Expediente Almanaque On-line – Agosto/2024 – Nº 33

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Revista Almanaque On-line é uma publicação do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais – IPSM-MG.

Periodicidade: Semestral

ISSN: 1982-5617

A reprodução ou a citação de fragmentos dos artigos é autorizada, desde que acompanhada das devidas referências.

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Revisora:

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Almanaque On-line – Agosto/2024 – Nº 33

O único e o específico na experiência analítica

 ALMANAQUE | NORMAS | EXPEDIENTE | CONTATO
ISSN 1982-5617

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Histeria: Do Matema Da Fantasia Ao Discurso

GERMANA PIMENTA BONFIOLI

 

As estruturas clínicas – neurose, psicose e perversão – são decorrentes de três modos distintos de defesa contra a castração. Na neurose, o modo em questão é o recalque. Forma de negação da castração no Outro, que supõe o atravessamento do Édipo e a consequente inscrição do Nome do Pai. Como efeito, os sujeitos neuróticos, de posse da significação fálica, podem se inscrever de um dos lados na partilha do sexo. Dois tipos clínicos são característicos dessa estrutura: histeria e neurose obsessiva. A histeria tomada como a neurose de base e a neurose obsessiva como seu dialeto.

A histeria é, portanto, um modo particular do sujeito subjetivar a falta imposta pela castração, que poderá se manifestar nas maneiras sintomáticas variadas, mas preservando uma maneira típica de lidar com o desejo, estabelecer identificações e se relacionar com o Outro. Um modo do sujeito se defender dessa falta que coloca em marcha algumas estratégias fundamentais.

Destacaremos aqui dois momentos distintos ao longo da obra de Lacan em que ele irá trabalhar a histeria: nos anos 50, quando o matema da fantasia histérica aparece pela única vez, e em 1969/1970, no Seminário 17, em que a histeria é tomada como discurso.

No Seminário 8, ao se deter sobre os “efeitos sintomáticos do complexo de castração” (LACAN, 1960/1961, p. 242), analisando o caso Dora, Lacan enuncia, através do matema da fantasia histérica, uma estratégia fundamental de defesa histérica.

Objeto (a), sobre a sua castração imaginária, em sua relação com o Outro. Oferece, desse modo, sua própria castração ao Outro, como forma de garantir sua existência.

O sujeito histérico, mais que qualquer um, orienta-se pelo desejo do Outro. Interroga-se a todo tempo pelo desejo do Outro para a partir daí se colocar, como objeto, nesse lugar. De olho no que falta ao Outro, está sempre pronto a se posicionar, de modos diversos, como quem irá preencher essa falta. Essa versatilidade histérica pode ser facilmente observada na clínica, por exemplo, através dos variados estilos que uma histérica pode assumir diante de diferentes parcerias, fazendo-se a mulher sob medida para cada homem. Ao mesmo tempo, para manter esse outro desejante, é condição também se subtrair como objeto, não satisfazê-lo inteiramente, esquivando-se em tornar-se objeto de gozo. E aqui outro modo típico de funcionamento da mulher histérica aparece: ela segue em direção ao desejo do Outro, provoca-o e, na sequência, se esquiva dele como meio de resistir a ser tomada como objeto de gozo.

No matema da fantasia histérica, é como objeto a que a histérica se identifica, mas o que está por baixo da barra, aquilo que ela se esforça em ocultar, através dessa estratégia de oferecer-se como objeto de desejo do Outro, é sua própria castração. Do lado direito do matema, o que aparece como resultado dessa oferta é um Outro sem barra, o Outro não castrado. Ao apostar que pode completar o outro, fazendo-o passar de um Outro barrado para um Outro sem barra, o que está em jogo é a sua relação com a falta. A aposta é, em última instância, na sua própria existência, como toda. Se a barra não incide sobre o outro, não incide também sobre si mesma.

