamos de conhecer os fundamentos de sua decisão.

Lilany Pacheco: O fundamento principal que orienta o trabalho nos Institutos é a proposição de Miller “do instituto como aguilhão da Escola de Lacan”. Assim sendo, suas atividades, bem como suas publicações, visam expandir temas pinçados nas questões de Escola, para ampliarmos o seu alcance para todos aqueles que se interessam pela psicanálise lacaniana.      

Almanaque 34: Luciana, qual é a concepção da linha editorial da Coleção Almanaque Impresso?

Luciana Silviano Brandão: Nossa proposta é publicar textos recolhidos dos nossos Núcleos de Pesquisa, das Lições Introdutórias e das atividades realizadas no âmbito da Seção de Ensino, da Seção Clínica, das Conversações e das demais atividades realizadas no IPSM-MG.

Almanaque 34: Lilany, o projeto gráfico da publicação Almanaque On-line foi modificado recentemente. No entanto, continuarão sendo publicados nela os trabalhos que refletem a responsabilidade dos psicanalistas em sua prática clínica, a maneira como lidam com as dificuldades trazidas pelos efeitos das mudanças contemporâneas no laço social e a maneira como o Instituto oferece um lugar para aqueles que se interessam pela psicanálise.

Na Coleção Almanaque Impresso, qual será a política do Instituto em seu compromisso de tornar ainda mais abrangente o campo transferencial da comunidade em relação à psicanálise lacaniana?

Lilany Pacheco:  Saudamos a modificação recente da Almanaque On-line que, por sua natureza digital, tem mesmo um caráter mais expresso. Assim, pensamos que essas duas publicações do IPSM-MG se articulam borromeanemente para fazer jus ao Uno e ao Múltiplo que constituem as nossas atividades. 

Almanaque 34: Luciana, estamos curiosos para saber qual será a regularidade de lançamento dos livros da Coleção Almanaque Impresso e qual será o tema do próximo volume…

Luciana Silviano Brandão: A Coleção Almanaque Impresso terá periodicidade anual e a próxima publicação contemplará a produção dos Núcleos de Investigação e Pesquisa em Psicanálise que compõem a Seção Clínica do IPSM-MG.

Almanaque 34: Almanaque On-line deixa os sinceros agradecimentos pela entrevista!

 

Referência
MILLER, J-A. Tese sobre o Instituto no Campo Freudiano. Almanaque de Psicanálise e Saúde Mental, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, nov. 1998.

Capa, editorial e as demais fotografias que compõem  Almanaque 34  a partir desta rubrica,  foram gentilmente  cedidas por Tatiana Bicalho.Elas se encontram  em seu livro Poemas para Ascender, arte criativa que se apresenta como: “Isto não é um poema, mas isto também não é uma caixa de fósforo”  numa evocação a Magritte.  Apresentamos nossos mais sinceros agradecimentos à artista.
 
Tatiana Bicalho é fotógrafa, escritora e curiosa profissional em processos artísticos e não artísticos. Tem três livros de poesia publicados: Notícias Populares, pelo Selo Leme, da Editora Impressões de Minas, e Invenção a duas vozes, pela Editora Urutau e Poemas para Ascender, pela Impressões de Minas. Coordenou e lecionou para o curso de Português e suas literaturas na Universidade de Aswan, no Egito, por um período de 10 meses. Na mesma universidade, ajudou a criar a revista literária Flouka, com apoio da Embaixada do Brasil no Cairo.



A preocupação do pai de família

Franz Kafka

Alguns dizem que a palavra Odradek deriva do eslavo e com base nisso procuram demonstrar a formação dela. Outros por sua vez entendem que deriva do alemão, tendo sido apenas influenciada pelo eslavo. Mas a incerteza das duas interpretações permite concluir, sem dúvida com justiça, que nenhuma delas procede, sobretudo porque não se pode descobrir através de nenhuma um sentido para a palavra.

Naturalmente ninguém se ocuparia de estudos como esses se de fato não existisse um ser que se chama Odradek. À primeira vista ele tem o aspecto de um carretel de linha achatado e em forma de estrela, e com efeito parece também revestido de fios; de qualquer modo devem ser só pedaços de linha rebentados, velhos, atados uns aos outros, além de emaranhados e de tipo e cor os mais diversos. Não é, contudo apenas um carretel, pois do centro da estrela sai uma varetinha e nela se encaixa depois uma outra, em ângulo reto. Com a ajuda desta última vareta de um lado e de um dos raios da estrela do outro, o conjunto é capaz de permanecer em pé como se estivesse sobre duas pernas.

Alguém poderia ficar tentado a acreditar que essa construção teria tido anteriormente alguma forma útil e que agora ela está apenas quebrada. Mas não parece ser este o caso; pelo menos não se encontra nenhum indício nesse sentido; em parte alguma podem ser vistas emendas ou rupturas assinalando algo dessa natureza; o todo na verdade se apresenta sem sentido, mas completo à sua maneira. Aliás não é possível dizer nada mais preciso a esse respeito, já que Odradek é extraordinariamente móvel e não se deixa capturar.

Ele se detém alternadamente no sótão, na escadaria, nos corredores, no vestíbulo. Às vezes fica meses sem ser visto; com certeza mudou-se então para outras casas; depois porém volta infalivelmente à nossa casa. Às vezes, quando se sai pela porta e ele está inclinado sobre o corrimão logo embaixo, tem-se vontade de interpelá-lo. É natural que não se façam perguntas difíceis, mas sim que ele seja tratado – já o seu minúsculo tamanho induz a isso – como uma criança. “Como você se chama?” pergunta-se a ele. ”Odradek”, ele responde. “E onde você mora?” “Domicílio incerto”, diz e ri; mas é um riso como só se pode emitir sem pulmões. Soa talvez como o farfalhar de folhas caídas. Em geral com isso a conversa termina. Aliás mesmo essas respostas nem sempre podem ser obtidas; muitas vezes ele se conserva mudo por muito tempo como a madeira que parece ser.

Inutilmente eu me pergunto o que vai acontecer com ele. Será que pode morrer? Tudo o que morre teve antes uma espécie de meta, um tipo de atividade e nela se desgastou; não é assim com Odradek. Será então que a seu tempo ele ainda irá rolar escada abaixo diante dos pés dos meus filhos e dos filhos dos meus filhos, arrastando atrás de si os fios do carretel? Evidentemente ele não prejudica ninguém, mas a ideia de que ainda por cima ele deva me sobreviver me é quase dolorosa.

 

Esta tradução foi beneficiada tanto por soluções encontradas por Roberto Schwarz, quanto pela original interpretação que deu a este texto. V.O pai de família e outros estudos, Paz e Terra,1979, p.21 e ss.
KAFKA, F. A preocupação do pai de família. In: Um médico rural: pequenas narrativas. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. (Trabalho original redigido em 1914-17).
 
Agradecimentos:
  • Apresentamos nossos sinceros agradecimentos à Editora Companhia das Letras pela autorização de publicação do texto de Kafka “A preocupação do pai de família”, com tradução de Modesto Carone.
  • • Agradecemos a Ana Helena de Souza o empenho realizado junto à Companhia das Letras por tornar possível a cessão de direitos de tradução para esta publicação.



Renascer para a linguagem: de um exílio a outro1

François Ansermet[1]

 

“Onde você mora?

Na linguagem.

E não posso me calar.

