Conhecer Seu Ódio

GIL CAROZ

 

IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO
CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE
BELO HORIZONTE

 

Lucidez

 

O ódio é lúcido. Ele está ligado a um saber. Os cristãos transformaram o não-ódio de seu Deus, sinal de sua ignorância, em uma forma de amor (LACAN, 1982, p. 122). Esse Deus é um ser “como sendo aquilo pelo que os seres menos seres participam do mais elevado dos seres” (LACAN, 1982, p. 134). É, então, um ser ideal, unificador, que reúne nele os seres imperfeitos e, nesse sentido, ele é relacionado a um puro amor. No entanto, Lacan recorda “que não se conhece nenhum amor sem ódio” (LACAN, 1982, p. 122). É justamente esse sonho de um amor universal que faz ignorar a irredutibilidade do ódio e, em primeiro lugar, do seu próprio ódio. O amor é apenas uma construção secundária, um semblante que permite uma circunscrição da pulsão de morte. Mas ele não encobre jamais o ódio como dado primário. Freud demonstra bem essa irredutibilidade na sua crítica detalhada do imperativo “Amarás o próximo como a ti mesmo”, que ele designa como sendo “reinvindicação mais gloriosa” do cristianismo (FREUD, 2010, p. 73). Ele salienta: “Depois que o apóstolo Paulo fez do amor universal aos homens o fundamento de sua congregação, a intolerância extrema do cristianismo ante os que permaneceram de fora tornou-se uma consequência inevitável” (FREUD, 2010, p. 81). Assim, o ódio jamais se reduz a zero, ele consegue simplesmente localizar-se de outro modo. O amor entre os membros de uma comunidade reunidos em torno de um ideal se paga sempre com um ódio dirigido ao exterior.

 

Ódio cordial

De todas as paixões, o ódio é, sem dúvida, o mais difícil de se reconhecer e admitir. Pensemos no sorriso do Homem dos Ratos testemunhando um gozo desconhecido de si mesmo quando ele relata o suplício infligido aos soldados no exército do Império. Nós lemos em marca-d’água na resposta de Freud ao “Por que a guerra?”, de Albert Einstein, que a questão mesma camufla uma posição de bela alma, ignorando a pulsão de morte, componente irredutível em todos os seres humanos. Assim, ignorado e negado, o ódio se manifesta ocasionalmente pelo seu contrário, a saber, por um amor ao mesmo tempo excessivo e suspeito. Um sujeito em análise fala de bom grado de suas tendências altruístas e caritativas, que ele apresenta, na oportunidade, como um traço que ele gostaria de se livrar, enquanto ele deixa suas hostilidades escondidas, especialmente quando estas são sentidas em relação aos seres mais queridos. Ele irá timidamente pronunciar seu ódio apenas quando tiver acesso à sua maldade fundamental.

O que chamamos de “fazer amor” é um oximoro. Sabemos que o que acontece sob essa designação tem muito pouco a ver com o respeito e o amor. Esses, pelo contrário, são muitas vezes um fator de inibição da vida sexual. Por outro lado, a fantasia, condição de todas as relações sexuais, é uma encenação na qual o ódio prevalece sobre o amor. Dessa forma, o ódio não exclui o desejo. O ser a quem o ódio é endereçado inclui o objeto a (LACAN, 1982, p. 135). O ódio, nesse caso, é uma manifestação consciente de um desejo situando-se entre o ser e o ter. Esse é o caso do ódio ciumento que Santo Agostinho testemunha quando ele observa o homenzinho empalidecendo ao ver seu irmão de leite pendurado no peito de sua mãe. É porque ele tem o objeto de desejo que o irmão é odiado. Essa cena com três posições nos lembra a fórmula fantasmática bate-se numa criança, e eu assisto. É um ódio cordial causado por uma rivalidade fálica e inscrita na lógica edipiana.

 

 

Nosso objeto a

Há um outro ódio, um ódio que rejeita. Esse não decorre do Édipo. Ele é necessário para a constituição do eu (moi). O gozo é evacuado como mal para ser localizado no exterior. É o ódio que Lacan descreve como sendo a raiz do racismo. A ignorância do fundamental do eu (moi) faz com que esse ódio não esteja nos detalhes. Ele coloca de bom grado seu kakon em um outro coletivo. É um ódio puro. Ele não tem nada do amódio (hainamoration) lacaniano, como o ódio que anda de mãos dadas com o amor. Atribuir um gozo a uma “massa de corpos” é uma forma de racismo. Esse é o caso do antissemitismo e da misoginia, a se distinguir das críticas que podem ser feitas em relação aos fundamentos de uma cultura. A crítica do texto do Alcorão não é equivalente ao insulto dirigido à suposta avidez do judeu pelo dinheiro ou à falta de fidelidade da mulher como tal.

