O único e o específico na experiência analítica

Maria Wilma S. de Faria
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
Diretora da Seção Clínica do IPSM-MG

A psicanálise, diferentemente de outros campos de saber, traz em seu arcabouço uma especificidade, na medida em que não trabalha com categorias e não se ocupa de generalizações, uma vez que o real da experiência analítica é o que se tem em vista. Orientamo-nos pela prática analítica, na qual se visa o caso a caso, e isso aponta para o fato de que o conhecimento em psicanálise é construído de maneira única frente a uma impossibilidade de enquadramento, de totalização ou de generalização. Cada sujeito deve se apresentar ao longo do tratamento com o seu sintoma, sua forma singular e única de lidar com o real impossível de suportar.

Pensando o específico na experiência analítica, é interessante perguntarmos: quais são os significados dessa palavra? Segundo o Dicionário Houaiss (HOUAISS; VILLAR, 2001), o específico é: “próprio de uma espécie; peculiar; destinado ou pertencente exclusivamente a um indivíduo ou a um caso, uma situação; especial; exclusivo; próprio; inerente”. Tal definição cai como uma luva, na medida em que, na especificidade, encontramos aquilo que é da ordem também de uma unicidade, o mais próprio de cada falasser, algo que poderíamos localizar como sendo o sinthoma. Para Miller (2013, p. 133), “o sinthoma é o singular em cada indivíduo”. “O singular ‘como tal’, não se parece com nada: ele ex-siste à semelhança, ou seja, ele está fora do que é comum” (MILLER, 2009, p. 35).

Se o singular de cada falasser nos aproxima dos últimos tempos do ensino de Lacan, podemos também nos servir da particularidade, uma vez que esta abraça as categorias e as estruturas clínicas presentes no primeiro tempo de seu ensino. Não se trata de rejeitar os tipos clínicos que herdamos de Freud, de Lacan e da clínica psiquiátrica clássica, mas de saber que um caso nunca realiza o seu tipo: “Que os tipos clínicos decorrem da estrutura, eis o que já se pode escrever, embora não sem flutuação” (LACAN, 1973/2003, p. 554). O Homem dos Ratos, enquanto caso paradigmático, serve como modelo para ilustrar a neurose obsessiva; porém, nem todos obsessivos são como Ernst Lanzer. Cada obsessivo opera de acordo com seu gozo de maneira única, em que pese o fato de que, como falasser, ele esteja também em articulação com o particular e com o universal dessa categoria. Assim, “os sujeitos de um tipo, portanto, não têm utilidade para os outros do mesmo tipo” (LACAN, 1973/2003, p. 554).

A clínica psicanalítica preconiza o Um-sozinho que habita cada ser falante em sua redução e dimensão de real. Se a loucura passa a ser generalizada e está posta a cada ser falante, a psicanálise de orientação lacaniana nos convida ao rigor, no sentido de sustentar o estabelecimento de um diagnóstico diferencial do qual não se pode abrir mão. A construção do diagnóstico diferencial é fundamental na condução de um tratamento, é a bússola orientadora para o manejo de um caso perante as especiais maneiras dos sujeitos se estruturarem psiquicamente, de saberem fazer com seu sintoma e de se inscreverem no laço social. Há, além disto, desse tratamento possível do único e específico em cada sujeito, algo que insiste em não se inscrever e que resta como irredutível. Fazer desse resto uma invenção é o que cabe a cada ser falante, independentemente de sua estrutura. Assim, valer a prática da psicanálise é um princípio ético.

A prática psicanalítica de orientação lacaniana tem também como específico fazer existir o sujeito! Procuramos localizar, em cada caso, o “divino detalhe”, a forma de funcionar do falasser. Interessa à psicanálise o para além das multiplicações contemporâneas de tipos clínicos que proliferam por todos os lados – anoréxicos, bulímicos, toxicômanos, hiperativos, deprimidos. Tais apresentações sintomáticas são compatíveis com a nossa época, pelas quais o discurso da ciência, com seu pragmatismo de adaptações, prescrições e intervenções, busca reduzir o corpo ao organismo, desconhecendo, assim, sua dimensão pulsional e de gozo.