É a propósito de Dora, célebre caso de Freud (FREUD, 1905, p. 12-115), que Lacan irá nos esclarecer a respeito das regras desse jogo complicado. O pai de Dora, sabidamente impotente, é incapaz de copular com sua amante, a Sra. K. Mas isso não importa se é ela, seguindo o molde da fantasia histérica, quem irá sustentar a relação dos dois, fornecendo ao pai o signo fálico que lhe falta.

Pois tudo o que está em questão para Dora, como para toda histérica, é se fornecedora desse signo sob a forma imaginária. O devotamento da histérica, sua paixão por se identificar com todos os dramas sentimentais, de estar ali, de sustentar nos bastidores tudo que possa acontecer de apaixonante e que, no entanto, não é da sua conta, é aí que está a mola, o recurso do que vegeta e prolifera todo o seu comportamento (LACAN, 1960/1961, p. 243).

Tudo vai bem até o ponto em que estão todos insatisfeitos em seus desejos. Pois faz parte dos artifícios desse jogo que, para seguir desejando, o Outro seja mantido insatisfeito. Mesmo ao preço da insatisfação do seu próprio desejo, o que vai se tornar a marca registrada de uma histeria. Mais importante do que a satisfação do seu desejo é que o Outro mantenha o enigma como garantia da sua existência.

É ao seu pai que Dora demanda amor. Ao pai do terceiro tempo do Édipo, descrito por Lacan (LACAN, 1957/1958, p. 200), como aquele que estaria em condição de fornecer-lhe simbolicamente o que lhe falta. Nos dois tempos antecedentes, o sujeito, primeiramente, se identifica imaginariamente ao objeto de desejo da mãe. A seguir, a mãe de Dora, que mal aparece na história, é privada de seu falo imaginário e permanecerá aí ausente da situação. A lei paterna incide, a interdição é consumada, e assim estamos diante de um sujeito neurótico. Os dois primeiros tempos lógicos são atravessados e chega-se então à terceira etapa do Édipo, que guarda uma grande importância, pois “é dela que depende a saída do Complexo de Édipo” (LACAN, 1957/1958, p. 200).

O terceiro tempo do Édipo, destacado por Lacan, é aquele em que o pai tem que dar provas de possuir o objeto fálico, podendo dá-lo ou recusá-lo. No caso de Dora ele não o dá, porque não o tem, isso a mantém presa no complexo de Édipo, incapaz de atravessá-lo. Seu pai fracassa em fornecer-lhe o dom viril. Como boa histérica, Dora sofre de amor ao pai e segue ligada a ele. O tributo de amor ao pai, facilmente identificável em Dora, impede a histérica de atravessar o Édipo, deduzindo que o pai pode lhe dar o que lhe falta mantendo o seu ponto de castração intacto.

A Sra. K é, na medida em que é o desejo do pai, o objeto de desejo de Dora. Mas seu pai é impotente, e ”seu desejo pela Sra. K é um desejo barrado” (LACAN, 1957/1958, P380). Assim tem-se um desejo que não se satisfaz nem para Dora nem para seu pai. E isso é o que mantém as coisas equilibradas. Mas, para a manutenção desse equilíbrio, é necessário que Dora encontre um ponto de identificação que lhe permita sustentar seu pai em um lugar potente. Nesse caso, o Sr. K é que funciona como o outro imaginário portador das insígnias fálicas necessárias à identificação de Dora. É por intermédio dele, “é na medida que ela é o Sr. K, é no ponto imaginário constituído pela personalidade do Sr. K que Dora está ligada ao personagem da Sra. K” (LACAN, 1956-1957, p. 141).

Pelo seu apego homossexual à Sra. K, Dora irá se esforçar em dar suporte à sua relação com seu pai, deixando-se tomar como cúmplice. Nota-se a presença das indicações de Lacan (LACAN, 1956-1957) a respeito da histeria: a histérica ama por procuração, seu objeto é homossexual e ela o aborda por identificação a alguém do outro sexo.

