O ENCONTRO COM O SIGNIFICANTE MARCA O CORPO

Ilka Franco Ferrari
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
E-mail: ilkafferrari@gmail.com

 

O marco para a abordagem deste tema foi encontrado no que Lacan apresentou no Seminário Mais, ainda (1972-73/1985) e no que Miller (2016) ajudou a elucidar, ou seja, o mistério da união da fala com o corpo.

Tal mistério esbarrou em outro, que Lacan nos fez ouvir, ou seja, o impenetrável da essência do fenômeno da vida. Na impossibilidade de definir o que é a vida, ele se perguntou o que ela quer, ofertando a resposta de que ela quer durar, não acabar, se transmitir. Considerou-a muda, impossibilitando que se saiba o que é estar vivo, mas nela deixando falar o saber de que, na existência, corpos vivos e gozosos (LACAN, 1972-73/1985, p. 35), mortificados e vivificados pela entrada do significante nesse circuito.

A primeira tese de Lacan sobre o corpo o situa como imaginário, sendo que a imagem no espelho, sua forma, o distingue do organismo. No paradigma clínico inaugurado com o nó borromeano, orientado pelo sinthome, o corpo se estabeleceu no campo do gozo e, a partir daí, Miller destaca o imaginário como o próprio corpo, para gozar ou não. Mas relembra: “é no corpo imaginário que as palavras da língua fazem entrar as representações que nos constituem um mundo ilusório sob o modelo da unidade do corpo” (MILLER, 2016, p. 23). O corpo simbólico então constituído outorga ao corpo imaginário sua unidade.

Di Ciaccia se pergunta de qual corpo se trata nesse momento da orientação lacaniana. A partir de orientações millerianas, ele afirma: “corpo que Aristóteles propõe como base da definição de indivíduo, aquele corpo que ‘se mantém como uno’’’ (DI CIACCIA, 2016, p. 75), apresentado por Lacan no Seminário 20. No empenho de uma definição, Di Ciaccia (2016, p. 75) escreve: “Um corpo é alguma coisa que se goza – substância gozante, portanto, que se revela no indivíduo falante, por meio do acontecimento de corpo, singular para cada um, que é o sinthoma”. A palavra “singular” não pode deixar de ser aqui considerada. Ela ressalta o momento teórico em que de fato se distanciou de concepções universalistas, cuidando da vida como o real de uma ex-sistência individual.

Da carne ao corpo

No “corpo vivo” – não simbólico, ou imaginário –, que goza de si, consequentemente acontece o afetamento do gozo advindo do que Lacan (1972-73/1985) denominou lalíngua, ou seja, através da palavra antes de seu ordenamento gramatical. Materialidade sonora do significante, anterior à linguagem, se encaixando nesse corpo vibração que “serve para falar”, distinto do “corpo fala” proposto pela psicologia. O vivente traz em si possibilidades de eventos, de acontecimentos de corpo, a partir das ressonâncias da linguagem materna, ecos dos sons maternos “afetando cada sujeito de maneira diferente, como o tom, o ritmo, a maneira, o estilo de falar” (RAMIREZ, 2024). Momento estrutural em que acontece o encontro entre o corpo como vivente e lalíngua, em troumatisme que esburaca (trou) o corpo, carne tatuada pelo verbo antes que ele se estruture em linguagem. A esse primeiro trauma, posteriormente somam-se outros na vida de cada qual.

De acordo com Miller (2003), Lacan (1964/1988), no Seminário 11, utiliza de forma exemplar a palavra “carne”, possivelmente influenciado por Merleau-Ponty. Nela, haverá a marca do signo linguístico, em evento que separa carne e corpo, com o simbólico tomando o corpo. E o mistério apresentado na união da fala com o corpo, corpo agora fato de experiência, se esclarece com o registro do real, em intervenção que destaca a presença de um traço transformado em significante, mas apagado. Afirmou Lacan (1962-63/2005, p. 73): “O significante, disse-lhes eu a certa altura, é um traço, porém um traço apagado”. Referência à noção de traço unário, anterior ao sujeito e introduzido no real, primeiro significante, entalhe com o qual se marca, se tatua, na relação do sujeito com o Outro. Assim, o sujeito se constitui, na exigência de busca do objeto perdido, de um não sabido original, e na construção de rastros falsos para encontrá-lo. Nas palavras de Lacan (1962-63/2005, p. 75), “Quando um traço é feito para ser tomado por um falso traço, sabemos que há aí um sujeito falante, sabemos que há aí um sujeito como causa”.