“O que Lacan chama de sinthoma é, por excelência, o conceito singular, cuja extensão é tão somente o indivíduo” (MILLER, 2009, p. 38)”. Assim, não é possível comparar ninguém a não ser a si mesmo, de tal sorte que a singularidade de cada caso compreende o que é incompreensível e incomparável. O instante de ver está relacionado ao singular do caso; assim, desde a primeira entrevista, a forma como se localiza o nome de gozo do falasser tem a ver com esse instante de ver, com como cada analista “encarna” (MILLER, 2009, p. 40) sua presença e faz do encontro um acontecimento de corpo.

O discurso do analista, portanto, diferentemente dos outros discursos, é o único que exclui a dominação, uma vez que, em seu lado superior esquerdo, há um elemento que é “causa de desejo”: ali o analista se faz semblante e o saber se encontra apenas enquanto suposto. O discurso analítico nada tem de universal, não é para todos, e sim “para o Um-sozinho” (MILLER, 2022).

É também único da psicanálise de orientação lacaniana, enquanto ética, o não recuar, o não retroceder do ato analítico, da arte da escuta, de “seguir” o falasser em suas pequenas grandes invenções, do desafio do analista se oferecer como objeto, sempre resto e causa, para que uma transferência opere, permitindo um endereçamento. Enfim, é uma arte, e trata-se de, “do ponto de vista singular, fazer reinar um deixar ser: deixar ser aquele que se entrega a você (analista), deixá-lo ser na sua singularidade” (MILLER, 2009, p. 36).


Referências
HOUAISS, A.; VILLAR, M. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 553-556. (Trabalho original publicado em 1973).
MILLER, J-A. O inconsciente e o sinthoma. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 55, 2009.
MILLER, J.-A. El ultimísimo Lacan. Los cursos psicoanaliticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2013.
MILLER, J.-A. Todo mundo é louco – AMP 2024. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 85, p. 8-18, dez. 2022.



A histeria rígida: a existência da neurose hoje

Simone Souto

Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
ssouto.bhe@terra.com.br

O que vou trazer para vocês hoje são apenas alguns elementos que, espero, nos ajudem a aproximarmos um pouco mais desta noção de Lacan, um tanto enigmática, que é a histeria rígida, e que foi mencionada por ele, pelo menos até onde pude investigar, apenas uma única vez, no Seminário 23.

A histeria hoje

Nos primórdios da psicanálise, em um mundo ainda ordenado pelos ideais, o sintoma histérico se apresentava como um sentido a ser decifrado. Esse sentido tinha como modelo o Édipo estruturado a partir da referência ao pai. Assim, a histérica, no tempo de Freud, tinha um pai que lhe assegurava um sentido pelo qual era possível abordar a satisfação, assim como o incômodo que lhe afetava o corpo. Em outras palavras, o gozo do sintoma era apreendido pela via do sentido. Constatamos essa prevalência do pai nos sintomas histéricos em todos os casos conduzidos por Freud. Podemos referi-la à época, mas podemos também nos indagar, como o fez Lacan (1969-70/1998, p. 94) no Seminário 17, pelo desejo de Freud, pelo que o fez substituir o saber que recolheu da boca das histéricas (a propósito do poder das palavras e da determinação significante sobre o corpo), pelo mito do complexo de Édipo. Segundo Lacan (1969-70/1998, p. 94), “o que Freud tentou preservar com o complexo de Édipo foi a ideia de um pai todo amor” e que “a experiência da histérica […] deveria tê-lo guiado melhor que o complexo de Édipo”. Então, seguindo Lacan (1972-73/1985, p. 36), podemos supor que, desde Freud, a histeria nos ensina algo sobre o sintoma que não passa pelo pai, algo que teria sido encoberto pela importância dada por Freud ao complexo de Édipo. Trata-se do significante como causa de gozo.

Segundo Laurent (2012), o que está em questão em nossa época é o amor ao pai como eixo em torno do qual gira a constituição do sintoma histérico. As histéricas já não acreditam mais no pai como detentor de um sentido capaz de resolver o enigma do gozo. A impotência do pai tornou-se evidente e a histérica já não se presta mais a fazer existir o pai ideal sustentando-o através de seu amor (BROUSSE, 2013). Assim, para abordar a histeria hoje seria preciso considerá-la como uma estrutura neurótica cujo sintoma pode não se sustentar no amor ao pai, nem seria tecido na trama edípica. Nesse contexto, a histeria se apresentaria, portanto, desvestida de sentido: se a histérica freudiana nos ensinou que o sintoma comportava um sentido sexual, a histérica de hoje nos convoca à constatação de que o sintoma, em última instância, não tem sentido algum e se reduz à pura repetição de um gozo. Entretanto, como veremos a seguir, será preciso distinguir essa forma de apresentação do sintoma histérico tanto das psicoses, quanto da posição feminina e do sinthoma como produto do final de uma análise.