Ao falar, eu me lanço

em uma ordem desconhecida,

estrangeira, e eu me torno

subitamente responsável por isso.”

(Jean-Luc Godard)

No começo, era o exílio. A criança vem ao mundo estrangeira a ela mesma e aos outros. O nascimento pode assim ser visto como um primeiro exílio.

A criança vem ao mundo inacabada, ela nasce marcada pela incompletude. Ela é mesmo o mais inacabado dos seres vivos, potencialmente submetida a uma angústia fundamental.

No começo, portanto, a separação e o exílio, o inacabado e a angústia. Sozinho, sem o outro, não há saída para o filhote do homem. O outro lhe é necessário – necessário à sua sobrevivência –, mas também para surgir em um mundo que já existe, que é também o mundo da linguagem que o precede.

A linguagem não tem somente uma função de representação ou de expressão; a linguagem é também esse operador que produz um sujeito, a cada vez diferente em seu modo de encontrá-la, de colocá-la em jogo, de modificá-la, de reinventá-la. Como diz Ferdinand de Saussure, cada locutor modifica o sistema da língua, se apropriando dela sempre de forma diferente, até modificar a própria língua.

Mas pode haver rupturas nesse processo, como a migração forçada ou mesmo escolhida. Será que todo exílio recoloca em jogo o exílio primeiro do nascimento?

A origem irrepresentável

O exílio coloca para cada um a questão de sua origem. Mas sabemos realmente o que é nossa origem? Percebemos a fragilidade dessa noção. A criança que vem ao mundo nos remete ao mistério de sua origem, às origens da origem.

Até onde se pode voltar quanto a origem? O que precedeu a criança é infinito: toda criança é de fato proveniente das contingências que precederam sua concepção. Ela poderia ter nascido em um outro tempo, em um outro lugar, de uma outra mulher, de um outro homem, de um outro óvulo, de um outro espermatozoide. Isso não impede que ela esteja aqui, não é mais possível que ela não esteja aqui, quaisquer que sejam o arbitrário e o irrepresentável de sua origem. A criança nos remete, assim, ao real (ANSERMET, 2003), no sentido de Lacan, mais do que ao originário, isto é, a algo impensável, mais do que à ideia de uma origem, ou mesmo de um começo. A origem não é o começo. O começo é localizável. Por outro lado, a origem é infinita quanto ao passado. Potencialmente sempre a se repetir. A origem estaria, portanto, por vir. O futuro anterior poderia ser visto como o tempo da origem, uma origem que pode ser tomada também no devir.[2]

Odradek

Em um extraordinário pequeno texto, “A preocupação do pai de família”, Kafka (1914-17/1994) coloca a questão da origem em sua dimensão enigmática, estrangeira, perturbadora. Trata-se de Odradek, nome dado a um estranho objeto que, desde sempre, mora na casa do pai de família: um perturbador carretel plano, em forma de estrela, feito de velhos pedaços de fios cortados, emaranhados, torcidos; ele fica como se estivesse sobre dois pés, sempre pronto a ressurgir. Odradek percorre a casa desde o sótão até a escada, ágil e impressionante:

É natural que não se façam perguntas difíceis, mas sim que ele seja tratado – já o seu minúsculo tamanho induz a isso – como uma criança. “Como você se chama?”, pergunta-se a ele. “Odradek”, ele responde. “E onde você mora?” “Domicílio incerto”, diz e ri […]. (KAFKA, 1914-17/1999, p. 45)

O pai se pergunta o que Odradek vai se tornar. Pode somente morrer? Tudo o que morre conheceu antes uma espécie de propósito, atravessou uma atividade que o desgastou. Não é o caso de Odradek. “Será então que a seu tempo ele ainda irá rolar escada abaixo diante dos pés dos meus filhos e dos filhos dos meus filhos, arrastando atrás de si os fios do carretel?”: é o que se pergunta o pai de família. Essa pergunta o preocupa no mais alto grau: “Evidentemente ele não prejudica ninguém, mas a ideia de que ainda por cima ele deva me sobreviver me é quase dolorosa” (KAFKA, 1914-17/1999, p. 45).

A origem de Odradek é inatingível. Odradek é uma eternidade fora da história, tornando vã toda perspectiva de anamnese. Tudo se concentra em um objeto, resto incongruente, enigmático, derrisório, sinal pontual e irredutível da presença de um passado, mas sobretudo também de um mais além. Esse objeto veio do passado? Ele é presente? Ou ele retorna do futuro? Produto de um tempo fora do tempo, como um resto, esse carretel, em sua corrida através da casa, prega uma peça na memória. Odradek é o que sobrevive a cada um, mesmo nas piores situações. É o que aponta o que ultrapassa cada um dos protagonistas: por que também não numa história de migração, de separação, de exílio, como as histórias vividas pelos refugiados?

Renascer para a linguagem

Tal como acontece com Odradek, o exílio projeta para fora do tempo, fora do laço social, fora da linguagem. A história do imigrante muda para o que ele pode viver como um vazio. Ele não consegue encontrar seus pontos de referência. Ele não representa mais para si sua situação, em um mundo do qual ele está desatado. Como se ele devesse repetir sua entrada no mundo: em um mundo diferente, no qual ele ainda não está.

A aposta para o imigrante é a de se fazer ouvir, de se fazer reconhecer. Será ele ouvido? Será ele reconhecido? Poderá ele repetir sua entrada nesse mundo desconhecido, estrangeiro? Seu acesso pode ser barrado pela dimensão traumática do exílio. Aqueles que vivenciam traumas maiores, extremos, testemunham o fato de que eles não sabem como falar. Eles estão projetados para fora da linguagem, para fora do mundo do Outro. A linguagem não os carrega mais, eles se sentem excluídos dela, como se devessem repetir sua entrada no mundo da linguagem. Poderá ele reatar com a linguagem? Ou será ele reenviado à sua solidão, a seu desamparo?

O filósofo Giorgio Agamben (2007), em Homo sacer, distingue dois regimes da vida: zoé, a vida nua, e bios, a vida tomada na linguagem, no mundo dos outros, tomada na sociedade. O refugiado deixou o mundo de sua origem, de sua cultura, de seus laços: ele é assim enviado ao estatuto da vida nua. Isso quer dizer também que ele saiu do mundo da lei. Ele perdeu todo estatuto. Como se as leis mais elementares não se aplicassem mais. Como se os direitos do homem desaparecessem com o exílio e a separação. Os países aos quais os refugiados afluem se apresentam sobrecarregados, eles dizem não saber mais o que fazer com eles – um modo a mais de rejeitar os exilados para estarem no registro do zoé, a não estarem mais em nenhum bios que lhes dê um lugar – ao risco de se encontrarem “sacrificáveis”, de se tornarem aqueles que podemos sacrificar.[3]

O exílio interior: uma saída?

Como encontrar uma saída? Como sair do exílio que aprisiona, como ir além da separação, da angústia? Da mesma forma, para aquele que deveria acolhê-lo, como estar à altura do drama do exilado, como enfrentar sua condição? Quais são as condições para encontrá-lo, para além da problemática da identidade, para além do confronto de identidades diferentes?

Paradoxalmente, a solução está na separação. A separação não do outro, mas a separação de si mesmo. Uma separação em si. Isso é, se tornar exilado de si mesmo, não mais acreditar demais nesse si mesmo que pensamos ser.