 

O Judeu

O Judeu ocupa o lugar de “nosso objeto a” (REGNAULT, 2003) porque, pela sua posição no mundo, ele perturba qualquer forma de instalação em comunidade na medida em que isso responde à lógica do todo. “’O que tenho em comum com os Judeus?’, escreve Franz Kafka, é apenas se eu tenho algo em comum comigo mesmo” (REGNAULT, 2003, p. 23). Falando do ódio na medida em que este é dirigido ao ser, Lacan indica que, se o cristão se refere a um ser ideal e amoroso, que reúne nele os seres imperfeitos, não há ser perfeito que possa alojar o judeu. Tudo na tradição judaica vai contra isso, diz ele. De acordo com a tradição, “o menos perfeito é muito simplesmente o que ele é, quer dizer, radicalmente imperfeito, e não há estritamente nada a fazer senão obedecer ao dedo e ao olho […], àquele que tem o nome de Javé” (LACAN, 1982, p. 134). E acrescentar que esse Deus, os judeus só poderiam fazê-lo um ser-de-ódio, isto é, ”traí-lo” (LACAN, 1982, p. 134), porque ele os escolheu para obedecê-lo sem fornecer-lhes um ideal ao qual eles pudessem se identificar. Assim, o destino do Judeu, do qual ele faz sua ética, é dedicar-se a uma prática que se dá sem uma garantia do Outro.

Lá onde a mulher não existe, o Judeu é um Nome inatingível. Os judeus constituem um conjunto “de imperfeitos”, série aberta de sujeitos, cada um sendo singular na sua imperfeição. Os elementos desse conjunto aberto não são, mas ex-sistem ao sentido que Jacques-Alain Miller desenvolve sobre a existência no seu curso “O Ser e o Um”. Como tal, eles não são coletivizáveis. É por isso que é proibido na tradição judaica listar os membros de um grupo. O uso dos números naturais para contar os sujeitos é contrário à prevalência do um por um sobre a coletividade. O que não significa, claro, que, na “realidade”, os judeus não se organizem como comunidade.

 

Resistência ao para-todos

A partir daí, entendemos o uso do termo ‘nome judeu’, porque dizer simplesmente ‘o judeu’, como dizer a mulher, o difama. Quando tentamos coletivizar o incoletivizável, fazemos-lhe necessariamente uma violência. É uma forma de abuso que a lógica do todo inflige à lógica do não-todo. Antissemitismo e misoginia são dois nomes desse ódio irredutível que se produz no encontro entre as duas lógicas. O agente da lógica do todo quer colocar em ordem os sujeitos que respondem à lógica do não-todo. Assim, o antissemitismo irá censurar os judeus, com mais ou menos violência, por não se assimilarem, por se colocarem em um lugar de exceção, por não se alinharem de uma vez por todas e serem ‘como todo mundo’. A misoginia irá censurar as mulheres por suas práticas singulares que se opõem à lei do para-todos.

Um judeu, como vimos, só pode trair o seu Deus, isto é, trair sua posição de Judeu com um grande J. Ele sempre está aquém dessa posição insustentável. À exceção de alguns grupos que são mais ou menos bem-sucedidos em assumir a posição de ser-judeu, de que Benny Lévy fala, a saber, uma posição de recusa a se inserir em alguma forma de discurso universal, os judeus, de uma maneira ou de outra, aspiram a uma forma de assimilação. Isso não os torna antissemitas, pois, seja o que for que façam, eles permanecem judeus, nem que seja unicamente por negação. Se é um ódio, é um ódio do Judeu que eles carregam dentro deles, mas não um ódio do outro.

 

Ódio ao feminino

A caprichosa

Se a lógica do todo faz violência à lógica do não-todo, não há nenhum ódio veiculado pelo gozo feminino em direção à lei do pai. Aqui o caminho do Judeu e da mulher se separam. Se o judeu, em sua prática, está fora de uma lei universal, se ele pode tolerar certa falta de garantia no Outro, ele permanece fiel a uma versão da lei do pai. Por outro lado, o gozo feminino stricto sensu implica uma série de singularidades que rompem com essa lei como portadora de interditos. Ela coloca a vontade pulsional antes da lei. É o que Jacques-Alain Miller chamou de “capricho”, ou seja, uma vontade acéfala, que vai além dos limites da razão e às vezes é mortífera (MILLER, 2001). As manifestações de ódio desse gozo não têm causa localizável e não encontram limites na razão. Então, Lady Macbeth, a fim de incitar seu homem para o crime, assim formula a loucura do horror que ela seria capaz de cometer a partir de seu ódio:

 

Já amamentei e conheço como é agradável amar o terno ser que em mim mama. Pois bem, no momento em que estivesse sorrindo para o meu rosto, teria eu arrancado o bico de meu peito de suas gengivas sem dentes e ter-lhe-ia feito saltar o crânio, se o tivesse jurado como assim juraste… (Ato I, cena 7) (SHAKESPEARE, 1995, p. 489).