Em Intervenção sobre a transferência (LACAN, 1951, p. 214-225), Lacan esconde do caso Dora três desenvolvimentos da verdade mediados por três inversões dialéticas. No primeiro desenvolvimento trazido por Dora a Freud, seu pai e a Sra. K são amantes há anos, e ela é oferecida como moeda de troca ao Sr. K. Numa primeira inversão dialética, Freud questiona: ”Qual é a sua própria parte na desordem de que você se queixa?”. Surge um novo desenvolvimento da verdade: a relação dos amantes perdura graças à sua cumplicidade. Na segunda inversão dialética, Freud observa que o ciúme de Dora pelo pai mascara seu interesse pela Sra. K. No terceiro desenvolvimento tem-se, assim, o fascínio de Dora pela Sra. K, que culminaria na última inversão dialética, em que a Sra. K é aquela quem guardaria a chave do mistério sobre a feminilidade. É ela quem pode responder à Dora a questão fundamental de toda histérica: o que é ser uma mulher?

Retomando o matema da fantasia na histeria, temos aqui um outro modo de lê-lo: do lado esquerdo, teríamos a identificação viril de Dora ao Sr. K, que recobre sua castração para, através dessa posição, poder fazer a pergunta à Sra. K, que encarna o outro sem barra e poderia, desse modo, responder a pergunta sobre A mulher.

Essa interrogação primordial, ”O que é ser uma mulher?”, pode ser tomada como algo que define a histeria. É isso que interessa saber à histérica. A despeito de toda a querelância em que um sujeito histérico pode incidir, de toda a sorte de queixumes típicos da insatisfação histérica que, para preservar seu desejo, mantém a falta recusando-se à satisfação, a queixa fundamental na histeria refere-se à falta de identidade, falta de um significante que possa definir o seu ser. Essa é, então, a questão crucial endereçada ao Outro, no caso de Dora, representado pela Sra. K. Esse endereçamento ao Outro de uma questão sobre o feminino é descrito também através do discurso histérico.

No seminário 17, Lacan nos oferece uma nova leitura da histeria, calcada na lógica discursiva. Institui o discurso histérico como um dos quatro modos de se estabelecer laço social, arranjando os elementos significantes, o sujeito e o gozo da seguinte forma:

 

 

Na parte superior do discurso da histeria, tem-se $® S1. A posição dominante desse discurso é ocupada pelo sujeito barrado, muito bem representado na histeria, sujeito dividido por excelência, que evidencia sua divisão através de seus enigmas. Quem ocupa o lugar do outro é um S1, somente a um mestre sua pergunta poderia ser confiada. Na parte inferior do matema, sob o sujeito barrado, o que aparece em posição de verdade é o objeto a, causa de desejo, como aquilo que o sujeito desconhece ao se endereçar ao mestre interrogando-o em busca de um S2. O saber instalado no lugar da produção deve responder a questão sobre o que é uma mulher para, de posse dele, poder sustentar a relação sexual. Em última instância, esse é o saber que a histérica espera ver produzido, e, para Lacan (LACAN, 1969-1970, p. 98), é aí que reside o mérito desse discurso, por manter de pé em sua estrutura a pergunta sobre a relação sexual. Porém, o S2 que o mestre produz é, por estrutura, insuficiente para lhe dizer sobre o seu gozo de mulher, pois não há o significante que possa definir o que é uma mulher.

Ao eleger alguém para ocupar esse lugar S1 e endereçar-lhe sua questão, pressupondo que este pode produzir um saber a seu respeito, ela se aliena ao mestre deixando-se definir pelos sentidos vindos dele. A histérica interessa-se tanto por um mestre, esforça-se tanto por sustentá-lo que, como nos diz Lacan, é preciso indagar se não foi ela quem o inventou. Porém, é preciso que esse mestre tenha seus limites. É o que se vê na ambiguidade histérica, que está sempre colocando o senhor em cheque e destituindo-o.