Cabe a cada um encontrar um ponto de detalhe, um ponto de surpresa, um ponto de espanto, um ponto de história: o ponto de enigma que faz o próprio de cada um, que o faz único e diferente.

Trata-se, portanto, de colocar em jogo, em si, o exílio e a separação. Um exílio e uma separação subjetivos, para além do exílio objetivo. Um exílio na linguagem. Colocar em jogo no campo da palavra essa parte de si que nos escapa. Seja no exilado, seja naquele que o recebe.

 

Tradução: Márcia Bandeira
Revisão: Letícia Mello
Referências
AGAMBEN, G. Homo sacer: o poder soberano e a via nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
ANSERMET, F. Clínica da origem: a criança entre a medicina e a psicanálise. Belo Horizonte: Contra Capa, 2003.
KAFKA, F. A preocupação do pai de família. In: Um médico rural: pequenas narrativas. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. (Trabalho original redigido em 1914-17).
LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 238-324. (Trabalho original proferido em 1953).

[1]1 Publicação autorizada pelo autor, a quem manifestamos nossos sinceros agradecimentos.
  François Ansermet, psicanalista, psiquiatra de crianças e adolescentes, professor honorário da Universidade de Genebra e Universidade de Lausanne, membro do Comité Consultatif National d’Ethique em Paris, cofundador da Fundação Agalma em Genebra (www.agalma.ch). Publicações, entre outras: ANSERMET, F. Clinique de l’origine. Nantes: Ed. Cécile Defaut, 2012; ANSERMET, F. La fabrication des enfants. Un vertige technologique. Paris: Odile Jacob, 2015; ANSERMET, F.; NOURRY, P. Serendipity. Arles: Acte Sud, Arles, 2018; ANSERMET, F. Prédire l’enfant. Paris : PUF, 2019.
[2]  “O que se realiza em minha história não é o passado simples daquilo que foi, uma vez que ele já não é, nem tampouco o perfeito composto do que tem sido naquilo que sou, mas o futuro anterior do que terei sido para aquilo em que me estou transformando.” (LACAN, 1953/1998, p. 301)
[3]  “Exibindo à luz o resíduo entre nascimento e nação, o refugiado faz surgir por um átimo na cena política aquela vida nua que constitui seu secreta pressuposto.” (AGAMBEN, 2007, p. 138)

 




Corpos, palavras e restos

Samyra Assad
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
E-mail: samyra@uai.com.br

 

O que sustenta a formulação clínica de que uma experiência analítica, levada ao seu termo, apresenta restos inanalisáveis? Essa questão, para ser abordada, nos abriria, a princípio, pelo menos três perspectivas:

Há algo que, inevitavelmente, as palavras não alcançam;

O saber não tem relação direta com a verdade;

O sinthoma.

De algum modo, essas três perspectivas apontam para o que resulta de uma busca da verdade na experiência analítica, através de uma interpretação do texto desconhecido de um sintoma ou sofrimento neurótico. Podemos dizer que elas apontam para uma depreciação da verdade, na medida em que não há verdade que seja toda, há apenas efeitos de verdade, mediante o saber. A verdade varia ao longo de uma experiência analítica. Não a dizer toda traz em si um impossível compatível com a ignorância estrutural que se define pelo próprio recalque, tanto em sua forma mais elaborada no não-saber inerente ao sintoma, quanto no limite insondável entre o estranho e o íntimo no gozo que afeta o corpo. A verdade como impossível, portanto, está do lado do real.

Se Lacan libera a psicanálise de uma crença no verdadeiro, a perspectiva central que conduziria a operação analítica seria o real. Assim, diz-nos Miller (2014, p. 28-29), “do lado da palavra, nos encontramos com o real sob a forma do impossível de dizer […]. Haverá sempre um déficit ligado à verdade, sentido e interpretação em relação a um mais além”. Se verificamos que, numa trajetória analítica, depois de um longo percurso, um ponto de basta na busca do sentido, da verdade, adquire um lugar nessa experiência, pode-se dizer que o mais além estará, então, fora de uma articulação simbólica, ou logicamente anterior a ela.

O final de uma análise demarcará a estrutura de um encontro com o ininterpretável da marca de uma língua no corpo primitivo. Se essa marca da língua no corpo induz ao efeito de gozo ligado aos traços simbólicos que trazem significados para o sintoma, uma análise os separa para nos demonstrar que, antes de ter um sentido, um traço simbólico teve valor de gozo que repercutiu no corpo como eco de um dizer (LEGUIL, 2022).

Assim, “Quando não sabemos que nome dar a esse sujeito que não se relaciona com os significantes, e sim com o corpo, o chamamos de parlêtre” (BRODSKY, 2019, p. 11) – campo da opacidade do gozo, vacuidade que se trata de produzir na experiência analítica. É possível dizer que nisso se coloca um enigma condensado em um resto, ao qual uma experiência analítica em seu fim retorna. Como uma irrupção contingente, notadamente nas imagens dos sonhos de final de análise, tal como nos testemunhos de passe de Deborah Rabinovich e de Clotilde Leguil,[1] permite-se uma leitura da escritura inerente a esse corpo, trazendo, assim, “o resíduo encontrado no fim, de seu começo enigmático” (LAURENT, 2020, p. 171).

Esse momento contingente conduz ao alívio da impotência do drama neurótico pela impossibilidade fixada na estrutura da linguagem (LACAN, 1972/2003, p. 480).[2] É quando o mesmo, que permanece atual, ganha uma nova face, mas contando com um fundo de indeterminação. Reconhece-se aí a parte do semblante que toca o real como impossível, o que possibilita um novo uso das marcas de gozo, do qual um sinthoma se encarrega. É possível, por exemplo, que o nó – ou arranjo – do sinthoma surja da própria experiência analítica, e, por sua ex-sistência, traga o que indica sempre a correlação “a uma saída para fora de” (MILLER, 2022, p. 10), ou seja, que se ultrapassou onde foi preciso ter passado.

Resta apenas “a estranheza do que pode se dizer do amor ao inconsciente tal como ele é lido” (LAURENT , 2022, p. 125), esse traço do exílio da relação sexual. Trata-se de uma leitura após a qual não resta mais nada para ver.

 

Referências
BRODSKY, G. Pasiones lacanianas. Buenos Aires: Grama, 2019.
LACAN, J. O aturdito. In: Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 448-500. (Trabalho original proferido em 1972).
LAURENT, É. A interpretação: da verdade ao acontecimento. Curinga, n. 50, jul./dez. 2020.
LAURENT, É. Comentário do testemunho de Clotilde Leguil. Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 87, abr. 2022.
LEGUIL, C. O novo amor, um amor que faz ponto de basta. Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 87, p. 115-125, abr. 2022.
MILLER, J.-A. El ultimísimo Lacan. Los cursos psicoanaliticos de Jacques-Alain Miller. Tradução de Stéphane Verley. Buenos Aires: Paidós, 2014.
MILLER, J.-A. A Ex-sistência. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 33, jun. 2022.

[1]  Ver os testemunhos de passe de Deborah Rabinovich, “Las ficciones de la familia en el passe o de las ficciones del análisis a las ficciones del passe” (apresentado em Belo Horizonte em 2017) e “Lo necessário y lo imposible” (apresentado nas Jornadas de Córdoba, em 26 e 27 de junho de 2015), e o de Clotilde Leguil (2022), “O novo amor, um amor que faz ponto de basta”.
[2]  Trata-se do termo “fixão” do real.



