O que pode o clínico advertido pela psicanálise? Reflexões sobre o tema

Patrícia Regina Guimarães
Mestre e Doutora em Ciências da Saúde
Médica do Hospital das Clínicas da UFMG
Professora do Departamento de Medicina da PUC-MINAS
E-mail: patrguimaraes@gmail.com

 

“Estou passando mal essa semana toda… sentindo muito cansaço”: Trata-se da fala de paciente do sexo feminino, adulta jovem, acompanhada em serviço de referência por doença crônica com comprometimento pulmonar importante. Apresenta limitações para as atividades cotidianas. Sem adesão ao tratamento. Violências diversas desde o primeiro mês de vida. Três filhos pequenos, o mais velho com seis anos. A queixa de cansaço, acompanhada por esforço respiratório, chega associada ao relato de cansaço de viver.

Assim como o “cansaço”, as queixas de dores, desconfortos e males diversos localizados no corpo levam pacientes à avaliação médica, buscando no organismo a sua origem, e a medicina apresenta um amplo arsenal de investigação desse corpo-organismo.

A semiologia médica é a disciplina que se ocupa de paramentar o médico com as perguntas certas, que conduzirão à identificação da doença. As várias manobras executadas no corpo, assim como os instrumentos médicos que amplificam seus sentidos, como o estetoscópio, levam à localização da patologia, da alteração. E há um aparato tecnológico diversificado que permite determinar a alteração, mesmo que microscópica. “Os elementos que o médico utiliza para o diagnóstico são o exame clínico e os exames complementares. O exame clínico compreende a anamnese e o exame físico” (LÓPEZ, 1990, p. 5).

O “olhar clínico”, treinado por anos, pretende que as alterações e doenças se revelem ao clínico experiente. Mas a própria clínica e o médico já experimentam o declínio desse poder a ele atribuído, do olhar que penetra o corpo e desvela o mal. Hoje, profissionais da educação, o Google, até os vizinhos fazem diagnósticos. A clínica cedeu lugar à tecnologia, que substitui o médico com maior precisão. E o mercado das medicações traz a promessa da cura e alívio.

Médicos e pacientes acreditam na consistência material do corpo, que pode ser palpado, auscultado, percutido, e em um mal-estar que possa ser localizado, circunscrito, diagnosticado e, com isso, curado. Considera-se, para a cura do corpo doente, os efeitos de substâncias sobre essa matéria. Todo o processo acontece quase à revelia do sujeito que habita esse corpo.

É certo que na medicina se admitem as particularidades – as doenças manifestando-se de maneira particular nos diferentes corpos. Mas a subjetividade, que se relaciona à forma como cada sujeito toma o adoecimento do seu corpo, ainda é um campo a ser explorado.

Em muitas situações, mesmo se empregando o recurso da tecnologia de ponta e exames sofisticados, não se encontra no corpo-organismo a alteração que justifique a queixa do paciente. Ou, se encontrada, seu tratamento não traz o alívio esperado. Outras vezes, as queixas orgânicas ancoram e delimitam no corpo um mal-estar muito mais difuso, insuportável e mortífero. Um nome (diagnóstico) para o que faz sofrer pode ser apaziguador – “eu sofro disso”.

Nesse contexto de crise da clínica e diante do paciente que fala da sua dor e do que o faz sofrer, localizando seu mal-estar no corpo-organismo, o que é possível para o médico advertido pela psicanálise?

O paciente chega à consulta apresentando seu corpo como sendo ele mesmo, portador de uma doença. Ele sente e localiza no corpo-organismo seu mal-estar e parece demandar uma resposta técnica que acabe com seu sofrimento. Por outro lado, o médico traz, da sua formação, a crença que esse corpo-organismo guarda uma doença em forma de mistério a ser descoberto. E acredita que o arsenal tecnológico será capaz de localizar, melhor que ele próprio ou que o próprio doente, o mal-estar. Assim, o profissional investe pouco na entrevista médica – que persegue a doença – e menos ainda no exame desse corpo. Pede exames que não cumprem a promessa de revelar o mal. As medicações são experimentadas tantas vezes sem nenhuma lógica amparada no raciocínio clínico. E seguem, médico e paciente, nesse desencontro que frustra a ambos.

Mas também é possível o encontro entre o médico e seu paciente e, a partir disso, a produção de algo. Através do vínculo, do desejo de saber (do médico) e da suposição de saber (do paciente no médico), pode-se operar uma escuta que vai além das queixas orgânicas, provocando no paciente a busca do seu mal-estar além do corpo. É nesse ponto da percepção de que “não se trata disso” – de uma doença orgânica – que se torna possível localizar na dimensão psíquica o desconforto e a elaboração possíveis.