Ela quer um mestre. Ela quer que o outro seja um mestre, que saiba muitas e muitas coisas, mas mesmo assim, que não saiba demais, para que não acredite que ela é o prêmio máximo de todo o seu saber. Em outras palavras, quer um mestre sobre o qual ela reine. Ela reina, e ele não governa (LACAN, 1969-1970, pg. 136).

Se por um lado o sujeito histérico se endereça a um mestre, supondo-lhe uma potência em relação ao saber, por outro ele aliena-se do mestre, resistindo a ser dividido pelo S1, ao recusar que seu corpo obedeça a ele. É pela via do corpo que escapa a alienação ao mestre: isso que Freud chamava de complacência somática, Lacan nomeou por recusa do corpo na histeria.

No caso Dora, a impotência de seu pai perpassa toda a trama e ainda assim é no lugar do senhor que ele vai estar para ela, levando Lacan (LACAN, 1969-1970, p. 100) a reafirmar a constituição do pai por avaliação simbólica. Por mais moribundo que possa estar, há uma ”potência de criação” implicada na palavra pai que faz com que ele desempenhe ”esse papel-mestre no discurso da histérica”. O pai colocado no lugar de S1, puro significante, é dotado de uma potência criadora sobre o real do seu gozo, sob a forma de um saber. Assim, na fantasia de que o pai é potente para fornecer-lhe o significante da relação sexual, ela o salva. Salvar o pai comporta, conforme Alvarenga (ALVARENGA, p. 19), o paradoxo de conferir a ele uma potência para, a seguir, jogá-lo na impotência, pois o saber que produz será sempre insuficiente para responder-lhe sobre o papel da mulher na relação sexual, deixando o próprio sujeito histérico na impotência. Mas isso não faz com que Dora desista de se dirigir ao mestre, pelo contrário: condena-a a insistir na questão. Fato que se observa muitas vezes na clínica sob a forma de uma demanda infinita ao pai ou a qualquer outro que venha a ocupar esse lugar de S1.

Uma saída seria através do que Lacan chamou, ainda no Seminário XVII, de ”terceiro homem”. Que a histérica possa se endereçar a um terceiro homem, que assim é chamado por ter o órgão, e que possa permitir dividir-se por ele, deixando-se tomar por objeto de seu gozo. É aquele que conjuga o ideal do pai universal abstrato com o desejo particular de um homem concreto (ALVARENGA, p. 20). O Sr. K convém a Dora como terceiro homem, por estar claro desde muito cedo, quando ele lhe assedia, ser possuidor do órgão. Mas Dora não se interessa por fazer do seu atributo fálico meio de gozo, por ”fazer dele sua felicidade” (LACAN, 1969-1970, p. 100). Quando o Sr. K diz à Dora: ”Minha mulher não é nada pra mim. (…) nesse momento o gozo do Outro se oferece ela, e ela não o quer, porque o que quer é o saber como meio de gozo…” (LACAN, 1969-1970, pg. 101). Assim, pode-se dizer que o Sr. K não cumpre sua função de terceiro homem para Dora, uma vez que ela não se deixa interpelar por ele, não consente como desejo dele.

Seguindo o caso Dora, através do matema da fantasia e do discurso histérico, em busca das estratégias de defesa na histeria, vê-se que sua pergunta fundamental, ”O que é uma mulher?”, é sua paradoxal defesa. Insistir na questão, apostando que outro tem a reposta, é seguir acreditando que A mulher existe. Ao escamotear à castração, através do seu enigma, ela não bascula para a posição feminina, que supõe que o sujeito possa se orientar pela lógica do não-todo, consentindo com algo da castração.