Corpos, palavras e restos

Musso Greco
Psiquiatra e psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
E-mail: mussogreco@gmail.com

 

“A psicanálise muda, isso não é um desejo, mas um fato”. A frase de Miller, em “O inconsciente e o corpo falante”, no X Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, no Rio, em 2016, situa a perspectiva do Inconsciente para o século XXI.

Lacan designou esse novo Inconsciente por meio de um neologismo, parlêtre, criado a partir da junção de parler (falar) e l’être (ser), que evoca par lettre, “pela letra”, aludindo ao elemento real transportado no significante pelo ser falante. Distinto do Inconsciente freudiano, essa entidade tem necessariamente um corpo, uma vez que não há gozo sem corpo, e equivale à pulsão: o corpo falante fala em termos de pulsões. Nesse sentido, o Inconsciente e o corpo falante são um único e mesmo real. Como fica o manejo do corpo falante nos registros Imaginário, Simbólico e Real?

No ensino dos nós, a afinidade entre o corpo e o Imaginário é reafirmada, uma vez que é pela via de sua imagem que o corpo participa da economia do gozo. O Imaginário é o corpo. Lacan, no Seminário 16, fala da imagem especular do corpo como uma imagem equivocada e refratária à apreensão do gozo do corpo, referindo-se à sua insuficiência clínica para se compatibilizar com os orifícios do corpo. O Imaginário pode ser definido, assim, pela crença de que o ser falante possui um corpo – ou seja, o Imaginário é o corpo que se acredita existir −, mas o corpo vivo do ser falante é evanescente e inconsistente, escapa-lhe a todo o tempo. É um corpo que se goza, goza sozinho, sem fazer laço.

E como se engancham Simbólico e corpo para Lacan? Sobre esse lugar de inscrição, é preciso distinguir o Um do corpo que se apresenta sob a forma de um indivíduo, e o Um do significante que se repete. Ao dizer, com Lacan, no Seminário 19, “il y a de l’Un!”, se introduz na experiência analítica o Um, indicando que todo significante traz consigo as marcas do gozo Um, e criando uma nova presença do significante e do corpo. Lalangue − um dos conceitos fundamentais do último ensino de Lacan, que advém do domínio onomatopaico e materno, constituindo uma forma de satisfação que não depende da significação, sustentada pelo mal-entendido e pela homofonia – é o nó necessário entre os três registros responsáveis pela ordenação do espaço habitado pelo sujeito. A linguagem, tida como elemento estruturante do Inconsciente, não se resume à articulação significante, S1-S2, sendo sustentada por lalangue, que dá ao Inconsciente outro estatuto, de Inconsciente real. O ultimíssimo ensino de Lacan, segundo Miller, em “Os trumains”, luta contra a inadequação do Simbólico, que é visto por ele como “um fator de confusão”: “é o significante que faz com que não nos achemos nele”.

Hoje, diante da evidência da não existência da proporção sexual para o ser falante, percebemos nos discursos uma fala que é simples conjunção do Um e do corpo, sem Outro, uma fala que não está ligada a um saber, mas a uma satisfação, um enxame de S1 – sem S2 −, sem o que venha significar o Um que comanda o gozo. Assim, somos colocados diante do paradoxo do Um que dialoga sozinho – por “dialogar” com o Outro que não existe, ou seja, romper com o Outro −, o Um-sozinho, que, para além do fantasma, permanece com os restos sintomáticos de um gozo incurável, ininterpretável e sem sentido, sem se ligar a nada. Que restos são esses? Restos de um discurso, letras, traços que desenham o corpo falante, bordas de gozo, sobras das identificações, decantações… Dessas peças soltas que tocam o ser de gozo do ser falante, trata-se de buscar o novo, um saber ler de outro modo o que é feito de linguagem e furo, o que volta sempre ao mesmo lugar, o Real.

Se a Psicanálise muda, diante do Inconsciente real e do Um que dialoga sozinho, muda também o psicanalista. Este, diferentemente de uma suposição de saber, pode ser, hoje, uma manifestação do Inconsciente, um lugar que faz laço, uma presença que faz aparecer o que está fora, o que é obstáculo, o que se equivoca. Como indica Lacan, no Seminário 11, o psicanalista é uma presença “passível de dar corpo ao Inconsciente real”.

 


Referências
MILLER, J.-A. O inconsciente e o corpo falante. In: Scilicet: O corpo falante – Sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016. p. 19-32.
MILLER, J.-A. Os trumains. Conferência realizada no XII Congresso da AMP, 2020. Disponível em: https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=Trabalhos-de-orientacion&file=el-tema/Trabalhos-de-orientacion/20-03-02_los-trumanos.html. Acesso em: 01 ago. 2023.
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. (Trabalho original proferido em 1964).
LACAN, J. O Seminário, livro 16:  De um Outro ao outro. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de Vera Ribeiro; preparação de texto de André Telles; versão final Angelina Harari e Jésus Santiago. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. (Trabalho original proferido em 1968-69).
LACAN, J. O Seminário, livro 19: …ou pior. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de Vera Ribeiro; versão final de Marcus André Vieira; preparação de texto de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012. (Trabalho original proferido em 1971-72).



O corpo, esse Outro[1]

Ram Mandil
Psicanalista

Analista Membro da Escola (AME) pela Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
E-mail: rmandil.bhe@terra.com.br

 

O tema desta atividade – “O corpo, esse Outro”, a partir de uma sugestão de Sérgio Laia – se articula ao tema do XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, que irá acontecer em São Paulo entre os dias 08 e 10 de novembro. O tema do Encontro, “Corpos aprisionados pelo discurso… e seus restos”, foi inspirado no último capítulo do Seminário 19, de Lacan (1971-72/2012), …ou pior. Nesse Seminário, Lacan apresenta aspectos fundamentais que irão desembocar nisso que designamos como sendo o seu último ensino. É nesse Seminário, por exemplo, que ele constrói a tese do “Há Um” (Y´a de l´Un), em que assinala a existência de um gozo – gozo do corpo, gozo da fala, ou, ainda, gozo do sinthoma – não articulado ao Outro. Trata-se de um desdobramento e consequência da sua tese de que “Não há relação sexual”.

Como muitos de vocês puderam acompanhar, uma discussão foi iniciada a partir de um comentário de Jésus Santiago a respeito da tradução para o português do termo “aprisionado”, que está presente no tema do Encontro – corpos aprisionados pelo discurso –, uma vez que a palavra attrapés, no original em francês, indica uma relação entre corpo e discurso que não necessariamente se expressa na ideia de aprisionamento.  Contribuições de colegas da EBP a esse respeito estão disponíveis no site do Encontro, dando uma dimensão da sutileza do debate a respeito das relações entre corpo e discurso no ensino de Lacan.