O sujeito, ali onde nasce, portanto, se dirige à “racionalidade do Outro”, não tendo outro alcance senão o de posicionar-se no lugar do Outro numa cadeia significante. Em sua vida invadida pela mortificação de significantes que falam entre si sem signo de presença de um ser, estala a morte em vida que, no entanto, assegura a sobrevida significante. Tal formalização levou Miller (2003) a ponderar que no estruturalismo lacaniano há co-pertencimento entre o simbólico e a morte, excluindo o gozo que supõe a vida biológica.

Mas chegou o momento em que a experiência analítica fez com que Lacan (1972-73/1985) ponderasse essa lógica do inconsciente que supõe o sujeito morto, ao considerar que o sujeito se produz no corpo. Apareceu, então, o que ele chamou de indivíduo afetado pelo inconsciente, pela língua que não se pode ler, palpitante e com o corpo vivo. Consequentemente, o significante não tem só efeito de significado, mas efeito de afeto – efeito do saber no corpo – perturbando, deixando marcas no corpo, agora substância gozante. O significante é causa do gozo e a via do inconsciente real se fortalece.

As investigações acerca dos enlaces e desenlaces entre corpo e linguagem prosseguiram, considerando que o real do inconsciente é o corpo falante. Agora, só há inconsciente no falasser entendido como o sujeito e seu corpo de gozo. Sujeito não mais na vertente do significante, mas “sujeito do gozo”, um ser falado e falante, com fala que lhe dá sentido. Ser que só o é por falar, mas, essencialmente, fala de seu gozo, que é a razão última de seus ditos (MILLER, 2011). Seu sentido de ser é presidir o ter, porque o falasser não é o corpo, mas o tem. Nas palavras de Lacan (1975-76/2007), ele é ser carnal devastado pelo verbo, pois o homem fala com seu corpo, é um corpo falante – expressão que surge no Seminário 20 –, falasser por natureza. Tal concepção não apaga o ensino sobre o inconsciente e sua relação com a linguagem, mas acentua valor à corporizarão da imagem que dá consistência ao ser que fala. A fala é o que lhe dá sentido e, por falar, é também falado.

O estudioso das formalizações lacanianas nota, portanto, que, a partir do Seminário 20, está presente o efeito corporal do significante, ou seja, não mais seu efeito semântico (significado), não mais seu efeito sujeito suposto saber, não mais seus efeitos de verdade, mas seus efeitos de gozo. Se, antes, a cadeia significante mortificava o corpo, localizando o gozo nos objetos mais de gozar, agora o significante é também causa de gozo. No último ensino, Lacan aproximou significação e satisfação, passando do conceito de linguagem para lalíngua, expressando que o significante não trabalha para a significação, mas para a satisfação, base do que se chamou sentido gozado. Esse entrelaçamento entre corpo e gozo, ao final de seu ensino, colocou Lacan novamente diante da questão da vida, e também da morte. Nesse momento, o real se sustenta no gozo do vivente, mas é também a morte, um impossível de se pensar e de representar no campo da vida.

A materialidade do significante, todavia, é motivo de equívocos no último ensino. Segundo Miller (2003), tudo indica que a última palavra de Lacan sobre o assunto sugere equivaler o significante ao semblante, em possível desdobramento do que aparece no Seminário 3. Melhor dizendo, se o significante como tal não significa nada, se na natureza ninguém se serve do significante para significar; no entanto ele está aí, e se não fosse por ele não encontraríamos nada na natureza. Ao manejarmos com os pequenos signos que trazemos pela vida, continua Miller, acontece a oportunidade da materialização do significante naquilo que ele sustenta, suportando o sentido. O corpo oferece sua matéria, sua realidade, ao significante. Consequentemente, ele pode tomar sua matéria do som e do corpo, como bem demonstra o sintoma histérico. O depoimento de Jorge Assef ilumina a questão.