Jacques Lacan (1966/2001), em seu textoO lugar da psicanálise na medicina”, traz contribuições importantes para a discussão. Ao diferenciar demanda de desejo, e a estrutura falha entre essas duas dimensões, Lacan (1966/2001, p. 11) chama a atenção para o que resta, o que fica fora, tão familiar aos médicos: “Permita-me assinalar como falha epistemo-somática o efeito que terá o progresso da ciência sobre a relação da medicina com o corpo”.

É necessária ao médico atenção ao que há para além daquilo que o paciente apresenta como demanda, imbuído do discurso poderoso da ciência e do direito à saúde. “Isto porque aquilo que é excluído da relação epistemo-somática é justamente o que o corpo em seu registro purificado vai propor à medicina” (LACAN, 1966/2001, p. 11). A dimensão do gozo aparece completamente excluída da relação epistemo-somática, fora do que pode saber a ciência.

Na prática médica, a perplexidade diante de adolescentes vivendo com doença crônica que não aderiam ao tratamento proposto, numa marcha em direção à morte, introduziu para esta autora um furo no saber médico e a busca de referencial que trouxesse alguma resposta. Freud (1920/1996), em “Além do princípio de prazer”, introduz para o médico uma dimensão importante – a pulsão de morte – para o manejo clínico de pacientes que não fazem a opção pela saúde. E Lacan (1966/2001, p. 12) aponta que “a direção ética é aquela que se estende em direção ao gozo”, indicando duas balizas: a demanda do doente e o gozo do corpo.

Ao médico atento ao inconsciente e à dimensão do gozo é possível, a partir da escuta do paciente, ocupar uma posição diferente daquela de quem demanda (o tratamento). Roberto Assis Ferreira discutiu, em 2013, em uma aula dada na Faculdade de Medicina da UFMG sobre a relação médico-paciente na adolescência, os lugares que o médico pode ocupar diante do paciente. Ele adverte para a importância de ocupar o lugar de quem não sabe, fazendo surgir, a partir do vínculo, o saber que está com o paciente (FERREIRA; CUNHA, 2014). Apresentou também, citando Miller (2012, p. 98), o “médico-passador”, que seria aquele que é capaz de sustentar uma escuta até que algo surja, localizando o sofrimento em outro campo, que não seja o orgânico, tornando possível uma transferência de cuidado que leve o paciente a um trabalho analítico com outro profissional.

Aqui outro ponto surge: a angústia do profissional diante dessa posição despretensiosa e modesta da escuta ativa. A discussão do caso com a equipe, ou melhor, a conversação, poderia ser um espaço de apoio para o profissional que se angustia. Mas esse dispositivo não é suficiente para dar conta de algo que toca o médico de forma singular, apontando para a própria análise, ou para a supervisão do caso, como uma possibilidade.

Diante dessa reflexão, uma direção possível para médicos e estudantes de medicina seria cuidar do corpo-organismo, que pode mesmo adoecer, mas estar atento ao que se apresenta de outra ordem. O “médico-passador” poderia estar ao lado – que é da posição clínica –, nesse percurso do paciente na direção do seu tratamento em outro campo profissional.

Também seria possível tomar a psicanálise como a última flor da medicina, seguindo na direção que Lacan (1966/2001, p. 14) aponta: “Se o médico deve continuar a ser alguma coisa que não a herança da sua função antiga, que era uma função sagrada, é a meu ver, prosseguir e manter em sua própria vida a descoberta de Freud”.

 

 

Referências
FERREIRA, R. A.; CUNHA, C. F. Relação médico-paciente na adolescência. Revista Médica de Minas Gerais. n. 24, p. S80-S86, 2014.
FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. (Trabalho original publicado em 1963).
FREUD, S. Além do princípio do prazer. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XVII, 1996. (Trabalho original publicado em 1920).
LACAN, J. O lugar da psicanálise na medicina. Opção Lacaniana, n. 32, p. 8-14, dez. 2001. (Trabalho original publicado em 1966).
LÓPEZ, M. Introdução ao diagnóstico clínico. In: LÓPEZ, M.; MEDEIROS, J. L. (Orgs.). Semiologia Médica: as bases do diagnóstico clínico. 3. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Livraria Atheneu Editora; Belo Horizonte: Livraria Interminas, 1990. p. 3-19.
MILLER, J.-A. Embrollos del cuerpo. Buenos Aires: Paidós, 2012.