O estatuto do corpo

Sabemos que um dos passos inaugurais de Freud se deu na direção da interrogação sobre o estatuto do corpo a partir da clínica da histeria, uma vez que essa clínica obriga a considerar o corpo para além de suas vertentes anatômica, fisiológica ou biológica.  Costumamos não dar a devida atenção aos esforços de Freud, no início de seu percurso, em procurar convencer os médicos a incluírem os efeitos da palavra em sua prática, efeitos esses que participam, e muitas vezes determinam – por exemplo, em sua dimensão traumática –, o modo como um sujeito faz a sua experiência de corpo. Em “O tratamento psíquico (ou anímico)”, Freud (1896/1996, p. 298) observa que uma “atitude unilateral da medicina” tende a ver com desconfiança qualquer autonomia conferida à vida mental na determinação de efeitos corporais, desconsiderando inclusive o poder das palavras no tratamento das “perturbações patológicas” tanto da psyché, quanto do corpo. É surpreendente ver Freud responder às acusações de que qualquer intervenção médica que não derive dos aspectos anatômicos e fisiológicos deveria ser considerada como sendo da ordem da magia. Ainda hoje, em nosso contexto, surgem acusações dessa ordem por parte de personagens midiáticos que se arvoram a falar em nome da ciência e oferecer um antídoto contra o chamado “pensamento mágico”.  Freud (1896/1996, p. 297) assume que será necessário, para uma ampla compreensão do que se passa na experiência de corpo, que se possa “restituir às palavras, pelo menos em parte, o seu antigo poder mágico”. Nesse aspecto, ele chama a atenção para os efeitos sugestivos da palavra e para o modo como esses efeitos dependem da “personalidade do médico”. Essas considerações podem ser vistas como ponto de partida para as suas elaborações posteriores a respeito da interpretação analítica e também da transferência.

É o que Lacan (1971-72/2012, p. 217) irá assinalar em seu Seminário 19 – mas não apenas ali –, de que “o que se produz ao nível do corpo tem a ver com o que se articula pelo discurso”. Em “Considerações sobre a histeria”, conferência pronunciada após o Seminário O sinthoma, Lacan (1977/2007, p. 20) irá mais adiante, ao afirmar que não apenas “as palavras fazem corpo”, mas que “o uso das palavras numa espécie que tem as palavras à disposição” impacta sobre “a sexualidade que reina nessa espécie”, com consequências sobre sua própria reprodução, uma vez que a sexualidade “está inteiramente tomada nessas palavras”.

O estatuto da palavra

Não será apenas o estatuto do corpo que será interrogado a partir da psicanálise, mas também o estatuto da palavra. A menção, por Freud, de um “poder mágico” das palavras é o ponto de partida para uma série de considerações sobre os seus efeitos sobre o ser falante. Se, no início, o destaque recai sobre os efeitos de sugestão, será na dimensão simbólica do sentido que Freud irá apoiar não apenas sua noção de inconsciente, como também de interpretação. Sabemos que, por meio do recurso à linguística, Lacan irá aprofundar e reorientar a investigação sobre os efeitos da palavra, na perspectiva de localizar sua incidência na clínica, sobretudo em relação a uma confluência entre o gozo e o sentido (j´oui sense). Mas será a partir do que a clínica revela de uma satisfação pulsional que não conflui com o sentido e nem se dissolve a partir da interpretação semântica que Lacan irá considerar os efeitos da palavra sobre os corpos para além da dimensão da significação. É por essa via que surgem as referências de Lacan à palavra não tanto como efeito da combinatória de significantes, mas em relação à sua materialidade.  É nesse novo contexto que a palavra, ou a fala, são tomadas, por exemplo, como um “parasita” que assola o falasser.  Cito: “A questão é antes saber por que um homem dito ‘normal’ não percebe que a fala é um parasita, que a fala é uma excrescência, que a fala é a forma de câncer pela qual o ser humano é afligido” (1975-76/2007, p. 92). Esse caráter parasitário da fala a desloca de seu aspecto puramente linguístico para conferir-lhe substância de ser vivo que interage – por exemplo, como hospedeiro – com outro ser vivo. Encontramos aqui uma inflexão em relação à ideia de um corpo tomado pelo discurso, uma vez que, entre corpo e discurso, há uma relação material e vivente. É o que justifica o neologismo lacaniano – motérialisme, um materialismo da palavra – mencionado na “Conferência em Genebra sobre o sintoma”, materialismo esse que está implicado na própria constituição do sintoma:

É, se me permitem empregar, pela primeira vez, esse termo, nesse motérialisme que reside a tomada do inconsciente [la prise de l´inconscient] – quero dizer, que o que faz com que cada um não tenha encontrado outros modos de se sustentar a não ser através do que chamei há pouco de sintoma. (LACAN, 1975/1998, p. 8)

O corpo como Outro

É possível acompanhar o longo e sinuoso percurso de Lacan visando conferir um estatuto do corpo para além da referência ao organismo, referência essa insuficiente para se considerar o que se revela na clínica. Um ponto em comum em todas as elaborações de Lacan a esse respeito é que, para ele, o corpo, enquanto unidade, é sempre da ordem do outro, nunca algo imanente ao ser falante. O ponto de partida, como sabemos, é a apreensão do corpo como imagem do Estádio do Espelho, através do qual o sujeito encontraria um suporte para ter uma ideia de si como unidade corporal. Trata-se, aqui, do corpo tomado fundamentalmente como forma, de onde deriva um gozo de sua imagem especular. Essa unidade corporal – sempre problemática – será ressignificada a partir da introdução da noção de objeto a. O corpo fragmentado – ponto de partida de toda consideração sobre o corpo – será lido na perspectiva de uma “desordem dos pequenos a” (LACAN, 1962-63/2005, p. 132) e será por meio de artifícios que uma unidade corporal poderá ser concebida. Lembramos aqui a referência ao Esquema Ótico como um desses aparatos, constituído de espelhos planos e convexos, vasos e flores, de modo a situar o olhar numa posição precisa para que se possa ter uma imagem do corpo como unidade aparentemente homogênea. Toda dificuldade se funda sobre o fato de que, como dirá Lacan (1962-63/2005, p. 134), “é a própria estrutura desses objetos, que os torna impróprios para a egoização (moïsation)”. Em outras palavras, toda ideia de si como corpo apoiada sobre a imagem especular deixará uma opacidade, deixará um resto não representável na imagem refletida, e que será passível de reativar-se nos encontros com o real.

Nesse sentido, o último ensino de Lacan convoca uma nova referência para se pensar o estatuto do corpo, ou seja, a de se considerar o corpo a partir do gozo, mais precisamente como substância de gozo. Não se trata aqui do corpo pensado a partir de uma relação, o que implicaria um Outro, seja ele imagem ou símbolo, mas um corpo considerado a partir de sua própria existência enquanto substância. Trata-se aqui de um corpo que goza de si próprio, como “uma boca que pudesse beijar a si mesma”, para evocar uma imagem freudiana dos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. Em outras palavras, trata-se de um corpo de gozo que não se produz a partir de uma relação, que não está referido ao Outro, nem mesmo ao Outro sexual. O paradigma clínico dessa modalidade de gozo é o que Freud designou como sendo os restos sintomáticos – restos pois não se dissolvem por meio da interpretação analítica quando esta opera pela via do sentido. É uma modalidade de gozo não sensível ao sentido das palavras ou, como dirá Lacan, trata-se de um gozo opaco ao sentido. Tomando-se esse gozo como referência, não se trata de procurar dissolvê-lo em nome de uma suposta homeostase, mas de reduzi-lo, de localizá-lo, de depurá-lo de seu suporte fantasmático para que novas formas de se haver com ele sejam possíveis.