 

 


 

Bilbliografia
ALVARENGA, E. “Variedades do sintoma, unicidade do tipo clínico”, Correio. EBP, n. 58, p. 13-22.
FREUD, S. (1905). Fragmentos da análise de um caso de histeria. In: Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989, vol. VII, p. 12-115.
LACAN, J. (1951). Intervenção sobre a transferência. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1951. pp. 214-225.
LACAN, J. (1956-57). O Seminário. Livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
LACAN, J. (1969-70). O Seminário. Livro 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
LACAN, J. (1969-70). O Seminário. Livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
LACAN, J. (1969-70). O Seminário. Livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

Germana Pimenta Bonfioli.
Analista praticante. Psicóloga da rede de saúde mental de Mariana/MG. Email : germanabonfioli@hotmail.com



Almanaque On-Line Entrevista – PATRÍCIO ALVAREZ

PATRÍCIO ALVAREZ

 

 

“A insensatez do sintoma: os corpos e as normas” será o tema de trabalho da Seção Clínica do Instituto, neste semestre. Sua escolha se articula à preparação para o VI ENAPOL e toma como orientação o argumento de Éric Laurent (2013) para esse Encontro. A apresentação do tema parte da afirmação de que, hoje, “o sintoma está no corpo”, não se oferece à interpretação e tem como resposta do mestre contemporâneo variadas tentativas de normatização e padronização dos corpos (medicalização, judicialização, etc), política da qual a psicanálise de orientação lacaniana não compartilha. Se, na França, discute-se, atualmente, a questão da instrumentalização da psicanálise, para justificar a posição contrária ao casamento para todos, no Brasil, estamos sendo chamados a nos posicionar em relação à questão das internações compulsórias de usuários do crack.

Almanaque On-Line: Em Seu Argumento, Laurent Indica Que “Precisamos Conceber O Sintoma Não Com Base Na Crença No Nome-Do-Pai, Mas Baseados Na Efetividade Da Prática Psicanalítica. Essa Prática Obtém, Por Meio Do Seu Manejo Da Verdade, Alguma Coisa Que Toca O Real. A Partir Do Simbólico, Alguma Coisa Ressoa No Corpo E Faz Com Que O Sintoma Responda” (LAURENT, 2013). Ele Diz, Ainda, Que A Questão, Para A Psicanálise, É “Como Falam Os Corpos Para Além Do Sintoma Histérico, Que Supõe No Horizonte O Amor Ao Pai” (LAURENT, 2013). Em Seu Texto De Apresentação Do VI ENAPOL, Sua Pergunta É: “Com Qual Corpo Se Fala?” (ALVAREZ, 2013). Como Se Articulam As Duas Questões?

Patrício Alvarez: Na verdade, no primeiro ensino de Lacan, o corpo está do lado do Nome-do-Pai: é um corpo regulado por esse significante, e, até mesmo o que existe de real, nesse corpo, é regulado pelo significante fálico. Durante esse primeiro ensino, o que fica do lado de fora pertence ao campo da psicose.

O segundo estatuto do corpo, correspondente ao objeto a, já estabelece uma diferença que amplia a clínica e a relação ao sintoma: é a operação lógica da separação o que permite extrair o objeto a e, em torno desse buraco e de sua borda, criar a superfície que constitui o corpo. Portanto, não é o Nome-do-Pai que produz o corpo, mas essa operação lógica inicial. E o Nome-do-Pai funciona como uma duplicação simbólica dessa operação, ao elevar o buraco ao estatuto da falta-a-ser, ou seja, da castração. Então, consegue regular o gozo, constituindo, assim, a perda do objeto a e, em seguida, a sua busca, chamada de desejo, insatisfeito ou impossível. Mas, então, o Nome-do-Pai não é original, e, por isso, nesse momento, Lacan diz que a função do pai é a de “unir o desejo à lei”, porque sua função é secundária: se ocorrer, o gozo é regulado por essa lei. Mas há muitos casos em que não é regulado dessa forma, e Lacan se dedica, nesses anos, a investigá-los: a psicose, a debilidade mental, o fenômeno psicossomático, as tatuagens, a perversão, o luto, a violência e muitos mais são modos em que algo do objeto a não é regulado pelo desejo nem pelo Nome-do-Pai.

