Memória – O surgimento do Almanaque do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais

Almanaque 33 manteve uma descontraída conversa com Simone Souto, uma das criadoras da revista Almanaque para o Instituto de Psicanálise e Saúde Mental. Quisemos saber, assim de improviso – o que vale dizer, sem recursos à pesquisa e a arquivos, sem preocupação com a exatidão –, o que lhe evocavam as perguntas que seguem.

Almanaque 33: Como nasceu a revista Almanaque do IPSM-MG?

Simone Souto: Eu era diretora de publicação, se não me engano, e parece-me que foi na diretoria do Barreto.

Almanaque 33: Francisco Paes Barreto.

Simone Souto: Isso mesmo. O Instituto tinha acabado de ser criado, havia pouco tempo de funcionamento e me lembro de que a gente queria uma publicação que se configurasse como um veículo, rápido, alguma coisa bem simples, capaz de divulgar um pouco o que acontecia no Instituto, principalmente nos Núcleos de Investigação e Pesquisa. Assim, acho que, no primeiro número, todos os artigos tinham a ver com os Núcleos. A inspiração para fazer o Almanaque e lhe dar esse nome veio daquelas publicações antigas, lançadas e divulgadas por farmácias e que existiram até no início do século XX. Por isso, o layout, as letras e as ilustrações, tudo teve a ver com aqueles antigos almanaques de farmácia.

Almanaque 33: Então, o trabalho de pesquisa que houve foi inspirado por eles e acabou sendo muito precioso. Foi muito trabalhoso?

Simone Souto: Sim, nos servimos inclusive das cartas enigmáticas que também eram publicadas nos almanaques e faziam sucesso na época. Havia aquele almanaque do Biotônico Fontoura e ainda outro, referente a um óleo de bacalhau e do qual me esqueci o nome…

Almanaque 33: Óleo de rícino, é isso mesmo! Podemos pesquisar a respeito.

Simone Souto: Com relação à tiragem, ela era grande, 1.500 exemplares, porque nosso objetivo era fazer um pouco de panfletagem, distribuir o Almanaque por toda a cidade. Afinal, era um momento de o Instituto se fazer presente na cidade! Também foi um momento em que o Instituto já tinha presença muito forte nas instituições de Saúde Mental porque havia muito colegas da Saúde Mental que frequentavam bastante as atividades do Instituto. Logo, queríamos que o Almanaque pudesse retratar um pouco isso, assim como ajudar a consolidar a presença do Instituto na cidade.

Almanaque 33: O Almanaque tinha mesmo esse estilo tabloide … No ano 2000, já estava no ano 3 de publicação. É mesmo admirável o tamanho da tiragem. Era uma aposta muito grande naquela época.

Simone Souto: Sim, ele foi feito naquele formato, como um panfleto, com poucas páginas, e cada um de uma cor: branco, amarelo, verde… Nós o distribuíamos por todo canto e para todo o mundo.

Almanaque 33: Vimos um vermelho, um vermelho meio rosa, magenta. Verificamos que estão cadastrados na Biblioteca, na sede do Instituto.

Simone Souto: Também existiram os Papéis, que não tinham nada a ver com o Almanaque. Os Papéis foram a criação de uma outra publicação.

Almanaque 33: Não substituiu o Almanaque, portanto.

Simone Souto: Não, acho que não. Foram outra publicação. Os Papéis formaram outra linha de publicação e eram, inclusive, temáticos. Eu me lembro de um que foi sobre psicose, e que seguiam as temáticas investigadas nos Núcleos do Instituto. Continham textos mais extensos e densos enquanto que, no Almanaque, os textos eram mais leves e curtos.

Almanaque 33: Eram publicações dirigidas a públicos distintos. O Almanaque visava um universo maior, não é? Em um de seus números, por exemplo, pode-se ler um texto sobre a psicose na rede, escrito por você. Também há um sobre o corpo e a medicina, a psicanálise com crianças, sempre orientados pela psicanálise. São temas absolutamente da maior atualidade e seguem ainda como temas de pesquisa no IPSM-MG.

Simone Souto: Sim, procurávamos fazer um para cada Núcleo, para mostrar o que cada Núcleo investigava, pois o Instituto era mesmo uma novidade.

Almanaque 33: Sim, e as instituições também estavam acolhendo de braços abertos a relação da Saúde Mental e da psicanálise, quer dizer, a Saúde Mental orientada pela psicanálise. Você faria uma relação entre esse movimento de panfletagem da psicanálise, via a publicação Almanaque, a entrada do Instituto na cidade, a nossa presença nas instituições e o efeito de certa efervescência da psicanálise na cidade, naquela época?