O ENIGMA DO FEMININO E AS MÁSCARAS EM PERSONA

 Mariah Casséte
Doutora em Teoria Política (UFMG)
Aluna do Curso de Psicanálise do IPSM-MG
E-mail: mariahlqc@gmail.com

 

A posição feminina sempre impulsionou a psicanálise. O que é ser mulher? O que quer a mulher? Essas questões estruturam o campo psicanalítico desde que Freud tomou as histéricas como inspiração. No texto “Sobre a Sexualidade Feminina” (1931/1996, p. 204), ele destaca o mistério do desenvolvimento feminino, mencionando uma fase pré-edípica “remota, penumbrosa, quase impossível de ser revivida”. A castração feminina resulta de um processo prolongado, marcado por uma ligação profunda com a mãe. A ausência do falo posiciona a mulher no “não ter”, gerando uma angústia intrínseca que a confronta com um real indizível.

Nessa experiência singular de encontro com a castração, a referência fálica é insuficiente no continente feminino: há um “gozo do corpo, que é […] para além do Falo”. (LACAN, 1972-73/2022, p. 100, grifo nosso). Se há algo do gozo feminino que escapa ao simbólico, seria possível dizer que as mulheres seriam mais amigas do real? Essa é a questão colocada por J.-A. Miller (2010a, p. 2), sugerindo que, na lógica imaginária do falo, o feminino sempre representará o Outro absoluto – o “mistério absoluto fora do falo” – a quem não se imputa uma consistência definível. Essa falta de substância impulsiona uma busca incessante por identificações que preencham o vazio. A histérica, ao se perguntar sobre o desejo dos homens por outras mulheres, tenta apaziguar a angústia da inconsistência, como se as outras guardassem o segredo do feminino. Marie-Héne Brousse (PASSELANDE, 2012) afirma que essa busca ainda está no campo fálico, na tentativa de encontrar um Nome que defina seu lugar e sentido.

O vazio da posição feminina pode ser deslocado do “ter” para o “ser”, trabalhando com a falta e “fabricando um ser com o nada” (MILLER, 2021, p. 5). A relação entre mulheres e semblantes torna-se então um tema central na psicanálise. Apesar de os semblantes serem fundamentais para o laço humano, as mulheres se destacam pela “enorme liberdade com o semblante” (LACAN, 1971/2009, p. 34). O homem usa semblantes para proteger seu “pequeno ter”, já o semblante feminino é a máscara da falta. No jogo das aparências, as mulheres se aproximam mais do real, usando máscaras para sugerir algo que, na verdade, não existe. Encarna-se o falo para mostrar o que não se tem. O problema é que a falta de substância apavora, levando as mulheres, muitas vezes, a relações de devastação. Há, portanto, uma ambivalência estruturante no feminino e sua relação com as máscaras: seriam insígnias ou fetiches? Como questiona M.-H. Brousse, teriam algo a dizer sobre um ideal do feminino ou servem como suportes para esconder o que não se sabe e nem se suporta? (PASSELANDE, 2012).

Freud nos convida a buscar na experiência, na ciência ou na arte meios de avançar sobre o “enigma da feminilidade”. Vejo no filme Persona, de 1966, de Ingmar Bergman (2006), uma excelente fonte para essa busca, ao apresentar a interação entre uma atriz que se absteve da fala e uma enfermeira que usa a fala como investigação. As duas se isolam em uma casa à beira-mar, onde desenvolvem uma relação ambivalente de distância e complementaridade. O olhar, a voz, os semblantes, assim como gozo e devastação, são temas centrais dessa obra visualmente poética e clássica expressão do enigma do feminino.

Prólogo

No prólogo de Persona, Bergman estabelece o tom misterioso da narrativa. Em um clima onírico e sombrio, cenas fragmentadas surgem na tela, culminando em duas faces femininas, projetadas como sombras. As protagonistas são observadas por um menino que, atraído, as toca curiosamente. Quem seriam essas figuras enigmáticas? Parecidas, mas únicas. O que essas faces (ou máscaras?) ocultam em seu mistério?

Seria a sequência do prólogo uma metáfora do próprio cinema? Janela para nossas inquietações mais profundas. A partir do início da narrativa propriamente dita, o espectador se tornará – assim como o próprio diretor – testemunha e observador da jornada dessas duas mulheres. O cinema, portanto, é apresentado como reflexo do Outro e como reflexo da alma. Alma, aliás, é o nome de uma das protagonistas que dirige incessantemente seus questionamentos a uma outra mulher, Elisabeth, que, em sua visão, deveria portar as respostas que tanto demanda.