Agarre-se forte!

Na riqueza do testemunho de Jorge Assef (2024), pode-se extrair alguns relatos que auxiliam essa transmissão. Ele conta, por exemplo, a pergunta direta que a analista lhe fez, no início de sua segunda análise, acerca de que seu corpo gozava, e sua resposta, sem hesitação, foi: de abraçar e de comer! Percorre a dramaticidade dos momentos de despedidas, os abraços em seus parceiros, familiares e amigos, a recordação dos choros na despedida do pai quando o deixava na escola, sua insaciável demanda de amor e uma cena traumática dentro de uma igreja, na qual, assustado, se agarra ao pai. Um sonho lhe trouxe, nesse contexto, importante constatação: “o ursinho carinhoso” com o qual se apresentava escondia o parasita “carrapato”, nome atribuído pelo inconsciente para as distintas facetas de seu sintoma. Modo de viver agarrado no outro para devorá-lo.

A lembrança de uma cena no parque de diversões, tal como conta, o fez encontrar o imperativo da voz materna gravada em fogo, no supereu. Quando o brinquedo ganhou velocidade, a mãe começou a gritar, insistentemente, “agarre-se forte!”. Precisaram pará-lo. Em outro momento, voltando do México após ouvir um testemunho de Passe em que se destacava o significante “soltar” e ainda comovido, em meio a uma zona de turbulência se recordou que sua mãe lhe havia dito, várias vezes, que ele quase nasceu em um avião e que costumava falar com este filho ainda no ventre. Ela fazia tratamento em outra cidade, depois de dez abortos espontâneos. Ao aterrissar, imediatamente buscou saber o que ela lhe dizia, e a resposta foi: “agarre-se forte!”. Impactado, buscou um lugar para se sentar. Ao relatar o ocorrido para analista, ela lhe disse: “Você encontrou a marca original!”.

Em sua experiência analítica, tal como comunica, a fórmula da fantasia se escreveu como “agarre-se no Outro”. A retroalimentação entre o “sintoma carrapato” e a fantasia delineava uma dinâmica pulsional ordenada pelo objeto oral, presente em um dos sonhos. Perfilaram-se as declinações agarrar-se, fazer-se agarrar, soltar-se, não se deixar agarrar, que podiam ser reconhecidas nas eleições que fazia ao longo da vida, inclusive a da analista. E não foi fácil deixá-la. Gozo e desejo se articularam no sinthoma “Garra” (extraído de garrapata, em espanhol, “garra-pata”), nome para seu ser de gozo, invenção singular que marca seu estilo de trabalho pela causa analítica.

 

Referências
ASSEF, J. Testemonio 1. Revista Lacaniana de Psicoanálisis, n. 30, 2024.
DI CIACCIA, A. Corpo falante/falasser. In: Scilicet: O corpo falante – Sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016. p. 73-75.
 LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. (Trabalho original proferido em 1964).
LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão final de Angelina Harari e preparação de texto de André Telles; tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1962-63).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
MILLER, J.-A. La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, 2003.
MILLER, J.-A. Sutilezas analíticas. Buenos Aires: Paidós, 2011.
MILLER, J.-A. O inconsciente e o corpo falante. In: Scilicet: O corpo falante – Sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016. p. 19-32.
RAMIREZ, M. E. Acontecimientos de cuerpo en una exguerrillera. Erèhtyc, p. 9-16, 2024.



Entrevista acerca da criação da Coleção Almanaque Impresso

Em dezembro de 2024, sob o selo do IPSM-MG, foi lançada uma linha de publicação impressa com o nome Coleção Almanaque Impresso. Não há dúvida de que essa iniciativa de ampliar a circulação de livros de psicanálise lacaniana em nossa comunidade é um acontecimento de grande relevância e repercussão.

Almanaque On-line, igualmente uma publicação do IPSM-MG, dá as boas-vindas à chegada de sua xará e gostaria de conhecê-la melhor. Apressamo-nos a fazer perguntas às duas responsáveis pela empreitada: Lilany Pacheco, Diretora Geral do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, e Luciana Silviano Brandão, organizadora da nova Coleção

Almanaque 34: Lilany, parafraseando Jacques-Alain Miller (1998, p. 3), que lança a questão “Por que o Instituto é necessário”, perguntamos-lhe: por que é necessária a nova Coleção Almanaque Impresso?