Na nossa prática hoje, “é cada vez mais constante encontrarmos  casos clínicos de neurose nos quais o amor ao pai ou a busca de identificação do lado da metáfora paterna não conseguem sustentar-se claramente, mas que de fato não são casos de psicose”. Assim, com relação à distinção entre a histeria hoje e a psicose podemos considerar que, mesmo tendo perdido o pai, ou seja, o recurso para resolver o gozo pelo sentido, a histérica atualmente não deixaria de portar, em seu corpo, a marca da castração, isto é, o falo, mas não mais em sua vertente de significação, como resultado da metáfora paterna, e, sim, como  significante do gozo. Nesse contexto, como nos demonstra Miller (2011), a função do significante passaria a ser a de aparelhar o gozo, dar-lhe substância, materialidade. O sintoma histérico hoje se sustentaria muito mais na materialidade do significante do que em sua produção de sentido.

Essa forma de aparelhamento do gozo que não passa pelo sentido parece constituir-se em uma marca do nosso tempo, observável não só na clínica da histeria. Se a histérica não se dedica mais a sustentar o pai, o psicótico, também, diferente do que fez Schreber, já não tem tanta necessidade de inventar o pai a partir do sentido, isto é, da metáfora delirante. A psicose, hoje, em certos casos, inventa outras coisas, mais ordinárias, no lugar do pai. Assim, em nossos dias, não é que o modelo edipiano deixa de ser uma referência, o que acontece é que esse modelo, ele é abalado, deixa de ser a único, a referência universal.

Dora: uma histérica freudiana e seu avesso

De acordo com Laurent (2012, s/p), “após o Seminário sobre Joyce, Lacan propõe uma série de releitura dos Estudos sobre a histeria, mas pelo avesso”. Como vimos, quanto ao sintoma histérico, Freud teria feito um percurso passando do significante ao pai. Para precisarmos o que o sintoma histérico presentifica em seu cerne, proponho a vocês retomarmos o caso Dora guiados por essa proposta de Lacan, isto é, lendo-o pelo avesso, fazendo o percurso inverso ao de Freud, isto é, do pai ao significante como causa de gozo. Se, por um lado, é evidente, na condução de Freud, certo recobrimento do sintoma pela primazia dada ao pai, por outro lado, ele nos deixa todas as pistas para fazermos o caminho de volta. Nesse sentido, o caso Dora é privilegiado, uma vez que, conforme sublinha Lacan (1951/1998, p. 225), por se tratar de uma histérica, “em parte alguma […] é mais baixo o limiar […] entre o discurso analítico e a palavra do sintoma”.

Dentre os sintomas apresentados por Dora – dispneia, enxaqueca, depressão… –, Freud dará particular atenção à afonia e à tosse nervosa. Esses sintomas encontram sua significação a partir da complexa trama que envolve Dora, o pai, o Sr. K. e a Sra. K. O pai e a Sra. K. são amantes, e Dora, mesmo revoltada, se coloca como cúmplice, protetora dessa relação, ficando, concomitantemente, exposta às propostas amorosas do Sr. K.

Freud pôde fazer surgir, no percurso dessa análise, uma ligação entre a tosse nervosa de Dora e o caso de amor do pai com a Sra. K., do qual ela tanto se ocupava. A oportunidade para essa ligação aparece com o significante “ein vermongender Mann”, que em alemão significa “um homem de posses”, com o qual Dora se refere ao pai e que Freud interpreta em seu sentido inverso: “ein unvermongender Mann”, “homem sem recursos, impotente”. Como Dora poderia continuar sustentando que existia um caso de amor entre a Sra. K. e seu pai ao mesmo tempo que admitia a impotência deste último? A resposta de Dora coloca em cena o sexo oral como um recurso pelo qual um homem impotente poderia sustentar a relação com uma mulher. Freud irá deduzir, então, que Dora havia criado uma fantasia sexual inconsciente (sugar o pênis), expressada através da afonia e da tosse. Como nos esclarece Laurent (2012, s/p), com esse sintoma, Dora se identifica com o gozo do pai: “ela coloca sua própria boca nessa participação do gozo do pai”.