Ambas parecem ocupar lugares diferentes na relação estabelecida. Em um primeiro momento, é possível inclusive separá-las em polos distintos: a fala e o silêncio; a iniciativa e a passividade; a expectativa e a desesperança; a enfermeira e a paciente. No entanto, gradativamente, a narrativa entrelaça os polos aparentemente opostos em um sem limite, de modo que se perde quaisquer certezas sobre quem de fato ocupa cada posição ou imagem do corpo, demarcadas por um tênue litoral.

A atriz

Elisabeth, uma famosa atriz de teatro e cinema, encontra-se, no início da trama, internada como paciente em um hospital. Não se sabe o diagnóstico de seu “problema”, apenas se revela que abdicou da fala. Em um momento em que atuava no palco, é tomada por uma paralisia que retira de si a vontade de continuar representando suas personagens, ou mesmo de representar a si mesma na vida, fora dos palcos. A partir de então, emudece, abdica de seu papel de atriz, esposa e mãe e, assim, é internada. A enfermeira designada para o caso é Alma, uma jovem mulher que fica deslumbrada na presença da atriz.

O ofício da atriz é também um campo que remete ao feminino. Afinal, que outro tipo de trabalho permite a participação tão ativa no jogo de máscaras que encobre o vazio? Essa intimidade com os personagens, essa capacidade de ser o que não se tem, certamente torna essas pessoas magnéticas aos que testemunham sua atuação. Chico Buarque (1983), nos versos da música Beatriz, expressa essa captura do outro promovida através do enigma da atuação:

Olha/ Será que ela é moça/ Será que ela é triste/ Será que é pintura/ O rosto da atriz/ Se ela dança no sétimo céu/ Se ela acredita que é outro país/ E se ela só decora o seu papel/ E se eu pudesse entrar na sua vida

Elisabeth torna-se um ímã para sua enfermeira. Guardaria a atriz respostas sobre o “ser mulher”? É ilusório pensar que o desejo produzido pelas máscaras levaria à descoberta de significantes que resolvem os mistérios da vida ou do feminino. M.-H. Brousse (2004) afirma que, quando exposto, o semblante se transforma em mentira, estalando sob os assaltos do real, desqualificando a fala. Talvez a paralisia no palco tenha sido um assalto do real para Elisabeth, que se cala diante da falta de sentido. O silêncio da atriz pode ser lido como uma encenação desse vazio que suas máscaras ocultam.

No desenrolar da narrativa, somos apresentados a momentos que apontam para a frustração de Elisabeth em sua função materna. Ela parece demonstrar uma dificuldade em assumir o papel de mãe com a mesma desenvoltura que desempenha os outros personagens nos palcos. Quando ainda está internada no hospital, chega a amassar uma fotografia de seu filho. Sua enfermeira Alma, já no final da trama, em um monólogo perturbador, como em uma interpretação selvagem, diz o que parece ser, de fato, o sentimento de sua paciente em relação a ser mãe: a repulsa dessa posição e o arrependimento dessa decisão. Ainda assim, em outros momentos, Elisabeth escreve a seu marido, demonstrando interesse no bem-estar de seu filho, alegando, ainda, sentir a falta dele. Em qual encruzilhada Elizabeth se encontra?

Tal ambivalência parece ser aspecto fundamental na abordagem da posição do feminino por J.-A. Miller (2010b, p. 6), segundo o qual encontra-se a mulher na “distância subjetiva da posição de mãe. Porque ser uma mãe […], é para uma mulher querer se fazer existir como A. Fazer-se existir como A mãe é se fazer existir como A mulher que tem”. Gabriela Grinbaum (2021) também expressa essa problemática, ao apontar que o feminino se localiza na disjunção entre o desejo da mãe e o desejo de ser mãe. Seu silêncio seria uma expressão da angústia perante o vazio de sentido que se vislumbra nessa posição?

A saída pela identificação materna não é suficiente para aplacar a inquietude de Elisabeth em relação ao feminino. A atriz permanece perdida e emudecida perante o enigma de seu lugar no mundo. Sua enfermeira Alma, parece também estar perdida perante esse mesmo mistério. No entanto, o caminho escolhido por ela – embora também esteja situado no campo fálico – é de outra ordem. Em vez do silêncio, a verborragia. Em vez da maternidade, a identificação com a Outra.

A histérica

Como indica Lacan (1971/2009, p. 118), “nada comunica menos de si do que um dado sujeito que, no final das contas, não esconde nada”.