Lilany Pacheco: Essa coleção nasce do interesse em darmos testemunho da riqueza de nossas atividades, em especial das Lições Introdutórias que aconteceram durante o ano de 2024, com a temática das neuroses na contemporaneidade. Assim, brindamos o leitor com o trabalho primoroso de nossos colegas membros da Escola Brasileira de Psicanálise, que gentilmente aceitaram o convite para realizar a transmissão de cada tema atribuído e formalizá-la em um texto que a perenizasse.      

Almanaque 34: Luciana, os dois primeiros volumes da Coleção Almanaque Impresso foram lançados com o produto das Lições Introdutórias do ano de 2024 sobre Histeria e Obsessão, programa da Diretoria de Ensino do IPSM-MG. Poderia nos falar sobre essa escolha?

Luciana Silviano Brandão: A escolha desse tema se deu em razão de eu estar pessoalmente envolvida na coordenação das Lições Introdutórias, juntamente com Kátia Mariás e Lucia Melo. O tema das Lições foi escolhido no sentido de privilegiar o tema da 27ª Jornada da EBP-MG, instituição parceira na transmissão da psicanálise de orientação lacaniana no estado.

Almanaque 34:  Lilany, ainda no contexto das teses que Miller nos ensinou ao criar o Instituto do Campo Freudiano, a pesquisa, o trabalho teórico e a competência intelectual estão no âmbito do saber exposto, terreno próprio ao Instituto. Com a criação da Coleção Almanaque Impresso você estabelece, para as publicações da Almanaque, o binômio on-line e impresso. Gostaríamos de conhecer os fundamentos de sua decisão.

Lilany Pacheco: O fundamento principal que orienta o trabalho nos Institutos é a proposição de Miller “do instituto como aguilhão da Escola de Lacan”. Assim sendo, suas atividades, bem como suas publicações, visam expandir temas pinçados nas questões de Escola, para ampliarmos o seu alcance para todos aqueles que se interessam pela psicanálise lacaniana.      

Almanaque 34: Luciana, qual é a concepção da linha editorial da Coleção Almanaque Impresso?

Luciana Silviano Brandão: Nossa proposta é publicar textos recolhidos dos nossos Núcleos de Pesquisa, das Lições Introdutórias e das atividades realizadas no âmbito da Seção de Ensino, da Seção Clínica, das Conversações e das demais atividades realizadas no IPSM-MG.

Almanaque 34: Lilany, o projeto gráfico da publicação Almanaque On-line foi modificado recentemente. No entanto, continuarão sendo publicados nela os trabalhos que refletem a responsabilidade dos psicanalistas em sua prática clínica, a maneira como lidam com as dificuldades trazidas pelos efeitos das mudanças contemporâneas no laço social e a maneira como o Instituto oferece um lugar para aqueles que se interessam pela psicanálise.

Na Coleção Almanaque Impresso, qual será a política do Instituto em seu compromisso de tornar ainda mais abrangente o campo transferencial da comunidade em relação à psicanálise lacaniana?

Lilany Pacheco:  Saudamos a modificação recente da Almanaque On-line que, por sua natureza digital, tem mesmo um caráter mais expresso. Assim, pensamos que essas duas publicações do IPSM-MG se articulam borromeanemente para fazer jus ao Uno e ao Múltiplo que constituem as nossas atividades. 

Almanaque 34: Luciana, estamos curiosos para saber qual será a regularidade de lançamento dos livros da Coleção Almanaque Impresso e qual será o tema do próximo volume…

Luciana Silviano Brandão: A Coleção Almanaque Impresso terá periodicidade anual e a próxima publicação contemplará a produção dos Núcleos de Investigação e Pesquisa em Psicanálise que compõem a Seção Clínica do IPSM-MG.

Almanaque 34: Almanaque On-line deixa os sinceros agradecimentos pela entrevista!