No entanto, Freud nos dá elementos para supor que a prevalência do gozo oral nos sintomas de Dora remonta a origens ainda mais remotas que não passariam necessariamente pelo pai. Trata-se de uma cena que teria proporcionado “a condição prévia”, “somática”, para a fantasia de Dora: “ela chupava o polegar esquerdo sentada em um canto do assoalho ao mesmo tempo que puxava com a mão direita o lóbulo da orelha do irmão que estava sentado quieto ao seu lado” (FREUD, 1905[1901]/1996, p. 49). Lacan (1951/1998, p. 220) situa, nessa cena, “a matriz imaginária na qual vieram confluir todas as situações que Dora desenvolveu em sua vida – verdadeira ilustração da teoria, ainda por surgir em Freud, da compulsão à repetição”. Portanto, essa cena presentifica a via pela qual o gozo vem marcar o corpo de Dora, ou seja, o acontecimento através do qual, para ela, o gozo toma consistência e se fixa, um S1, sozinho, um traço que se repete e não se sustenta em sentido algum.

O próprio Freud (1905[1901]/1996, p. 50) faz menção, no contexto no qual aborda essa lembrança de Dora, ao “traço conservador” que asseguraria que um sintoma, uma vez formado, possa ser retido mesmo que o pensamento inconsciente ao qual ele deu expressão tenha perdido seu significado, uma “unidade constituída pela matéria que deu margem às várias fantasias”.  Com a fantasia de sugar o pênis, Dora constrói uma versão paterna para o gozo oral experimentado na infância, ou seja, cria uma significação do gozo baseada em seu amor pelo pai impotente, um sentido que vem recobrir o traço sem sentido do gozo, esse avesso do sintoma, esse osso, essa matéria na qual, em última instância, o sintoma se sustentaria em sua existência. Retornaremos a isso mais adiante.

A histeria lacaniana: uma forma real de apresentação do sintoma

No Seminário 23, Lacan (1975-76/2007) faz menção a uma forma de apresentação da histeria na peça O retrato de Dora, longamente comentada por Laurent (2012).Trata-se de uma peça de Hélène de Cixous (1976/1986) que estava sendo encenada na época em que Lacan pronunciava o Seminário 23. Hélène Cixous foi ensaísta, poeta e crítica literária influenciada por Lacan. Foi, também, a responsável pela introdução da obra de Clarisse Lispector na França e em outros países. Nessa peça, observa Lacan, a histeria aparece incompleta e, por isso, reduzida a um estado que ele chamou de material. O que a faz incompleta é a falta do elemento que a tornaria passível de ser compreendida, ou seja, falta o elemento que introduziria a significação.

Em Freud, o sintoma de Dora é acompanhado de uma significação sexual, baseada em uma versão do pai como impotente. É esse elemento que torna o sintoma interpretável, conferindo-lhe um sentido. Assim, desde Freud, ou mesmo antes dele, o sintoma histérico está sempre acompanhado de um intérprete, de um elemento que lhe confere uma significação. No entanto, em sua peça, Cixous apresenta Dora sem esse elemento interpretante (LAURENT, 2012), faz surgir uma histeria sem parceiro, sem sentido. Podemos dizer então que, na falta desse elemento, o sintoma histérico apareceria em sua prevalência libidinal, desvestido de sentido, reduzido à sua materialidade, ou seja, ao traço que fixa o gozo no corpo. Podemos aproximar esse traço do que foi destacado por Freud com relação à cena de Dora com o irmão, um traço que asseguraria a conservação de um sintoma mesmo que ele tenha perdido seu significado. Quanto a isso, vale lembrar as elaborações de Lacan sobre a identificação no Seminário 24, comentadas por Laurent e a partir das quais nos parece possível concluir que a  identificação histérica – tanto com relação à sua vertente de participação no gozo do outro, que Freud exemplifica como fundamento da epidemia histérica (caso do pensionato), quanto em sua vertente de amor ao pai – se sustentaria, no fim das contas,  na identificação que Lacan (1977) chamou de neutra, a identificação a um  traço particular, a um traço qualquer que seria apenas o mesmo. Logo, “a histeria em seu estado material” parece ter a ver com o que, em última instância, para além ou aquém do sentido edípico, toda histeria poderia ser reduzida. Conforme esclarece Laurent (2012, s/p), “o material, no fundo, é o sintoma como tal, separado do sentido”. O sintoma histérico, assim apresentado, sustentar-se-ia apenas do Um-sozinho, do significante em sua materialidade como substância gozante (MILLER, 2011).