Dar corpo ao gozo

Se, por um lado, o ponto de partida é um corpo que goza de si mesmo, quais seriam as condições para esse gozo?  Há aqui uma inversão de perspectiva, quando nos perguntamos sobre o que dá corpo ao gozo. Se, em Freud, a satisfação pulsional estaria associada a uma mensagem cifrada, e mesmo se, em Lacan, num primeiro momento, as relações entre o gozo e o sentido podem ser inscritas em termos de significação, uma outra leitura vem à tona quando se constata que o gozo é impensável sem algo que lhe dê corpo. Lacan, a certa altura de seu ensino, considera o falo como paradigma do que dá corpo ao gozo, ou seja, de um corpo que goza, na medida em que é corporificado pelo significante. No Seminário 23, Lacan (1975-76/2007, p. 16) nos apresenta uma outra perspectiva sobre o gozo fálico. O falo é aqui referido como sendo a conjunção entre o corpo – desse “pedacinho de pau” – e a função da fala.  O “gozo dito fálico” – a expressão é de Lacan, e sabemos que todas as vezes que ele adjetiva um termo com o “dito”, ele expressa alguma reserva em relação ao seu uso corrente – enfim, o gozo dito fálico se define a partir do enlace entre o simbólico e o real. Trata-se de um gozo negativado pelo significante, distinto, por exemplo, do gozo peniano, que, para Lacan, provém do Imaginário, do gozo da imagem especular do corpo. No entanto, uma nova relação entre o falo e o real é apresentada nesse Seminário, a partir, inclusive, da questão levantada por Lacan (1975-76/2007, p. 134) sobre a possibilidade de o falo ser um suporte suficiente para o gozo.  Será a partir dessa interrogação – antecipada em outros momentos do seu ensino – que suas considerações sobre gozo feminino ganham uma nova leitura e reorientam a prática analítica. Como, por exemplo, considerar uma outra função para o falo, não a da significação, mas a da verificação, como o que permite dar valor de verdade ao que emerge do real.

O corpo como superfície de inscrição

Se consideramos o corpo como aquilo que goza de si mesmo, é preciso levar em consideração, antes de mais nada, que se trata de um corpo marcado pelo significante.  Em outras palavras, só haveria gozo do corpo, propriamente dito, a partir da incidência do significante. É o que, a meu ver, justifica as elaborações de Lacan sobre o corpo como superfície de inscrição. Caberia perguntar se, numa era em que se evidencia cada vez mais a inexistência do Outro, as marcas, as cicatrizes, as perfurações, as tatuagens, ou mesmo os procedimentos cirúrgicos de toda ordem, inclusive os de redesignação sexual, não teriam por horizonte fazer do corpo um corpo de gozo. Todos esses procedimentos (obviamente a serem considerados caso a caso) parecem vir em suplência a um modo específico de inscrição corporal, ao qual Freud deu o nome de castração – entendida aqui como marca de uma subtração, com valor de delimitação do gozo do corpo, ao mesmo tempo em que se produz um excedente de gozo referido justamente a essa marca.

A realidade dos transplantes

Gostaria de fazer uma referência a um procedimento que vem se instaurando como uma realidade da vida contemporânea. Me refiro aqui a um momento em que, com o recurso da ciência e das novas técnicas da medicina, inaugura-se a era dos transplantes. A noção de transplante pode ser entendida num sentido amplo, a saber: aquilo que, como ser vivo, estava num lugar e é transplantado para outro lugar. Em sua dimensão corporal, os transplantes dizem respeito não apenas aos órgãos do corpo, mas também aos seus produtos e materiais, como o sangue, por exemplo.

As elaborações de Lacan a respeito do objeto a no Seminário 10 nos permitem fazer uma leitura do que se passa ao nível dos transplantes. Se, num primeiro momento, o objeto a é referido aos objetos naturais do corpo (como, por exemplo, o seio), Lacan observa que esses objetos também podem ser objetos fabricados (como, por exemplo, a mamadeira). Nesse último caso, são objetos passíveis de serem estocados, armazenados, e mesmo colocados em circulação. Um aspecto determinante dos objetos a, sejam os naturais, sejam os fabricados, é o seu caráter de objeto cedível, passíveis portanto de serem separados, destacados do corpo. Para Lacan, a partir da prática dos transplantes, a presença desses objetos do corpo, enquanto objetos capazes de serem cedidos, sinalizam um novo período da história humana e de seus produtos. Cito aqui uma passagem do Seminário 10, que compreende os anos de 1962 e 63, portanto ainda nos primórdios dos primeiros transplantes de órgãos:

não me é possível deixar de evocar, neste momento, no extremo dessas manifestações, os problemas que nos serão colocados, inclusive na mais radical essencialidade do sujeito, pela ampliação iminente, provável, já iniciada […] da realidade dos transplantes [greffe, “enxertos”] de órgãos. (LACAN, 1962-63/2005, p. 341)

Se hoje essa realidade não nos surpreende, Lacan, àquela altura de seu ensino, não deixa de manifestar sua perplexidade e mesmo seu assombro, chegando a se perguntar até que ponto convém consentir, por exemplo, com a perspectiva de uma “manutenção artificial de alguns sujeitos num estado que já não saberemos se é vida ou se é morte” (LACAN, 1962-63/2005, p. 341). Para Lacan (1962-63/2005, p. 342), essa nova realidade sinaliza a emergência “no real” de algo próprio para “despertar, em termos totalmente novos, a questão da essencialidade da pessoa e daquilo a que ela se prende”. Vemos claramente se produzir uma perturbação na ordem simbólica e a necessidade de uma completa redefinição jurídica no momento em que “o antigo suporte somático da identidade”, como, por exemplo, a noção de “pessoa física”, é questionado a partir de sua base somática.

A dimensão subjetiva dessa nova realidade se manifesta na forma de diversos testemunhos. A meu ver, dois deles se destacam, ambos de pessoas que passaram por transplantes do coração. De um lado, o filósofo Jean-Luc Nancy (2006), que em seu livro O intruso resume a sua experiência com o transplante como a “passagem de uma nova estranheza”. A presença, em seu corpo, do órgão de uma outra pessoa dá lugar à formação de “um ego estranho, ao mesmo tempo aberto e fechado”. De outro lado, o escritor José Maria Cançado, professor da PUC-MG, autor de O transplante é um baião de dois, no qual faz a opção de dar o seu testemunho em verso, mais apropriado, segundo ele, para lidar com o desconhecido e com o que não tem sentido. Ele captura assim a experiência pela qual iniciou a travessia: “Nome nenhum… nenhum nome / nem o meu… nem o seu/ neste coração/ nem desinência… nasceu / nessa composição/ É uma trupe desconhecida/ que se formou nessa migração” (CANÇADO, 2005, p. 9).

A evaporação dos corpos

Nos perguntamos os efeitos da “evaporação do pai” no mundo contemporâneo, conforme a leitura de Miller (2024a), também não estariam sendo acompanhados por uma reconfiguração da consistência dos corpos, não apenas em relação aos laços sociais – interagimos hoje mais com pessoas cujos corpos não estão presentes – mas também em sua dimensão clínica. Esse aspecto foi examinado por Didier Sicard, que, em seu livro A medicina sem o corpo (La médecine sans le corps), chama a atenção para o fato de o médico hoje estar se convertendo cada vez mais num leitor de imagens do corpo, deixando em segundo plano, quando não ignorando, o exame clínico a partir do encontro dos corpos.  Nesse contexto, ganha toda relevância o modo como Lacan (1971-72/2012, p. 220), na última lição do Seminário 19, evoca a escansão das entrevistas preliminares como sendo um momento de “confrontação de corpos”, como um dado preliminar à entrada no discurso analítico. E será justamente a partir do discurso analítico que será possível aferir o modo como o discurso do mestre molda e afeta os corpos.