O terceiro estatuto do corpo leva mais longe essa diferença: começa em O Seminário, livro 17, quando Lacan afirma, categoricamente, que a castração é operada pela linguagem, ou seja, não pelo pai. É o que permite a Lacan localizar o pai como uma invenção da neurose, situando-o como o mais além do Édipo. Éric Laurent se refere a isso quando diz que o sintoma histérico supõe, em seu horizonte, o amor ao pai. Assim, o que começou em O Seminário, livro 11, ao localizar o pai como a duplicação da operação de separação, culmina com esse conceito e, assim, abre o segundo ensino de Lacan.

Vemos como o mais além do Édipo, que está sendo investigado, atualmente, na Europa, pelo PIPOL VI1, se articula, intimamente, com a nossa pesquisa sobre o corpo. Qual é o corpo que se constitui mais além do Édipo, se a operação do Nome-do-Pai não é o que a constitui? É um corpo diferente, definido por Lacan, em O Seminário, livro 23, como uma caixa de ressonância na qual um dizer produz efeitos: “a pulsão é o eco no corpo de que há um dizer”. Assim, não é o corpo do Nome-do-Pai, nem mesmo o do objeto a: é o corpo do sintoma e do sinthoma. É o instrumento que temos para tocar um real: o simbólico ressoa no corpo pelo sintoma.

Isso interroga a nossa prática e é o que o argumento de Éric Laurent assinala: o modo como o corpo fala mais além do sintoma histérico, isto é, mais além do Édipo.

Almanaque On-Line: Éric Laurent Evoca Jacques-Alain Miller Em Seu Pequeno Tratado Sobre A “Biologia Lacaniana”, Para Destacar A Maneira Como A Linguagem Biológica Se Apodera Do Corpo, Recortando-O Com Suas Próprias Mensagens, Sem Equívoco. Como, Então, Podemos Pensar Sobre A Produção Do Sintoma Analítico, A Partir De Um Corpo Que Não Fala E Que Goza No Silêncio Pulsional De Uma Linguagem Sem Equívocos?

Patrício Alvarez: Não estamos longe de considerá-lo como uma batalha: o corpo que a ciência recorta pode prescindir da linguagem, pode dispensar o equívoco e o mal-entendido, porque foraclui o sujeito.

Deixemos claro que não nos referimos à ciência, tal como concebida pelo Iluminismo e que muitos ainda defendem, destacando seus progressos úteis à humanidade, o que inclui os gadgets que utilizamos tanto. Nós não discutimos esses desenvolvimentos e, de fato, opor-se a eles é uma forma de obscurantismo, contra o qual Lacan adverte insistentemente.

Não é essa a crítica da psicanálise. Referimo-nos a um outro aspecto da ciência, impulsionado pelo discurso capitalista: o que silencia os corpos, foracluindo o sujeito. O corpo da ciência não fala porque os seus meios são outros: o bisturi e os procedimentos tecnológicos não são o problema de primeira ordem, mas as operações políticas e econômicas que constituem a biopolítica. Então, não acho que existam corpos que não falam, mas que a ciência, em conjunção com o discurso capitalista, os silencia. Essa combinação, a que Lacan se refere várias vezes, em seu ensino, é estudada, em filosofia, sob o nome de biopolítica. Agamben, por exemplo, tem demonstrado os instrumentos de que ela se utiliza para manipular os corpos.

Essa é a batalha: ou os corpos são manipulados biopoliticamente, ou os corpos falam. Então, Laurent diz que “as palavras e os corpos se separam na disposição atual do Outro da civilização” (LAURENT, 2013). Para Lacan, o corpo é de um sujeito. Portanto, temos de fazer falar esse corpo que a ciência tenta silenciar, porque é o único meio de resgatá-lo como de um sujeito. E para que o corpo fale, nosso instrumento fundamental é o sintoma: essa “junção das palavras com os corpos”, que Laurent (2013) indica com precisão.