 

Referência
MILLER, J-A. Tese sobre o Instituto no Campo Freudiano. Almanaque de Psicanálise e Saúde Mental, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, nov. 1998.

Capa, editorial e as demais fotografias que compõem  Almanaque 34  a partir desta rubrica,  foram gentilmente  cedidas por Tatiana Bicalho.Elas se encontram  em seu livro Poemas para Ascender, arte criativa que se apresenta como: “Isto não é um poema, mas isto também não é uma caixa de fósforo”  numa evocação a Magritte.  Apresentamos nossos mais sinceros agradecimentos à artista.
 
Tatiana Bicalho é fotógrafa, escritora e curiosa profissional em processos artísticos e não artísticos. Tem três livros de poesia publicados: Notícias Populares, pelo Selo Leme, da Editora Impressões de Minas, e Invenção a duas vozes, pela Editora Urutau e Poemas para Ascender, pela Impressões de Minas. Coordenou e lecionou para o curso de Português e suas literaturas na Universidade de Aswan, no Egito, por um período de 10 meses. Na mesma universidade, ajudou a criar a revista literária Flouka, com apoio da Embaixada do Brasil no Cairo.



Memória – O surgimento do Almanaque do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais

Almanaque 33 manteve uma descontraída conversa com Simone Souto, uma das criadoras da revista Almanaque para o Instituto de Psicanálise e Saúde Mental. Quisemos saber, assim de improviso – o que vale dizer, sem recursos à pesquisa e a arquivos, sem preocupação com a exatidão –, o que lhe evocavam as perguntas que seguem.

Almanaque 33: Como nasceu a revista Almanaque do IPSM-MG?

Simone Souto: Eu era diretora de publicação, se não me engano, e parece-me que foi na diretoria do Barreto.

Almanaque 33: Francisco Paes Barreto.

Simone Souto: Isso mesmo. O Instituto tinha acabado de ser criado, havia pouco tempo de funcionamento e me lembro de que a gente queria uma publicação que se configurasse como um veículo, rápido, alguma coisa bem simples, capaz de divulgar um pouco o que acontecia no Instituto, principalmente nos Núcleos de Investigação e Pesquisa. Assim, acho que, no primeiro número, todos os artigos tinham a ver com os Núcleos. A inspiração para fazer o Almanaque e lhe dar esse nome veio daquelas publicações antigas, lançadas e divulgadas por farmácias e que existiram até no início do século XX. Por isso, o layout, as letras e as ilustrações, tudo teve a ver com aqueles antigos almanaques de farmácia.

Almanaque 33: Então, o trabalho de pesquisa que houve foi inspirado por eles e acabou sendo muito precioso. Foi muito trabalhoso?

Simone Souto: Sim, nos servimos inclusive das cartas enigmáticas que também eram publicadas nos almanaques e faziam sucesso na época. Havia aquele almanaque do Biotônico Fontoura e ainda outro, referente a um óleo de bacalhau e do qual me esqueci o nome…

Almanaque 33: Óleo de rícino, é isso mesmo! Podemos pesquisar a respeito.

Simone Souto: Com relação à tiragem, ela era grande, 1.500 exemplares, porque nosso objetivo era fazer um pouco de panfletagem, distribuir o Almanaque por toda a cidade. Afinal, era um momento de o Instituto se fazer presente na cidade! Também foi um momento em que o Instituto já tinha presença muito forte nas instituições de Saúde Mental porque havia muito colegas da Saúde Mental que frequentavam bastante as atividades do Instituto. Logo, queríamos que o Almanaque pudesse retratar um pouco isso, assim como ajudar a consolidar a presença do Instituto na cidade.

Almanaque 33: O Almanaque tinha mesmo esse estilo tabloide … No ano 2000, já estava no ano 3 de publicação. É mesmo admirável o tamanho da tiragem. Era uma aposta muito grande naquela época.

Simone Souto: Sim, ele foi feito naquele formato, como um panfleto, com poucas páginas, e cada um de uma cor: branco, amarelo, verde… Nós o distribuíamos por todo canto e para todo o mundo.

Almanaque 33: Vimos um vermelho, um vermelho meio rosa, magenta. Verificamos que estão cadastrados na Biblioteca, na sede do Instituto.