O corpo considerado a partir de sua consistência e de suas bordas

Dois aspectos fundamentais surgem aqui, a meu ver, na consideração do corpo a partir do discurso analítico.

De um lado, diante do caráter problemático da unidade corporal – que Lacan assinala, no Seminário 23, como a tendência do corpo em sair fora – surge a questão relativa à consistência corporal, a saber, sobre o que manteria juntos os elementos do corpo, diante do caráter dispersivo do corpo libidinal. Uma primeira resposta de Lacan é que essa consistência se apoia sobre a relação com a imagem do próprio corpo, ou do corpo de um outro, o que confere a esse corpo a sua “unidade mental” (MILLER, 2012, p. 131).  Por outro lado, essa consistência também pode ser pensada ao nível do simbólico, do corpo como máquina, sistema, organismo articulado. É, inclusive, pela via de uma consistência simbólica do corpo que E. Kantorowicz, em seu livro O corpo duplo do rei, apresenta a distinção na teologia política medieval entre o corpo físico e o corpo místico do rei, o primeiro como corpo limitado, perecível, e o segundo como corpo “imortal” que se propaga pela eternidade e que se transmite ao longo das gerações. Essa distinção simbólica não deixa de ser o fundamento para todo funcionamento institucional.

As elaborações de Lacan ao final do Seminário 23 a respeito do ego de Joyce também podem ser lidas na perspectiva de uma investigação sobre a consistência corporal. A definição de ego ali presente – como a ideia que alguém faz de si como corpo – interroga a consistência corporal em situações, como a de Joyce, nas quais essa consistência não parece apoiar-se sobre uma relação com a imagem do próprio corpo. Para se ter uma ideia de si como corpo, é necessário que esse corpo tenha, antes de mais nada, uma consistência, consistência mental, dirá Lacan, que é o que, no fundo, permite a alguém ter relação com o próprio corpo. E, para se ter uma relação com o próprio corpo, ele deve ser experimentado como alteridade. Para Lacan, seguindo a pista do Seminário 23, o paradigma dessa relação com o corpo é a sua adoração, adoração essa que pode adquirir formas variadas, mas invariavelmente associada a uma relação com a imagem do próprio corpo.

Bordas do corpo

Em meio às considerações sobre os aspectos implicados na constituição da consistência corporal – incluindo-se aí o sintoma como um elemento determinante dessa consistência –, Lacan irá assinalar que a consistência é algo a ser pensado em termos de superfície. Nesse Seminário, ele define a superfície como sendo a forma “a mais desprovida de sentido do que, entretanto, se imagina” (LACAN, 1975-76/2007, p. 63). Esse aspecto será determinante para se considerar o corpo como referência de onde procede nossa relação com o imaginário. Em “O fenômeno lacaniano”, conferência dada por Lacan em 1974, ao comentar a expressão “ama a ti mesmo”, presente no mandamento “ama a teu próximo como a ti mesmo”, ele afirma:

o homem – e foi aí que tentei fazer meu primeiro trilhamento – ama a sua imagem como aquilo que lhe é mais próximo, isto é, seu corpo. Simplesmente, de seu corpo, ele não tem estritamente nenhuma ideia. Ele crê que seja “eu” [moi]. Cada um crê ser ele mesmo. É um furo [trou]. E depois, do lado de fora, há a imagem. E com essa imagem, ele faz o mundo. (LACAN, 1974/2014, p. 18)

Vemos aqui que o corpo é pensado em termos de superfície e furo, o que justifica o recurso à topologia uma vez constatada a insuficiência de se considerar o corpo a partir de sua imagem no espelho.

Tomar o corpo como cruzamento espacial de furos e superfícies no qual o gozo encontraria suporte não é da mesma ordem que o pensar como forma, silhueta ou sombra.

É por essa via topológica que surge a figura da borda, como o que designa a possibilidade de diferentes conformações a partir da zona limite entre o furo e a superfície. Sabemos da importância da consideração pela borda, por exemplo, na clínica do autismo. Éric Laurent (2014, p. 80) propõe, inclusive, a hipótese de uma “foraclusão do furo” para indicar o que, em alguns casos, se revela como consequência da ausência de delimitação de uma borda para conferir consistência ao furo.

Sem entrar na vertente do diagnóstico, há algo de um tratamento da relação com o corpo em termos de borda que encontramos na vida e na obra de Santos Dumont. É como se para ele houvesse uma necessidade de se liberar do peso do seu corpo. O sujeito construtor de balões, aquele que conseguiu torna-los dirigíveis, que foi capaz de fazer uma máquina mais pesada que o ar levantar voo, não por acaso inclui seu corpo em todos esses inventos. É seu corpo que está presente em cada um deles, é ele quem se levanta do chão junto com suas invenções – como se estivesse movido pela necessidade de traçar uma borda para incluir um vazio, traçar um furo na relação entre seu corpo e o mundo. Sua primeira invenção, como ele mesmo relata, foi a de dependurar um triciclo a petróleo nos galhos de uma árvore, suspendendo-o a alguns centímetros do chão. Cito: “É difícil explicar meu contentamento ao verificar que, ao contrário do que se dava em terra, o motor do meu triciclo vibrava tão agradavelmente que quase parecia parado. Nesse dia começou minha vida de inventor” (SANTOS-DUMONT, 1918/2015, p. 7).  Em outro momento, justificando a construção de mesas e cadeiras de sua casa com pernas de 2 m de altura, ele assim irá justificar: “Adoro as alturas. Necessito sentir-me no ar. […] Não faço nada, não valho nada, nem posso fazer nada quando estou no chão.”[2]

Do Outro como discurso ao Outro como corpo

Um momento significativo do ensino de Lacan pode ser localizado no Seminário 14, A lógica do fantasma, em que o estatuto do Outro como tesouro dos significantes, do Outro articulado como discurso, esse Outro começa a ter a sua natureza interrogada. No capítulo XVI desse Seminário – “O Outro é o corpo” –, Lacan faz uma pergunta que parece demarcar uma nova perspectiva. Não se trata de uma pergunta sobre o lugar do Outro, mas sobre sua substância. O que seria considerar o Outro como substância, como corpo e, por consequência, pensado a partir do volume, submetido às leis do movimento e, fundamentalmente, como superfície de inscrição? Cito: “o corpo, nossa presença de corpo animal, é o primeiro lugar onde colocar as inscrições” (LACAN, 1966-67/2023, p. 328, tradução nossa). Se, mais adiante, a superfície corporal será pensada em termos de consistência e furo, aqui o corpo enquanto substância é, antes de tudo, um corpo marcado. A marca corporal, como efeito do primeiro significante sobre esse corpo, não é a ferida produzida, mas o que daí se produz como cicatriz, como metáfora de um corpo marcado.

Um testemunho de passe

Essa perspectiva de um corpo como Outro, marcado pela incidência do significante, será o fundamento, a meu ver, para o que Lacan assinala como sendo um “acontecimento de corpo”, que seria, em última análise, o núcleo do sinthoma.