Alma é a enfermeira da atriz e, ao contrário de sua paciente, ela se desnuda a todo instante. Fala sobre si, seus projetos de futuro, sua vida atual, seus amores, seu passado e suas experiências. O fato de Elisabeth permanecer em silêncio parece, inicialmente, causar em Alma o desejo de continuar falando, incessantemente. Vez ou outra, deixa escapar – como lapsos – momentos de incerteza ou fissuras pelas quais o vazio pode ser espiado: seja em seu olhar, numa gargalhada ou em lágrimas inesperadas. Em certos momentos, ainda que de forma caricata, é nítida a dinâmica analista/analisando que parece se instaurar entre as duas mulheres.

Em uma das cenas iniciais, Alma fala a si mesma: seus planos de casar-se, tornar-se mãe e “ser aquilo que se espera de uma mulher”. Entretanto, ao se expressar, fica claro um momento de dúvida, como se tal projeto de vida não fosse aquilo que de fato ela deseja seguir, ou como se não fosse o suficiente. O ser mulher – tal como se constitui nas expectativas do Outro – vacila na subjetividade da personagem. Há, assim, um desespero latente nas palavras de Alma, que não consegue lidar com essa sensação de vazio que a domina. É como se estivesse perdida e procurasse a máscara para tapar a falta que insiste em aparecer. Sua busca, então, dirige-se àquela outra mulher a quem considera portadora dos segredos do feminino. A atriz, que é sua paciente, exerce um encantamento sobre a enfermeira, que lhe dirige todas as angústias e experiências, em busca de uma identificação que lhe confira alguma substância e apaziguamento, como se essa outra pudesse ter algo a revelar.

Na casa à beira do mar, pouco a pouco, Alma se espelha na atriz que, em um primeiro momento, torna-se seu objeto de amor e seu modelo. As roupas vestidas, os gestos e até a forma de usar seu cabelo parece se aproximar gradativamente aos modos de Elisabeth. Essa transformação é narrada de forma belíssima pela fotografia de Sven Nykvist, que expressa a dinâmica especular estabelecida entre as duas personagens.

A dinâmica entre ambas pode ser vista como uma encenação do discurso histérico, pelo qual Alma tenta revelar a verdade do desejo da outra, questionando sua própria identidade. Sua posição histérica se manifesta tanto na angústia frente ao silêncio de Elisabeth, quanto na oscilação entre identificação e rejeição em relação àquela que ela cuida, revelando um discurso que procura incessantemente um saber que nunca será pleno. Assim, a enfermeira mantém uma relação ambivalente com seu objeto de amor, caracterizada por um duplo movimento de destituição (ao apontar a falta na outra) e de devoção (ao atribuir a essa outra um infalível referencial identificatório). Essa forma de lidar com a falta pode, no entanto, reverter em devastação, quando ela sente não ser mais amada.

A precariedade da identificação revela a fragilidade da busca de Alma. Ao ler escondida uma carta de Elisabeth para seu marido, Alma se sente exposta e traída pelas impressões negativas da atriz. A devoção então se transforma em agressividade. A atriz, antes vista como espelho, ou por causa dessa relação especular, agora se torna alvo das frustrações de Alma, que continua a enfrentar o vazio que rompe suas máscaras.

A “outra para si mesma”

Elisabeth e Alma, duas mulheres que investigam em si e na outra aquilo a que suas faltas não são capazes de responder. O manejo de seus semblantes vacila sob as investidas do real. Essa ausência de um termo para dizer A Mulher deixa indeterminada uma identificação especificamente feminina. Uma jornada de perdas: perde-se a identidade, o nome, as máscaras, no caminho em direção ao gozo que lhe é próprio – que Lacan denomina de o “Outro gozo” e que Dominique Miller (2021, p. 7) expressa como uma “estranheza que as carrega”.

Não há caminhos definidos para abordar o feminino, mas Persona pode contribuir para o que está justamente nesse inescapável (des)encontro entre as duas protagonistas e na impossibilidade da identificação com a Outra. A cada tentativa de fusão, uma quebra. A cada palavra, uma falta de sentido. O desafio enfrentado é, portanto, o reconhecimento dessa Outra que existe em si mesma, desse gozo estrangeiro inominável, mas que, ainda assim, é constitutivo do ser. Alma e Atriz permanecem nessa dualidade entrelaçada, assim como cada mulher, uma a uma, tem de se haver com a falta no Outro – S(Ⱥ). A mulher experimenta um tipo de alteridade ou diferença em relação a si mesma, uma espécie de opacidade interna, porque o gozo feminino não é completamente acessível ao saber ou à consciência.