Simone Souto: Também existiram os Papéis, que não tinham nada a ver com o Almanaque. Os Papéis foram a criação de uma outra publicação.

Almanaque 33: Não substituiu o Almanaque, portanto.

Simone Souto: Não, acho que não. Foram outra publicação. Os Papéis formaram outra linha de publicação e eram, inclusive, temáticos. Eu me lembro de um que foi sobre psicose, e que seguiam as temáticas investigadas nos Núcleos do Instituto. Continham textos mais extensos e densos enquanto que, no Almanaque, os textos eram mais leves e curtos.

Almanaque 33: Eram publicações dirigidas a públicos distintos. O Almanaque visava um universo maior, não é? Em um de seus números, por exemplo, pode-se ler um texto sobre a psicose na rede, escrito por você. Também há um sobre o corpo e a medicina, a psicanálise com crianças, sempre orientados pela psicanálise. São temas absolutamente da maior atualidade e seguem ainda como temas de pesquisa no IPSM-MG.

Simone Souto: Sim, procurávamos fazer um para cada Núcleo, para mostrar o que cada Núcleo investigava, pois o Instituto era mesmo uma novidade.

Almanaque 33: Sim, e as instituições também estavam acolhendo de braços abertos a relação da Saúde Mental e da psicanálise, quer dizer, a Saúde Mental orientada pela psicanálise. Você faria uma relação entre esse movimento de panfletagem da psicanálise, via a publicação Almanaque, a entrada do Instituto na cidade, a nossa presença nas instituições e o efeito de certa efervescência da psicanálise na cidade, naquela época?

Simone Souto: Sim. Eu acho que surtiu bom efeito, porque já naquela época o Instituto cresceu, não só em número de participantes, como em sua relação com várias instituições e, também, com relação à sua presença na cidade, foi um retorno interessante. A gente via as pessoas com o Almanaque nas mãos. Então, nessa época que não existia o online, a gente se valeu de uma grande distribuição do que era escrito e impresso. Essa estratégia teve boas consequências: grande interesse pelo Instituto; algum tempo depois, criamos o Curso de Psicanálise… Tenho a impressão de que esse Curso do Instituto foi criado pouco depois do início da difusão do Almanaque e, a partir daí, essa publicação passou também a promover esse Curso que despertou ainda mais o interesse das pessoas pelo que a psicanálise tem a dizer. Abordávamos muitas vezes assuntos sobre os quais as pessoas, em geral, achavam que a psicanálise não teria nada para dizer, mas que eram os temas muito discutidos naquela época, no âmbito da Saúde Mental, da Educação, etc. Com isso, foi possível trazer mais pessoas ao Instituto e que não tinham, a princípio, uma relação muito estrita com a psicanálise, permitindo-nos escutá-las.

Almanaque 33: Escutando o que você nos conta, ressalta-nos o incrível dessa ideia, porque ela captou ou lançou no ar daqueles tempos da psicanálise na cidade, e de uma forma alegre. Alegre e rigorosa, por apresentar toda uma pesquisa veiculada em uma publicação popular como os antigos almanaques eram.

Simone Souto: Sim, foi assim mesmo – ter uma publicação e um alcance mais popular, mas sem renunciar ao rigor da psicanálise.

Almanaque 33: Sim. E, além do mais, essa grande ideia foi a baixo custo, porque, pelo aspecto, pelo papel, pelo tipo de impressão, pode-se pensar que isso permitiu a grande tiragem, alcançando 1500 pessoas a cada edição! Foi mesmo uma brilhante e inovadora ideia, que frutifica até nossos dias. Agradecemos-lhe muitíssimo sua generosidade de nos falar sobre as raízes da publicação Almanaque.




Entrevista com Éric Laurent: Crianças em análise1

Éric Laurent
Psicanalista
Analista Membro da Escola (AME)
Membro da ECF, EBP, EOL, NEL, NLS
e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
ericlaurent@lacanzan.net

Silvia Tendlarz: O senhor vê alguma diferença entre a análise de crianças e a análise de adultos?