Então, responderia à pergunta, dizendo que eu não acho que, estruturalmente, existam corpos que não falam, mas que são corpos silenciados. Todo corpo pode falar, mesmo aqueles que parecem gozar em silêncio, e a operação da psicanálise consiste, precisamente, em fazê-los falar em sua própria língua: a clínica do autismo, a clínica da toxicomania e a clínica da violência o demonstram a cada dia. Nossa clínica atual trava essa batalha. Trata-se de uma ética, mas, por que não, também de uma épica.

Almanaque On-Line: Como A Psicanálise Pode Contribuir Para Uma Abordagem Desse Novo Status Do Sintoma? Como A Psicanálise Pode Tratar Esses Sintomas Que Não São Passíveis De Interpretação?

 

Patrício Alvarez: Temos de estabelecer uma diferença, que parece sutil, mas produz muitas consequências: quando Laurent alude a um corpo que não fala, trata-se do corpo da biopolítica, que, como dissemos, não é um corpo que não possa falar, mas que foi silenciado. E, como tal, podemos fazê-lo falar, resgatando o sujeito.

Mas é diferente disso considerar o corpo que está para além do Édipo, que Laurent designa como aquele da cadeia rígida: “o corpo tórico furado. O corpo como agenciamento do real, do simbólico e do imaginário se apresenta em torno de um ou dois furos, e se mantém sozinho” (LAURENT, 2013). Esse corpo prescinde do Nome-do-Pai, como Lacan aponta, ao falar sobre as diferentes formas possíveis de amarração, ao mostrar que o Nome-do-Pai é uma duplicação possível de um dos registros — no caso da neurose — mas não é necessário: não toda a clínica depende dele.

Entretanto, não devemos nos confundir: esse corpo tórico pode prescindir do Nome-do-Pai, mas não do simbólico. O novo estatuto do sintoma não prescinde do simbólico. Essa diferença sutil é o que permite que a psicanálise possa operar sobre ele.

As manifestações dessa cadeia rígida são muitas, mas o fator comum que as unifica é que não passam pelo sentido: na verdade, o Nome-do-Pai foi localizado por Lacan desde O Seminário, livro 11, como o que produz o laço entre S1-S2, associando o sem sentido do S1 ao saber inconsciente. Na cadeia rígida, esse laço não se produz, e Laurent diz que Lacan “propõe outra versão de um inconsciente que não é constituído pelos efeitos do significante em um corpo imaginário, mas, sim, um inconsciente constituído desse nó entre o imaginário, o simbólico e o real. Inclui a instância do real que é a pura repetição do mesmo, o que Jacques-Alain Miller, em seu último curso, isolou na dimensão do Um-sozinho que se repete” (LAURENT, 2013), ou seja, o que Miller chama de iteração. Isso implica dizer que o próprio inconsciente é afetado pela dispensa da amarração ao pai. Mas esse inconsciente, que pode prescindir do pai e do sentido, não prescinde do sintoma.

Então, poderíamos responder assim a essa pregunta: a rigor, nenhum sintoma é passível de interpretação, mesmo o sintoma neurótico. “Vocês sabem que o sintoma não pode ser interpretado diretamente, que é preciso haver a transferência, isto é, a introdução do Outro. […] O sintoma, por natureza, é gozo […] não precisa de vocês como o acting-out, ele se basta” (LACAN, 1962-1963/2005, p.139-140), é o que Lacan indica, desde O Seminário, livro 10.

Precisamente, o sintoma não precisa do sentido ou do Outro, é o analista que atua para esse forçamento, o de fazer passar o gozo do sintoma para a palavra, pela operação da transferência. Esse forçamento é o que viabiliza a passagem do inconsciente real ao inconsciente transferencial, o que permite que o gozo do sintoma faça laço com o Outro, e que o S1 faça laço com o S2. Sabemos que não é uma operação fácil e que não é o mesmo na neurose, na psicose ou nos sintomas contemporâneos, mas pode ser feito. Isso é o que queremos dizer ao afirmar que todo corpo pode falar, o que a clínica da psicose ensinou-nos em primeiro lugar.