A beleza de Persona é conseguir construir na tela um universo entre as protagonistas que escapa às palavras, mas que invade, transborda e devasta para além daquilo que a linguagem pode significar. Ao longo das décadas, muitos ousaram decifrar o mistério de Persona, apresentando teorias para explicar a natureza da relação entre as duas mulheres, suas angústias e destinos. Porém, prefiro destacar a interpretação de Susan Sontag (1987), que não busca decifrar, mas, sim, abraçar a potência dessa dualidade entre máscara e pessoa, discurso e silêncio, alma e performance.

 

Referências
BEATRIZ. [Compositor e intérprete]: Chico Buarque e Edu Lobo. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 1983.
BROUSSE, M.-H. Uma dificuldade na análise das mulheres: a devastação da relação com a mãe. Latusa – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 9, p. 203-218
FREUD, S. Sexualidade feminina. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XXI, 1996, p. 239-254.  (Trabalho original publicado em 1931).    
GRINBAUM, G. Una mujer sin maquillaje. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2021.
LACAN, J. O Seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. (Trabalho original proferido em 1971).
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2022. (Trabalho original proferido em 1972-73).
MILLER, D. As duas margens da feminilidade. In: ANTELO, Marcela; GURGEL, Iordan (org.). O feminino infamiliar: dizer o indizível. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, 2021. p. 251-261. 
MILLER, J.-A. Mulheres e semblantes I. Opção Lacaniana Online Nova Série, ano 1, n. 1, mar. 2010a. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_1/mulheres_e_semblantes_i.pdf. Acesso em: 24 nov. 2024.
MILLER, J.-A. Mulheres e semblantes II. Opção Lacaniana Online Nova Série, ano 1, n. 1, mar. 2010b. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_1/mulheres_e_semblantes_ii.pdf. Acesso em: 24 nov. 2024.
PASSELANDE, A. O que é uma mulher? Entrevista com Marie-Hélène Brousse. Latusa Digital, ano 9, n. 49, p. 1-39, 2012.
PERSONA. Direção: Ingmar Bergman. Produção: Ingmar Bergman. Suécia: Versátil Home Video, 2006. 1 DVD.
SONTAG, S. A vontade radical. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda., 1987.



O que é a psicose ordinária?

Fabiana Peralva Lima
Psicóloga da rede de
Saúde Mental de Belo Horizonte e Betim
faperalvalima@gmail.com

Jacques-Alain Miller, propõe em 1998 uma nova forma de pensar a clínica das psicoses. Do binarismo neurose/psicose, pelo qual Freud e o estruturalismo da primeira clínica lacaniana se guiavam, Miller avança trazendo outras orientações com o auxílio das elaborações da segunda clínica de Lacan que, na perspectiva da lógica borromeana, respalda a ideia da constituição da realidade psíquica a partir das amarrações dos registros Real, Simbólico e Imaginário.

Se antes o diagnóstico estrutural possuía definições e contornos bem delimitados sob a referência do Nome-do-Pai enquanto ausência ou presença desse significante fundamental, na segunda clínica lacaniana esses contornos já não são tão precisos e a pluralização dos Nomes-do-Pai tornou-se uma importante baliza na orientação do tratamento.

Conversações clínicas pautadas em casos que apresentavam, para o analista, dificuldades e limitações na definição diagnóstica apontavam para algo novo na clínica psicanalítica. Casos em que não se reconheciam sinais claros de uma neurose e nem tampouco sinais positivos e evidentes de psicose, como alucinações e delírios, faziam ruído à época. Foram três valiosos encontros na França cujas elaborações culminaram na definição do termo “psicose ordinária”, em oposição às psicoses extraordinárias e clássicas nas suas apresentações.

Em 1996, Miller proporcionou o Conciliábulo de Angers sobre o tema “Enigma e Surpresas nas Psicoses”. Em 1997, na Conversação de Arcachon, o debate sobre os casos raros e inclassificáveis e, em 1998, lança, na Convenção de Antibes, o conceito de psicose ordinária, uma construção teórica a partir da prática clínica.

Diferentemente das categorias clássicas determinadas nos manuais de psiquiatria, o termo “psicose ordinária” não pretende ser uma nova categoria nosológica rígida e bem definida. Além disso, exige uma escuta atenta do analista para os sinais e indícios discretos que se manifestam de forma insidiosa e gradativa. É a clínica da tonalidade, dos detalhes, das invenções e da singularidade (MILLER, 2012, p. 422). Novas formas de desencadeamento, novos fenômenos corporais e novas formas de transferências são também identificadas, impactando um novo olhar sobre a direção do tratamento. A atenção aos arranjos singulares do sujeito como defesa contra a desordem do Real e do gozo tornam-se mais relevantes.