É. Laurent: Em princípio eu diria que não há diferença entre a análise de crianças e de adultos, mas, por outra parte, sim, há diferença entre crianças e adultos. Houve uma tendência, desde o aparecimento da análise de crianças nos anos 20, em Viena – tanto no grupo de Anna Freud, quanto no grupo de Melanie Klein –, de separá-las da análise de adultos, com o argumento de que o desenvolvimento e do manejo da palavra no adulto e na criança concretizavam essa diferença. O desenvolvimento da análise do jogo ou a difusão da técnica da análise dos desenhos – os desenhos foram mais utilizados por Anna Freud e o jogo por Melanie Klein – propuseram algo como uma técnica nova que necessitaria de praticantes especializados. Isso faz com que no movimento psicanalítico existam tensões entre aqueles que praticam análise com crianças e aqueles que não praticam. Muitas vezes essa separação encobre a diferença de sexos: são as mulheres aquelas que se ocupam das crianças, e os homens não. Há poucos homens que se ocupam disso – embora dependa dos países. Essa oposição é falsa e pode produzir dentro da sociedade de psicanálise a realização da diferença entre os sexos. Não há diferença entre a análise de crianças e adultos pois, qualquer que seja a idade, o sujeito desde o início está estruturado da mesma maneira. Isso significa que o manejo da língua não tem nada a ver com a estruturação do sujeito como estruturado pelo significante. Na concepção lacaniana, o fato de que a criança fale, fale muito pouco ou fale de maneira fragmentada, não a impede de estar situada na linguagem como tal. Ainda que haja um dizer sem palavras da criança, este está estruturado como um dizer. É precisamente porque Lacan situa de maneira radical o sujeito na linguagem o que permite abordar a criança da mesma maneira. O desenvolvimento da aprendizagem da língua não significa uma melhor localização na língua. A posição radical de Lacan de que o inconsciente está estruturado como uma linguagem permite considerar que, fale ou não, o sujeito está completamente definido por sua localização. Em segundo lugar, durante muito tempo algo que se esqueceu do ensino de Lacan é que nem tudo é o inconsciente na experiência da psicanálise. Desde Freud, por um lado, está o inconsciente, e, por outro lado, está o Isso (que não está estruturado como uma linguagem). Em “O outro Lacan”, J.-A. Miller enfatiza sobre esse aspecto que não foi muito bem-visto durante anos, todo esse aspecto de examinar o Isso e da localização correta da pulsão durante a análise, que foi uma preocupação constante em Lacan e que foi tomada de distintas maneiras segundo a época de seu ensino até a formulação do objeto a. Isso tem muita importância para a criança. Devemos distinguir de maneira correta a posição da criança. A diferença entre a criança e o adulto é que a criança tem pais que a apresentam ao analista, e que esses pais não estão mortos para ela. A criança manifesta com seus sintomas a verdade do que é o discurso familiar sobre ela (discurso de idealizações, o que se espera dela, em que lugar está exatamente). Esse discurso sobre ela não é o essencial, o essencial é a verdade, o ponto de gozo que há em tudo isso. Em seu sintoma, manifesta a articulação entre o pai e a mãe, o que foi o desejo que produziu essa criança. A criança é produto ou é dejeto de um desejo. Lacan dizia que a maneira pela qual o psicanalista pode intervir mais facilmente é quando há essa manifestação sintomática na criança. O protótipo disso é a fobia. Os casos mais interessantes publicados foram sempre casos de fobia: o caso do Pequeno Hans, o caso de Richard de Melanie Klein, o caso de Piggle de Winnicott. Os casos mais desfavoráveis são quando a criança não é sintoma da família, mas quando ela se apresenta como o objeto do fantasma da mãe. Nisso há que se distinguir o fantasma e o sintoma como registros distintos da experiência. No sintoma o que predomina é a fixação de uma metáfora, o gozo que há em palavras congeladas, em ditos que desempenham um papel no destino da criança, ou, como dizia Freud, o sintoma organizado pelo núcleo superegóico. Mas quando a criança é o objeto do fantasma da mãe, o que predomina é um gozo que não se articula à cadeia significante, um gozo que resiste à interpretação analítica como tal. É muito mais difícil conseguir modificar a posição da criança e permitir que ela se coloque de outra maneira no discurso da família. Esses são os casos de psicose, de autismo. Ao mesmo tempo, pode-se dizer que do lado do sujeito como tal, relacionado à presença do Outro da palavra que já está no mundo quando se nasce, a criança está na mesma posição que o adulto. Mas, em relação ao objeto da pulsão, ao Isso e ao gozo, há diferenças entre a criança e o adulto.