Também aprendemos que todo corpo pode falar, mas não necessariamente entrar no campo do sentido. E, para isso, as clínicas da anorexia, da violência, da toxicomania, e até o ponto extremo, do autismo, nos ensinaram que esse procedimento de passagem para o inconsciente transferencial não é sempre possível. Nós aprendemos que é possível operar com o sintoma, sem passar necessariamente pelo sentido, e, para isso, é tão útil o conceito que Miller define como iteração, ao que Laurent se referia.

Almanaque On-Line: Sua Apresentação Do ENAPOL Trata Das Três Teorias Do Corpo Em Lacan E Das Clínicas Que Podem Ser Deduzidas De Cada Uma, Mas Levanta Um Problema Em Relação À Dificuldade De Elaborar Uma Clínica Do Acontecimento De Corpo, Que Ainda Teria Que Ser Construída. Considerando Também Sua Hipótese De “Que Uma Clínica Se Baseia No Particular Da Classe, Talvez Não Se Tenha Que Construí-La, Mas Designar O Que Há De Mais Singular Nesse Corpo Que Fala”, Você Sugere Que O ENAPOL Seria A Ocasião Para Elaborarmos Uma Resposta. Poderia Falar-Nos Um Pouco Mais Sobre Isso?

Patrício Alvarez: É o ENAPOL que deveria responder! É uma brincadeira, mas tem um pouco de verdade: geralmente, quando nos referimos ao corpo, usamos conceitos do primeiro ensino e, várias vezes, misturamos a clínica do Nome-do-Pai e a clínica do objeto a com a clínica do acontecimento de corpo. Por exemplo, dizemos, levianamente, que um sintoma histérico é um acontecimento de corpo.

Éric Laurent define, de uma forma muito precisa: “Nessa perspectiva, pode-se distinguir o sintoma como acontecimento de corpo e o sintoma histérico” (LAURENT, 2013), e eles não são a mesma coisa. O corpo tórico, como dissemos, prescinde do Nome-do-Pai e inaugura uma série de manifestações clínicas novas.

Assim, a clínica do acontecimento de corpo é muito mais ampla do que as duas anteriores: não se limita à clínica das estruturas — relativa ao Nome-do-Pai — nem à clínica do que está fora delas — aquela do objeto a — mas se refere aos diferentes modos possíveis de amarração RSI: é um conjunto aberto e, como tal, poderia fazer uma série, mas não uma classificação. Por isso, dizia que o particular da classe não a apreende.

Essa clínica do acontecimento de corpo não anula ou deixa de fora as duas anteriores, mas a sua relação com elas é ainda algo a investigar: trata-se de saber se vão ser incluídas, redistribuídas, ou se operam ao modo de funcionamento do conjunto aberto, formando uma série de singularidades, uma série de possíveis amarrações RSI. É a grande descoberta do inclassificável: o fato de que não se possa fazer uma classificação não nos impede de tratar; sim, é o que nos permite operar com o que é invariável em toda a série, o sintoma.

Essas perguntas que nos fazemos são, muitas mais, as que podemos fazer para nosso Encontro: se pudermos obter um pequeno ganho de saber na construção dessa clínica do acontecimento de corpo, em nosso VI ENAPOL, seria ótimo!

 

Tradução: Márcia Mezêncio.

 

Referências Bibliográficas
ALVAREZ, P. ”Falar com qual corpo?” Disponível em: http://enapol.com/pt/template.php?file=Textos/Hablar-con-cual-cuerpo_Patricio-Alvarez.html. Acesso em: 25 mar. 2013.
LACAN, J. (1962-1963/2005). O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
LAURENT, É. “Falar com seu sintoma, falar com seu corpo”. Disponível em: http://www.enapol.com/pt/template.php?file=Argumento.html. Acesso em: 25 mar. 2013.
[1] O encontro internacional do continente europeu ocorrerá em Bruxelas, em 6 e 7 de julho de 2013, com o título “Depois do Édipo, as mulheres se conjugam no futuro”