Essa forma de sustentação da histeria a partir do Um, Lacan qualificou de rígida, uma histeria que se sustentaria sem o apoio do pai como instrumento através do qual o gozo poderia ser resolvido pelo sentido (MILLER, 2007, p. 238). Lacan (1975-76/2007, p. 103) é levado, então, a articular uma cadeia borromeana “rígida” na qual o simbólico, o imaginário e o real se conjugam, mantendo-se unidos sem a necessidade do Nome-do-Pai como uma rodinha suplementar (LAURENT, 2012). Ele chama a atenção para o fato de que, nessa maneira de apresentar a cadeia, “o importante é o real” (MILLER, 2007, p. 238), é o fato de que o real não se restringe unicamente a uma das rodinhas de barbante, pois a cadeia inteira constitui o real do nó. Partindo dessa observação de Lacan, parece-nos possível afirmar que a histeria rígida evidencia a vertente real do sintoma, o sintoma apresentado, realizado, assim como a peça de Cixous, de um modo real.

Esse modo real nos remete ao sintoma histérico não mais em sua plasticidade, fruto de sua inserção nas significações, mas como iteração do mesmo, do Um-sozinho que não se liga a nada. Portanto, a nosso ver, o que Lacan apresenta como histeria rígida não seria uma histeria sem sintoma, mas uma histeria na qual o sintoma não se sustentaria na significação produzida pelo Nome-do-Pai. Lacan (1975-76/2007, p. 102) nota que aquela que faz o papel de Dora na peça não deixa de mostrar suas manias, suas virtudes de histérica. Isso quer dizer que o sintoma está lá, porém sem sentido, em sua vertente real. Tratar-se-ia da histeria como um elemento estrutural, da histeria apresentada a partir do que, em última instância, constitui o substrato, o osso, o cerne de toda histeria e mesmo de todo sintoma neurótico.

Nesse contexto, nos ocorreu pensar se, com a cadeia rígida, não poderíamos situar outra maneira de apresentar o que Lacan (1951/1998) chamou, em “Intervenção sobre a transferência”, de “matriz imaginária”, referindo-se à já citada cena de Dora com o irmão, ou, ainda, se essa matriz imaginária não seria da ordem de uma Prägung, termo utilizado por Freud e comentado por Lacan no Seminário 1. Freud faz menção a esse termo referindo-se à cena primaria no caso do Homem dos Lobos (quando ele vê uma cena entre os pais de uma cópula a tergo) e que me parece servir, também, para a cena de Dora com o irmão. Trata-se, segundo Lacan, de uma efração imaginária, de uma cunhagem, de uma marca a partir de uma experiencia de gozo estritamente limitada ao domínio do imaginário, pois situa-se em um inconsciente ainda não recalcado, algo que ainda não teria sido integrado ao sistema verbalizado do sujeito, algo que não atingiu a verbalização e nem mesmo a significação. Conforme nos explica Lacan, o trauma no que ele tem ação de recalque, intervém só depois. Entre a cunhagem e o recalque simbólico, nos diz ele, há apenas uma diferença, essencial a meu ver: é que, naquele momento da Prägung, ninguém está lá para dar a palavra àquele que é afetado pela Prägung  – trata-se, portanto, de um acontecimento sem Outro, sem simbólico e que certamente nos abre algumas questões sobre a função do imaginário e mesmo de uma certa prevalência deste na apreensão do real e da importância de o considerarmos de forma renovada na condução do tratamento, como nos elucida Miller em sua leitura do ultimíssimo Lacan.