Simone Souto: Sim. Eu acho que surtiu bom efeito, porque já naquela época o Instituto cresceu, não só em número de participantes, como em sua relação com várias instituições e, também, com relação à sua presença na cidade, foi um retorno interessante. A gente via as pessoas com o Almanaque nas mãos. Então, nessa época que não existia o online, a gente se valeu de uma grande distribuição do que era escrito e impresso. Essa estratégia teve boas consequências: grande interesse pelo Instituto; algum tempo depois, criamos o Curso de Psicanálise… Tenho a impressão de que esse Curso do Instituto foi criado pouco depois do início da difusão do Almanaque e, a partir daí, essa publicação passou também a promover esse Curso que despertou ainda mais o interesse das pessoas pelo que a psicanálise tem a dizer. Abordávamos muitas vezes assuntos sobre os quais as pessoas, em geral, achavam que a psicanálise não teria nada para dizer, mas que eram os temas muito discutidos naquela época, no âmbito da Saúde Mental, da Educação, etc. Com isso, foi possível trazer mais pessoas ao Instituto e que não tinham, a princípio, uma relação muito estrita com a psicanálise, permitindo-nos escutá-las.

Almanaque 33: Escutando o que você nos conta, ressalta-nos o incrível dessa ideia, porque ela captou ou lançou no ar daqueles tempos da psicanálise na cidade, e de uma forma alegre. Alegre e rigorosa, por apresentar toda uma pesquisa veiculada em uma publicação popular como os antigos almanaques eram.

Simone Souto: Sim, foi assim mesmo – ter uma publicação e um alcance mais popular, mas sem renunciar ao rigor da psicanálise.

Almanaque 33: Sim. E, além do mais, essa grande ideia foi a baixo custo, porque, pelo aspecto, pelo papel, pelo tipo de impressão, pode-se pensar que isso permitiu a grande tiragem, alcançando 1500 pessoas a cada edição! Foi mesmo uma brilhante e inovadora ideia, que frutifica até nossos dias. Agradecemos-lhe muitíssimo sua generosidade de nos falar sobre as raízes da publicação Almanaque.




Entrevista com Éric Laurent: Crianças em análise1

Éric Laurent
Psicanalista
Analista Membro da Escola (AME)
Membro da ECF, EBP, EOL, NEL, NLS
e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
ericlaurent@lacanzan.net

Silvia Tendlarz: O senhor vê alguma diferença entre a análise de crianças e a análise de adultos?

É. Laurent: Em princípio eu diria que não há diferença entre a análise de crianças e de adultos, mas, por outra parte, sim, há diferença entre crianças e adultos. Houve uma tendência, desde o aparecimento da análise de crianças nos anos 20, em Viena – tanto no grupo de Anna Freud, quanto no grupo de Melanie Klein –, de separá-las da análise de adultos, com o argumento de que o desenvolvimento e do manejo da palavra no adulto e na criança concretizavam essa diferença. O desenvolvimento da análise do jogo ou a difusão da técnica da análise dos desenhos – os desenhos foram mais utilizados por Anna Freud e o jogo por Melanie Klein – propuseram algo como uma técnica nova que necessitaria de praticantes especializados. Isso faz com que no movimento psicanalítico existam tensões entre aqueles que praticam análise com crianças e aqueles que não praticam. Muitas vezes essa separação encobre a diferença de sexos: são as mulheres aquelas que se ocupam das crianças, e os homens não. Há poucos homens que se ocupam disso – embora dependa dos países. Essa oposição é falsa e pode produzir dentro da sociedade de psicanálise a realização da diferença entre os sexos. Não há diferença entre a análise de crianças e adultos pois, qualquer que seja a idade, o sujeito desde o início está estruturado da mesma maneira. Isso significa que o manejo da língua não tem nada a ver com a estruturação do sujeito como estruturado pelo significante. Na concepção lacaniana, o fato de que a criança fale, fale muito pouco ou fale de maneira fragmentada, não a impede de estar situada na linguagem como tal. Ainda que haja um dizer sem palavras da criança, este está estruturado como um dizer. É precisamente porque Lacan situa de maneira radical o sujeito na linguagem o que permite abordar a criança da mesma maneira. O desenvolvimento da aprendizagem da língua não significa uma melhor localização na língua. A posição radical de Lacan de que o inconsciente está estruturado como uma linguagem permite considerar que, fale ou não, o sujeito está completamente definido por sua localização. Em segundo lugar, durante muito tempo algo que se esqueceu do ensino de Lacan é que nem tudo é o inconsciente na experiência da psicanálise. Desde Freud, por um lado, está o inconsciente, e, por outro lado, está o Isso (que não está estruturado como uma linguagem). Em “O outro Lacan”, J.-A. Miller enfatiza sobre esse aspecto que não foi muito bem-visto durante anos, todo esse aspecto de examinar o Isso e da localização correta da pulsão durante a análise, que foi uma preocupação constante em Lacan e que foi tomada de distintas maneiras segundo a época de seu ensino até a formulação do objeto a. Isso tem muita importância para a criança. Devemos distinguir de maneira correta a posição da criança. A diferença entre a criança e o adulto é que a criança tem pais que a apresentam ao analista, e que esses pais não estão mortos para ela. A criança manifesta com seus sintomas a verdade do que é o discurso familiar sobre ela (discurso de idealizações, o que se espera dela, em que lugar está exatamente). Esse discurso sobre ela não é o essencial, o essencial é a verdade, o ponto de gozo que há em tudo isso. Em seu sintoma, manifesta a articulação entre o pai e a mãe, o que foi o desejo que produziu essa criança. A criança é produto ou é dejeto de um desejo. Lacan dizia que a maneira pela qual o psicanalista pode intervir mais facilmente é quando há essa manifestação sintomática na criança. O protótipo disso é a fobia. Os casos mais interessantes publicados foram sempre casos de fobia: o caso do Pequeno Hans, o caso de Richard de Melanie Klein, o caso de Piggle de Winnicott. Os casos mais desfavoráveis são quando a criança não é sintoma da família, mas quando ela se apresenta como o objeto do fantasma da mãe. Nisso há que se distinguir o fantasma e o sintoma como registros distintos da experiência. No sintoma o que predomina é a fixação de uma metáfora, o gozo que há em palavras congeladas, em ditos que desempenham um papel no destino da criança, ou, como dizia Freud, o sintoma organizado pelo núcleo superegóico. Mas quando a criança é o objeto do fantasma da mãe, o que predomina é um gozo que não se articula à cadeia significante, um gozo que resiste à interpretação analítica como tal. É muito mais difícil conseguir modificar a posição da criança e permitir que ela se coloque de outra maneira no discurso da família. Esses são os casos de psicose, de autismo. Ao mesmo tempo, pode-se dizer que do lado do sujeito como tal, relacionado à presença do Outro da palavra que já está no mundo quando se nasce, a criança está na mesma posição que o adulto. Mas, em relação ao objeto da pulsão, ao Isso e ao gozo, há diferenças entre a criança e o adulto.