A incidência da língua sobre o corpo, experimentada como evento traumático, inscreve uma descontinuidade, define um antes e um depois e é o que permite a constituição do falasser. Trata-se de um acontecimento no qual, para usar uma imagem evocada por Lacan, a língua morde o corpo, fixando aí um gozo de uma vez por todas. O significante aqui não é causa do sujeito do discurso, mas causa de gozo, experimentado ao nível do corpo como “instante de encarnação” (MILLER, 2011, p. 103).

Um testemunho de passe de nossa colega Carolina Koretzky (2024), da ECF, seguido dos comentários de Deborah Gutermann-Jacquet (2024) e de Jacques-Alain Miller (2024b), nos ajudam a esclarecer a noção de acontecimento de corpo e sua passagem ao sinthoma, bem como a sua relação com o desejo do analista. Em seu testemunho, Carolina faz referência a um sintoma corporal persistente, um eczema nas mãos, que sempre resistiu às análises anteriores. Esse sintoma aparece na adolescência, por ocasião da separação dos seus pais. No conflito entre os pais, o eczema é a justificativa da qual ela se serve para não “dar uma mão ao pai”, num momento de sua falência. Será a partir de uma interpretação do analista que esse sintoma irá desaparecer, dirá ela, “radical e definitivamente”. Podemos pensar que o desaparecimento “radical e definitivo” do sintoma é o sonho de qualquer analisante no momento em que busca uma análise. A remissão do sintoma pode, inclusive, ser para um analisante um critério de final de análise, ou seja, de só considerar sua análise concluída quando o seu sintoma cessar. Ainda que eventualmente isso possa acontecer, chama a atenção, nos comentários de Miller, a ênfase que ele dá, no caso de Carolina, sobre um outro sintoma, não menos corporal, produzido a partir de uma frase de sua mãe a respeito do seu nascimento. Num momento de urgência que antecedeu o seu parto, sua mãe lhe conta o que ocorreu: “Eu fiquei falando com você a noite toda e você quis viver”. É daqui que procede o seu sintoma analítico, a saber, o de ser uma pessoa determinada, obstinada [s´acharner] na relação com o Outro, sobretudo quando se trata de fazer o Outro falar. Essa determinação, essa obstinação, se manifesta em sua vida em diversas situações. No início, está associada a uma hiperatividade, fonte inclusive de problemas escolares, ou seja, a sua impossibilidade de ficar sentada, de deixar seu corpo permanecer num único lugar. Por outro lado, essa determinação a colocava num estado de estar sempre pronta para partir diante do que lhe soasse como uma ameaça, inclusive em relação às demandas amorosas. Isso também se refletia em sua prática analítica, como em sua obstinação em fazer os analisantes saírem de seu eventual silêncio, que ela traduz em termos de uma voracidade em provocar uma palavra.

Em seu comentário, Miller observa que, numa experiência analítica, a visada não é a de provocar uma possível cessação do sintoma – motivo para todos os excessos de um furor curandis –, mas de se considerar o que, do sintoma, numa análise, está em relação com o que não cessa de não se escrever. Sabemos que a expressão “restos sintomáticos” provém de Freud, como aquilo que, ao final da análise, permanece como elemento ativo do sintoma, como o que dele não se dissolve uma vez encontrados seus circuitos e suas razões. A noção de resto, como iteração do gozo, pode dar uma conotação de fracasso da análise, como se só restasse ao analisante a resignação ou o protesto. É aqui que uma análise revela que, no trato com o real, o que se exige está para além da terapêutica, uma vez tendo sido franqueadas as identificações e criadas as condições para que o falasser possa destacar-se do seu fantasma fundamental.

A pergunta de uma análise é a de saber como esse resto, num primeiro momento associado a um tormento, pode elevar-se à dignidade de um sinthoma. Como a prática analítica permite a alguém, tomado por uma hiperatividade – como no caso de Carolina, que não conseguia fazer seu corpo ficar parado num único local –, consentir, como analista, a ficar no seu lugar? Como estabelecer uma nova aliança entre sua determinação e o silêncio do Outro, quando esse silêncio deixa de ter uma conotação mortífera?

Vemos aqui como o desejo do analista não é algo que surge de forma desconectada do sintoma, mas que corresponde a um outro modo de se haver com ele, no mais das vezes como condição vital para aquele que escolheu tornar-se analista. Não deixa de ser surpreendente a observação de Miller de que, ao menos no caso de Carolina, praticar a psicanálise segue sendo uma forma de tratar seu sintoma, de lidar com o que, em sua experiência, se revelou como um gozo que se reitera e que não é passível de negativar. E, podemos pensar que o estilo, como marca própria de um analista, decorre exatamente dos modos que ele encontra para lidar com o real, modos esses orientados pelo que ele pode extrair de sua experiência como analisante.

Miller finaliza seu comentário com um verso do poeta Paul Verlaine, extraído do poema “Meu sonho de família”, que me permito retomar aqui, como figura do que eu chamaria de “modéstia analítica”, quando, ao final da experiência de análise, podemos reconhecer que “não se sai exatamente o mesmo, mas também não se sai completamente outro”.

 

Referências
CANÇADO, J. M. O transplante é um baião de dois. Belo Horizonte: Scriptum, 2005.
FREUD, S. O tratamento psíquico (ou anímico). In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. VII, 1996. (Trabalho original publicado em 1896).
GUTERMAN-JACQUET, D. Trois questions. La cause du désir. Revue de Psychanalyse, n. 116, p. 209-211, 2024.
KORETZKY, C. Partir/Arrivées. La cause du désir. Revue de Psychanalyse, n. 116, p. 198-208, 2024.
LACAN, J. Conferência em Genebra sobre o sintoma. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 23, p. 6-16, dez. 1998. (Trabalho original proferido em 1975).
LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1962-63).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
LACAN, J. Considerações sobre a histeria. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 50, p. 17-22, 2007. (Trabalho original proferido em 1977).
LACAN, J. O Seminário, livro 19: …ou pior. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012. (Trabalho original proferido em 1971-72).
LACAN, J. O fenômeno lacaniano. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 68-69, 2014. (Trabalho original proferido em 1974).
LACAN, J. Le Séminaire, Livre XIV: La Logique du fantasme. Paris: Seuil & Champ Freudien, 2023. (Trabalho original proferido em 1966-67).
LAURENT, É. A batalha do autismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2014.
MILLER, J.-A. Sutilezas analíticas. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2011.
MILLER, J-A. Parler avec son corps. Mental – Revue Internationale de Psychanalyse, n. 27-28,  2012.
MILLER, J-A. O pai tornado vapor. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 88, p. 18-21, abr. 2024a.
MILLER, J-A. Commentaire. La cause du désir. Revue de Psychanalyse, n. 116, p. 212-214, 2024b.
NANCY, J.-L. El intruso. Buenos Aires/Madrid: Amorrortu, 2006.
SANTOS-DUMONT, A. O que eu vi, o que nós veremos. 2015. (Trabalho original publicado em 1918). Disponível em:  http://www.portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/leit_online/santos_dumond.pdf. Acesso em : 01 set. 2024.

[1] Conferência pronunciada em 12 de agosto de 2024, ocasião da Aula Inaugural do IPSM-MG e da Abertura das atividades da EBP-MG, e em preparação para o XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano.
[2]  Conforme registro indicativo desse mobiliário no Museu Casa de Santos Dumont, Petrópolis, RJ.