Desta maneira, se no início de seu ensino Lacan faz prevalecer o imaginário como matriz, como imagem condensadora do gozo a partir da qual o sintoma é gerado, no Seminário 23, com relação à cadeia rígida, ele dará destaque à aparência suportada pelo nó entre o simbólico, o imaginário e o real (aparência nodal). Nas palavras de Lacan (1975-76/2007, p. 107), “essa aparência nodal, essa forma de nó, se posso dizer assim, é o que dá segurança ao real. Direi, portanto, nesse caso, que o que testemunha o real é uma falácia, posto que falei de aparência”.

O falo como testemunho do real

Constata-se, dessa forma, uma mudança de perspectiva com relação à histeria nos tempos de Freud e que observamos cada vez mais em nossa prática: a histérica de hoje não precisa mais, para gozar, de sustentar o pai através de seu sintoma, criando um sentido, porque, para gozar, ela se sustenta no significante. Essa constatação nos leva a uma questão que Laurent (2012) situa como crucial e que, segundo ele, permite a Lacan, no Seminário 23, reformular a histeria tomando-a, como vimos, por seu avesso: diz respeito ao novo lugar que Lacan dá ao falo, não mais como resultado da metáfora paterna, testemunho dos efeitos de significação, mas como um semblante que dá testemunho do real. Segundo Laurent (2012, s/p), o falo, nessa nova posição, estaria “fora da metáfora paterna”, ou seja, separado de toda significação edípica. Aqui, não estamos mais no contexto no qual “ali onde isso fala, isso goza”; o que se situa em primeiro plano é a constatação de que “isso goza, ali onde isso não fala”, “isso goza, ali onde isso não faz sentido” (MILLER, 2011).Trata-se do falo, como já o designava Lacan (1960-61/1992, p. 234) no Seminário 8, em sua “presença real”, “um símbolo inominável”, “cuja emergência faria estancar todo reenvio que se tem lugar na cadeia dos signos”. Como tal, o falo é o significante do gozo do Um que, conforme nos indica Miller (2001, p. 23), é impossível de negativizar, é o significante como suporte material do gozo, ao qual Lacan (1975-76/2007, p. 119) confere uma “phunção de fonação” que “acaba sendo substitutiva do macho, dito homem”. Podemos nos referir, aqui, à afirmação de Freud de que a libido é sempre masculina, e também à tese de Miller (2011) segundo a qual, para o falasser, o gozo não é sem o significante. Assim, o falo é o que permanece, no corpo, como resíduo condensador de um gozo incurável, sustentação do gozo do Um, desse pouco de gozo que resta ao falasser face a seu encontro traumático com a inexistência da relação sexual e de um gozo absoluto que lhe conviria. Sendo assim, o falo, fora da metáfora paterna, é presença real de um gozo e, ao mesmo tempo, marca da castração que não está referida à falta paterna, mas, sim, ao furo da inexistência da relação sexual. Trata-se do “real marcado pela falácia” (LACAN, 1975-76/2007, p. 112).  É desde esse lugar que o falo pode aparecer como passível de verificar que o furo da inexistência da relação sexual é real.

A recusa do não-todo

A partir daí, parece-nos possível afirmar que a histérica de hoje nos mostra a via do significante sem o pai, isto é, sem que o poder do significante, como causa de gozo, fique recoberto, como vimos no caso Dora, pela impotência paterna. Dessa forma, o sintoma sustenta-se, em sua existência, no falo, conforme explicitado acima, como significante do gozo, separado do sentido, fora da metáfora paterna. Trata-se, literalmente, do falo em sua materialidade, como um significante que dá corpo ao gozo, que faz do sintoma um acontecimento de corpo a partir do qual podemos constatar o efeito maior do significante: o furo. Segundo Miller (2010-11, s/p), “esse furo vem precisamente no lugar da função edipiana do interdito e de todas as significações aferentes”. É, portanto, uma ancoragem real, um traço que se repete e não diz nada a ninguém, mas presentifica uma forma de satisfação, um gozo enigmático que pode precipitar o sujeito até a análise. Assim, encontramos na histeria hoje uma fala analisante que se apoia mais na vertente do significante como produção de gozo do que em seu efeito de significação, e sintomas que se apresentam prevalentemente em sua vertente real e libidinal como, por exemplo, os acontecimentos de corpo, as compulsões, algumas formas de apresentação da homossexualidade feminina, as devastações amorosas, etc.