Silvia Tendlarz: O senhor acredita que também nas crianças acontece a neurose de transferência?

É. Laurent: Sim. As crianças têm transferência. Esse foi o debate entre Anna Freud e Melanie Klein, e foi Melanie Klein quem o abordou de uma maneira satisfatória dizendo que a transferência da criança e do adulto são iguais, e que devem ser tratadas da mesma maneira. Em termos lacanianos, há na criança a possibilidade do Sujeito Suposto Saber. Qualquer pessoa que recebe uma criança em análise vê muito bem como a criança situa algo do saber no lugar do analista, o que permite a transferência. Sujeito Suposto Saber do que foi dito anteriormente para essa criança em análise e mesmo antes que essa criança iniciasse a análise. O analista é a testemunha de que em algum lugar há um suposto saber de tudo o que foi dito. Nesse sentido, existe a estrutura da transferência nas crianças.

Silvia Tendlarz: O senhor encontra alguma especificidade na análise com crianças?

É. Laurent: Claro, a especificidade está na divisão entre o sintoma e o fantasma.  O caso em que a mãe se articula ao pai produzindo o sintoma como clara articulação do desejo da mãe em relação à posição do pai, ao Nome-do-Pai, é diferente de quando essa articulação não ocorre e o desejo da mãe fica articulado ao gozo da mãe sem essa mediação. Situar bem essas coisas é uma particularidade da análise das crianças. Também há outra particularidade que é o fato daquele que conduz o tratamento deixar-se cegar pela questão do desenvolvimento. Um adulto está supostamente desenvolvido, o que é uma suposição. O fato de que a criança esteja se desenvolvendo, que haja processos de maturação, dá a ilusão de que a estrutura não está constituída, que será constituída. Ainda que seja verdade que a criança experimenta seu corpo, os objetos de seu corpo que pode entregar ao outro, objeto oral, anal – que são os mais conhecidos –, o olhar e a voz, não podemos pensar que tudo se explicaria por uma fase do desenvolvimento. Essa tentação sempre foi um perigo: reduzir a posição do analista, as dificuldades da análise das crianças, ao ponto de vista do desenvolvimento. Há um ponto de vista lacaniano do desenvolvimento da criança que é a localização própria do corpo, da articulação do sujeito com seu corpo próprio.

Silvia Tendlarz: E quanto ao final de análise?

Laurent: Como lhe disse anteriormente, há os finais de análise de crianças de fato e os finais de análise que devem ocorrer. Há grande quantidade de casos em que se vai ao analista de crianças para obter um alívio do sintoma, o que pode se reduzir a um deslocamento do sintoma. Mas deslocar o ponto de vista do que era insuportável já não é tão ruim. O que seria um final de análise da criança não estaria do lado do sintoma, mas do lado do fantasma. Há poucas análises de criança que podemos considerar como terminadas; nem a análise do Pequeno Hans, nem a de Piggle, nem a de Richard são análises terminadas. Creio que é algo que há que se produzir. Contudo, há um paradoxo: poderíamos falar de análise terminada depois do encontro com o que é o gozo sexual como tal; o paradoxo seria de que, neste momento, uma criança deixa de se definir como criança. No momento no qual se poderia verificar que há uma análise terminada, é o momento em que a criança desaparece e o que há é o que se chama adulto, alguém que se enfrenta com o gozo sexual como tal.

Tradução: Beatriz Espírito Santo

Revisão: Maria Rita Guimarães


1 Nossos sinceros agradecimentos a Silvia Elena Tendlarz pela autorização para publicação desta entrevista em Almanaque n. 33. A entrevista encontra-se publicada no blog da autora, disponível em: https://www.silviaelenatendlarz.com/entrevista-a-eric-laurent/.