Miller (2012), em seu texto “Efeito do retorno à psicose ordinária”, informa que não criou um conceito e nem um novo diagnóstico, mas sim uma noção, um significante dentro do campo vasto das psicoses, com possibilidade de construção no transcorrer dos tempos. Além disso, adverte sobre o cuidado e o perigo para que o termo não se torne “um asilo para ignorância” (MILLER, 2012, p 412-413): “Inventei uma palavra, inventei uma expressão, inventei um significante, dando a ele um esboço de definição que pudesse atrair diferentes sentidos, diferentes ecos de sentido em torno deste significante (MILLER, 2012, p. 401).

Sérgio de Campos (2022) em seu livro Investigações lacanianas das psicoses: As psicoses ordinárias, relata que a psicose ordinária é um diagnóstico em suspensão até que se defina o tipo clínico da psicose em questão. Considera que não se trata rigidamente de uma psicose não desencadeada e nem de uma pré-psicose. A utilidade clínica em reconhecer um caso de psicose ordinária seria identificar e preservar as amarrações do sujeito que evitaram o desencadeamento da doença no sentido mais positivo do termo.

E quando suspeitar de um caso de psicose ordinária? Miller elabora alguns indícios no que se refere a relação do sujeito no campo social, corporal e subjetivo.

Lacan (1955-56/1998, p. 565) evoca, no texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, a célebre frase sobre “uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito”, e Miller (2012) se utiliza dela para caracterizar um indício presente na psicose ordinária. E acrescenta: “A desordem se situa na maneira como vocês experimentam o mundo que os cerca, na maneira como experimentam seu corpo e no modo de se relacionarem com as próprias ideias” (MILLER, 2012, p. 411).

A afinidade de um estado melancólico às psicoses ordinárias no sentido do sentimento de vida do sujeito é tratada no texto “A junção íntima do sentimento de vida”, de Sophie Marret-Maleval. Ela cita autores como Miller e Jean-Claude Maleval e considera o estado pré-melancólico como uma “bússola diagnóstica preciosa da psicose ordinária” (MARRET-MALEVAL, 2017, p. 4), uma vez que também se manifestam sob índices discretos e podem, através da superidentificação a uma norma social, indicar uma forma de suplência de uma psicose ordinária, evitando o desencadeamento psicótico.

Miller traz a ideia de uma tripla externalidade. A externalidade social se refere à relação do sujeito com sua realidade social. Quando essa identificação social é negativa, há um desenquadre em sua função social por um desligamento gradativo e progressivo em relação ao Outro social. Nota-se um empobrecimento dos laços sociais e afetivos, ocasionando um prejuízo das trocas simbólicas com o mundo. O sujeito não consegue se estabelecer satisfatoriamente no trabalho, nas relações com a família e com amigos. Há também casos de identificação social positiva, ou superidentificação, quando há um investimento rígido e intenso em sua posição social, por exemplo, um trabalho, apropriando-se de uma identificação imaginária como forma de suplência.

Na externalidade corporal, nota-se um estranhamento em relação ao corpo, o Outro corporal. Em algum momento, algo do corpo se desfaz, torna-se alheio e faz-se necessário que o sujeito recorra a artifícios, grampos para apropriar-se do próprio corpo. Os sintomas e as nomeações podem ser suporte na construção de um corpo.

A externalidade subjetiva evoca uma experiência de vazio, de um estado melancólico, de uma identificação real com o objeto enquanto dejeto. Há grande dificuldade de subjetivar a existência e significantizar o gozo.

A perspectiva das novas formas de desencadeamentos, de conversão e de transferência são também orientadores na identificação e direção do tratamento na psicose ordinária, sob os nomes de neodesencadeamento, neoconversão e neotransferência.

Os desencadeamentos clássicos se dão de forma abrupta a partir do encontro com Um pai, cujo efeito, em função da foraclusão do significante do Nome-do-Pai que inscreve a castração simbólica, é a impossibilidade de responder provocando um furo. Com isso, irrompem os fenômenos psicóticos, como as alucinações auditivas, as produções delirantes e os fenômenos de linguagem. Lacan (1955-56/1998, p. 584), em seu texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, destaca:

Para que a psicose se desencadeie, é preciso que o Nome-do-Pai foracluído, isto é, jamais advindo no lugar do Outro, seja ali invocado em oposição simbólica ao sujeito.