No entanto, por mais que a histérica hoje apresente o sintoma sustentado no falo como significante do gozo impossível de negativizar, ela não deixa de demonstrar que o que lhe é dado como gozo é sempre aquele que não deveria ser, é sempre um gozo que não convém se comparado ao único gozo que conviria: aquele relativo à relação sexual que ela visa a atingir. Sendo assim, ela se recusa a ser o sintoma de outro corpo, do corpo de um homem, ou seja, aquilo de que ele goza. Portanto, em seu sintoma, ela goza do significante como Um-sozinho, como um corpo que se goza, mas se recusa a fazer passar esse gozo por um outro, colocá-lo à prova na relação com o parceiro. Sua recusa, em outras palavras, é a de servir-se do falo, ou seja, de seu próprio corpo, para verificar o real da inexistência da relação sexual. Ela se aprisiona na lógica do gozo do Um para continuar mantendo, em seu horizonte, o Outro absoluto, A Mulher como depositária de uma feminilidade que se situaria toda fora do falo e da qual ela se sente privada.

Parece-nos, então, que o sintoma histérico, em nossos dias, mesmo não estando mais encoberto pelo amor ao pai, permanece como uma forma de defesa com relação ao real de um gozo não-todo e, por isso, diferentemente da posição feminina, em perfeita consonância com os tempos atuais marcado por um individualismo de massa (LAURENT, 2013, p. 36). É justamente na medida em que, em seu sintoma, a histérica recusa a servir-se do falo para verificar o real, que podemos distinguir o que Lacan chamou de histeria rígida, ou seja, a forma real de apresentação do sintoma histérico, do sinthoma tal qual ele se apresenta no final de uma análise, referido ao não-todo. Portanto, é a recusa do feminino que hoje, a nosso ver, nos permite dizer que se trata de uma histeria, mesmo quando não dispomos mais de um sentido para compreendê-la.

 


REFERÊNCIAS:
BROUSSE, M.-H. A histeria e as histéricas de Freud a Lacan. [Entrevista concedida a] NODVS (Boletim Virtual da Seção Clínica de Barcelona). 2013. Disponível em: https://www.radiolacan.com/pt/podcast/entrevista-a-marie-helene-brousse-por-nodvs-boletim-virtual-da-secao-clinica-de-barcelona/4. Acesso em: 01 março 2024.
CIXOUS, H. Portrait de Dora. Paris: Editions des femmmes, 1986. (Trabalho original publicado em 1976).
FREUD, S. Fragmento da análise de um caso de histeria. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Imago, Vol. VII, 1996, p. 15-116. (Trabalho original publicado em 1905[1901]).
LACAN, J. L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre. Lição de 16 de setembro de 1976. Ornicar?, n. 12-13, p. 5-9, 1977.
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
LACAN, J. O Seminário, livro 8: A transferência. Tradução de Dulce Duque Estrada; revisão de Romildo do Rêgo Bastos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (Trabalho original publicado em 1960-61).
LACAN, J. O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Tradução de Ary Roitman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (Trabalho original proferido em 1969-70).
LACAN, J. Intervenção sobre a transferência. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 214-225. (Trabalho original proferido em 1951).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
LAURENT, É. Falar com seu sintoma, falar com seu corpo. In: Argumento do VI ENAPOL: Falar com o corpo – A crise das normas e a agitação do real. 2012. Disponível em: https://enapol.com/vi/pt/portfolio-items/falar-com-seu-sintoma-falar-com-seu-corpo/?portfolioCats=15. Acesso em: 01 março 2024.
LAURENT, É. Le sujet de La science et La distinction feminine. La Cause du Désir, n. 84, 2013.
MILLER, J.-A. Psychanalyse pure, psychanalyse appliqué et psychothérapie. La Cause Freudienne, n. 48, 2001.
MILLER, J.-A. Nota passo a passo. In: LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
MILLER, J.-A. Curso de orientação lacaniana. L´être et l`Un. Aula XIII. 2010-2011. (Trabalho inédito).
MILLER, J.-A. Sutilezas analíticas. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2011.