Silvia Tendlarz: O senhor acredita que também nas crianças acontece a neurose de transferência?

É. Laurent: Sim. As crianças têm transferência. Esse foi o debate entre Anna Freud e Melanie Klein, e foi Melanie Klein quem o abordou de uma maneira satisfatória dizendo que a transferência da criança e do adulto são iguais, e que devem ser tratadas da mesma maneira. Em termos lacanianos, há na criança a possibilidade do Sujeito Suposto Saber. Qualquer pessoa que recebe uma criança em análise vê muito bem como a criança situa algo do saber no lugar do analista, o que permite a transferência. Sujeito Suposto Saber do que foi dito anteriormente para essa criança em análise e mesmo antes que essa criança iniciasse a análise. O analista é a testemunha de que em algum lugar há um suposto saber de tudo o que foi dito. Nesse sentido, existe a estrutura da transferência nas crianças.

Silvia Tendlarz: O senhor encontra alguma especificidade na análise com crianças?

É. Laurent: Claro, a especificidade está na divisão entre o sintoma e o fantasma.  O caso em que a mãe se articula ao pai produzindo o sintoma como clara articulação do desejo da mãe em relação à posição do pai, ao Nome-do-Pai, é diferente de quando essa articulação não ocorre e o desejo da mãe fica articulado ao gozo da mãe sem essa mediação. Situar bem essas coisas é uma particularidade da análise das crianças. Também há outra particularidade que é o fato daquele que conduz o tratamento deixar-se cegar pela questão do desenvolvimento. Um adulto está supostamente desenvolvido, o que é uma suposição. O fato de que a criança esteja se desenvolvendo, que haja processos de maturação, dá a ilusão de que a estrutura não está constituída, que será constituída. Ainda que seja verdade que a criança experimenta seu corpo, os objetos de seu corpo que pode entregar ao outro, objeto oral, anal – que são os mais conhecidos –, o olhar e a voz, não podemos pensar que tudo se explicaria por uma fase do desenvolvimento. Essa tentação sempre foi um perigo: reduzir a posição do analista, as dificuldades da análise das crianças, ao ponto de vista do desenvolvimento. Há um ponto de vista lacaniano do desenvolvimento da criança que é a localização própria do corpo, da articulação do sujeito com seu corpo próprio.

Silvia Tendlarz: E quanto ao final de análise?

Laurent: Como lhe disse anteriormente, há os finais de análise de crianças de fato e os finais de análise que devem ocorrer. Há grande quantidade de casos em que se vai ao analista de crianças para obter um alívio do sintoma, o que pode se reduzir a um deslocamento do sintoma. Mas deslocar o ponto de vista do que era insuportável já não é tão ruim. O que seria um final de análise da criança não estaria do lado do sintoma, mas do lado do fantasma. Há poucas análises de criança que podemos considerar como terminadas; nem a análise do Pequeno Hans, nem a de Piggle, nem a de Richard são análises terminadas. Creio que é algo que há que se produzir. Contudo, há um paradoxo: poderíamos falar de análise terminada depois do encontro com o que é o gozo sexual como tal; o paradoxo seria de que, neste momento, uma criança deixa de se definir como criança. No momento no qual se poderia verificar que há uma análise terminada, é o momento em que a criança desaparece e o que há é o que se chama adulto, alguém que se enfrenta com o gozo sexual como tal.

Tradução: Beatriz Espírito Santo

Revisão: Maria Rita Guimarães


1 Nossos sinceros agradecimentos a Silvia Elena Tendlarz pela autorização para publicação desta entrevista em Almanaque n. 33. A entrevista encontra-se publicada no blog da autora, disponível em: https://www.silviaelenatendlarz.com/entrevista-a-eric-laurent/.