É a falta do Nome-do-pai nesse lugar que, pelo furo que abre no significado, dá início à cascata de remanejamentos do significante de onde provém o desastre crescente do imaginário, até que seja alcançado o nível em que significante e significado se estabiliza na metáfora delirante. […]

É preciso ainda que esse Um-pai venha no lugar em que o sujeito não pôde chamá-lo antes. Basta que esse Um-pai se situe na posição terceira em alguma relação que tenha por base o par imaginário a-a’.

A noção de neodesencadeamento propõe um avanço na maneira de interpretar o desencadeamento que está mais associada ao desligamento do sujeito com o Outro proveniente do desenodamento dos registros Real, Simbólico e Imaginário. Os novos desencadeamentos não apontam para o surgimento de sintomas produtivos, mas de fenômenos sutis, discretos, plurais e dispersos. Conforme afirma Sérgio de Campos (2022, p. 143), “emergem como descarrilamentos íntimos, desconexões entre o eu, o corpo e a pulsão”. Trata-se de desencadeamentos mais referidos à ausência da significação fálica, sendo esta o significante do sexo e da vida.

A partir do conceito de conversão como um sintoma inscrito no corpo com caráter decifrável, Miller (2012) cria a noção de neoconversão para caracterizar os fenômenos corporais em cena nas psicoses ordinárias. A neoconversão inscreve o gozo no corpo impossível de significar, portanto indecifrável e não articulado a um saber, provocando um sentimento de vacuidade. Diante disso, é necessário que o sujeito encontre saídas para constituir um corpo através de próteses que podem ser objetos, tatuagens, dimorfismos corporais, sintomas e outros.

As neotransferências são novas formas de pensar a relação entre o analista e o paciente no contexto da segunda clínica lacaniana. Se, no conceito de transferência, no que tange às neuroses, o analista é um suposto saber do inconsciente, e, nas psicoses, o saber está do lado do sujeito psicótico, na neotransferência é proposto uma posição diferente do analista, uma transferência apoiada em lalíngua. Lalíngua é o furo e a raiz da linguagem, lugar esvaziado do sentido e aquém da articulação simbólica. Trata-se de um traumatismo resultante do encontro com a linguagem. Desta forma, é necessário que o analista aprenda a ler essa língua indecifrável do sujeito e se habilite em saber fazer com o que é exposto. Da sua posição de nada saber através de um vínculo frouxo com o paciente, o analista tem a função de limitar o gozo invasivo do Outro, descompletando-o, além de favorecer a amarração dos três registros.

E, por fim, é importante destacar a relação da contemporaneidade com a psicose ordinária. Na sociedade hipermoderna, em decorrência do enfraquecimento do Nome-do-Pai, testemunhamos a falência dos ideais e de um significante-mestre na sua função organizadora. Se, antes, a existência da função mítica do Pai, enquanto exceção à castração, propiciava a consistência de um conjunto de todos sujeitos castrados, hoje vivemos a era da multiplicidade, das variadas formas de gozo e do enxame de significantes-mestre, levando à necessidade de avanços nas elaborações teóricas. Sob a perspectiva topológica borromeana, talvez possamos inferir sobre uma invasão do Imaginário sobre o Simbólico devido a uma inconsistência de referenciais simbólicos na modernidade. A pluralização dos Nomes-do-Pai vem como um novo paradigma e é nesse contexto que surge o termo psicose ordinária. Diante disso, os casos se apresentam de forma ordinária levando a considerar os indícios singulares dos sintomas e dos modos de gozo, além da multiplicidade de suplências que funcionam como se fossem um Nome-do-Pai.


Referências
CAMPOS, S. de. Investigação lacaniana das psicoses: As psicoses ordinárias. Vol. 2. Belo Horizonte: Topológica, 2022.
LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 537-590. (Trabalho original proferido em 1955-56).
MARRET-MALEVAL, S. A junção íntima do sentimento de vida. Opção Lacaniana online nova série, ano 8, n. 23, jul. 2017. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_23/A_juncao_intima_do_sentimento_de_vida.pdf. Acesso em: 09 jun. 2024.
MILLER, J.-A. Efeito do retorno à psicose ordinária. In: BATISTA, M. do C. D.; LAIA, S. (Orgs.). A psicose ordinária: A Convenção de Antibes. Tradução de José Luiz Gaglianoni et al. Belo Horizonte: Scriptum Livros/Escola Brasileira de Psicanálise, 2012, p. 399-428.