 




O único e o específico na experiência analítica

Sérgio de Castro
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
sdcastro@terra.com.br

Parece-me interessante tomarmos o significante ÚNICO deixando-o deslizar para termos mais próximos de nosso jargão. Por exemplo, a partir da contracapa Seminário 19, escrita por Jacques-Alain Miller, perguntarmo-nos se esse ÚNICO poderia ser aproximado do Um-dividualismo moderno. Se, por um lado podemos, ao Um-dividualismo, localizá-lo na rigidez autoreferida dos identitarismos atuais, por outro, podemos constatar que basta que se inicie uma análise para se verificar que há uma dimensão do Outro em cada um que faz voar pelos ares tal aprisionamento. Portanto, se uma vez atravessado pelo Outro na experiência analítica tal ilusão do Um-dividualismo fica em questão, uma vez que é o sujeito dividido que se produz, restará ainda algo de refratário ao Outro e à sua interpretação que, enquanto Único daquele sujeito, deverá, no entanto, ser convocado a dizer-se. Cabe, por fim, perguntar se o que vemos aqui não seria uma passagem do Um-dividualismo referido no “sou o que digo que sou” ao que se deduz do dizer que faz emergir a diferença absoluta que cada falasser carrega a partir de seu encontro traumático com a língua.




O único e o específico na experiência analítica

Frederico Feu de Carvalho
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
fredericofeu@uol.com.br

O “único” e o “específico” podem ser tomados como duas maneiras de nos referirmos à singularidade do sujeito na experiência analítica.

Nos acostumamos, desde Freud, a fazer a distinção entre o caso único e o tipo clínico. Trata-se de distinção clínica que expressa a posição ética do psicanalista: o sujeito não se reduz à categoria diagnóstica que especifica o seu tipo clínico e, mesmo que ele possa ser comparado a outros sujeitos do mesmo tipo, orientando a direção do tratamento do seu caso, a resposta subjetiva ao realismo da estrutura é o que condiciona, em última instância, a singularidade da interpretação.

Gostaria de propor, no âmbito de nossa discussão no IPSM-MG, que a distinção entre o “único” e o “específico” não recobre inteiramente aquela entre o caso único e o tipo clínico, especialmente se remetemos o “único” ao “Um”, marca de gozo original do falasser. Nessa acepção, o “Um” converge com a perspectiva do sinthoma no último ensino de Lacan, tomado como unidade clínica fundamental. Como unidade clínica fundamental, o sinthoma supera clivagens precedentes, entre elas a clivagem entre o caso único e o tipo clínico, na medida em que a perspectiva do sinthoma demarca o ponto de inflexão clínico entre a estrutura, entendida como a articulação dos elementos em que se joga a partida entre o caso único e o tipo clínico, e os elementos tomados em si mesmos, fora da articulação e do sentido.

A prática da psicanálise ganha então uma outra ênfase. Trata-se de reconduzir a trama de destino do sujeito da estrutura aos elementos primordiais, fora de articulação, quer dizer, fora do sentido e, porque absolutamente separados, podemos dizê-los absolutos. Trata-se de reconduzir o sujeito aos elementos absolutos de sua existência contingente (MILLER, 2008, p. 57-58)

A unicidade do falasser seria, portanto, um ponto fora da articulação dos elementos. Ela ex-siste em relação ao caso clínico, com o qual não se confunde. Não se refere, portanto, à máxima segundo a qual cada caso é um caso. A distinção lógica entre o específico e o único pode ser então formulada nesses termos: o específico corresponde à resposta ficcional e estruturada dada por um sujeito à sua marca única; seja ao inscrever-se no universal de um tipo clínico, seja ao excetuar-se dele como singularidade, o específico, como o particular de um sujeito, só existe por ser predicável. O Um, por sua vez, traz consigo uma dificuldade de escrita e de interpretação. Sua maneira de existir fora do universal é uma maneira radical, por não ser predicável, permanecendo à distância de qualquer referência linguística. Como, então, pode-se afirmar a existência de algo do qual nada se pode predicar? Se, por outro lado, afirmamos sua existência, a despeito de ser impredicável, o que pode vir a suportar sua escrita? Proponho que a resposta lacaniana a essa questão é o sinthoma: a maneira específica como cada falasser amarrou o seu Um ao real, ao simbólico e ao imaginário para fazer disso um nó.


Referências

MILLER, J.-A. Curso de orientação lacaniana III. Lição V, 2008. (Trabalho inédito).