 

Aí, nós vacilamos. Essa manifestação de ódio ao modo de Medéia, que ameaça tocar o mais sagrado, excede o que podemos incorporar como humano. J.-A. Miller faz uma forte observação sobre a indignação que essa afirmação pode provocar em nós, porque significa que, se somos escandalizados, é porque Medéia somos nós: “Porque cada um de nós, diz ele, aturdido de compaixão que esteja, também é solicitado em sua parte irredutível de desumanidade, sem a qual não há humanidade se sustente” (MILLER, 2012).

Assim, através dos limites da “justa medida” da posição masculina[1], a ilimitação do gozo feminino pode parecer completamente fora de proporção, vontade feroz, sem limite. Por outro lado, da mesma forma que um judeu pode odiar o judeu nele, uma mulher pode odiar sua feminilidade, sem que isso a torne misógina. O caso de uma mulher que, durante muitos anos, não consegue mais estabelecer um relacionamento com um homem demonstra isso. À primeira vista, podemos pensar que é o amor que ela dedica ao pai, a quem ela está identificada, que aqui faz obstáculo. De fato, esse amor ao pai atravessa todo o seu ser. Mas, escavando um pouco mais, aparece o que lhe é realmente insuportável. Essa mulher bem organizada, que não deixa passar nada do inconsciente, encontrou em si mesma a conduta “louca” de sua mãe toda vez que tentou estabelecer um relacionamento com um homem. Isso a levou a um relacionamento com o homem marcado por um isso nunca mais, cujo preço é a solidão que ela inflige a si mesma. Ela odeia os homens, poderíamos dizer, não por causa do Penisneid, mas porque “o homem serve aqui de conector para que a mulher se torne esse Outro para ela mesma, como o é para ele” (LACAN, 1962/1998, p. 741).

 

Curar da misoginia

Para o homem freudiano, como sabemos, o final da análise se apresentará quando do encontro com o rochedo da castração, no momento em que ele poderá assumir o fato de que outro homem possa ser mais forte que ele. Essa renúncia à rivalidade fálica é uma forma de pacifismo. O homem entrega as armas, o que lhe permite renunciar à luta imaginária e fálica. No entanto, isso não garante um alívio com relação à questão feminina. É o homem lacaniano que enfrentará essa questão, porque, inicialmente, ele é “fundamentalmente medroso e, se for à guerra, é para fugir das mulheres, fugir do buraco” (MILLER, 1997, p. 11). Esse homem será capaz de se curar desse medo que o faz odiar desde que ele reconheça não só o seu ódio, mas também a sua própria feminilidade, seja qual for sua qualidade de guerreiro. Porque temos que esperar que os homens não estejam totalmente sob a lógica do todo, da mesma maneira que as mulheres podem se relacionar com o falo.

 

Inspiração

Não tire os sapatos, diz a psicanálise ao homem. Você não está na mesquita. Coloque, ao contrário, o seu par de sapatos femininos, de cor vermelha, e entre no consultório do analista. O analista vai tolerar isso, ele é formado para isso. Ele mesmo é um pouco mulher. Lá, no consultório do analista, você descobrirá que nem todo mal está nela. Que você a conhece intimamente, “de dentro”, que você é, você mesmo, ocasionalmente, um pouco mulher. Você tem o seu humor, seu amor louco; você pode ser generoso e mau ao mesmo tempo, pragmático e sonhador, caprichoso e racional. Você descobrirá que também pode ocasionalmente cometer o irreparável. É assim!

Você então se moverá em direção à fronteira do império fálico que é sua prisão e você levará seu olhar para o outro lado da fronteira, para o continente negro da feminilidade. Então você dirá a si mesmo que se ela se tornou a encarnação do próprio diabo; quem poderia não a amar enquanto a odeia? Ela é autêntica. Ela não se incomoda. Ela é generosa. Ela tem humor. Ela sorri. Ela diz: “Vá em frente, viva a sua vida, não tenha medo. Não se deixe desencorajar pelos moralistas que dizem a você para não se mover, para submeter-se à razão, a razão deles, ideais deles”. Ela não tem as angústias do proprietário nem a preocupação com o que vão dizer. O Outro está lá, mas ninguém é obrigado, diz ela, a obedecer à risca às suas exigências. Ele também pode ser louco de vez em quando. Ela é pragmática. Existem as regras e a lei, ela diz, mas ela procura a pessoa que as incorpora para fazer acordos com ela, porque ela é bastante “conciliadora”. Louca, mas não “louca-de-todo” (LACAN, 1974/2003, p. 538). Ela fala, ela negocia, ela recebe. Ela atravessa todas as recusas, porque para ela “não” não é uma resposta aceitável.

 

 

 

Tradução: Michelle Santos Sena de Oliveira
Revisão: Márcia Mezêncio

 

 


REFERÊNCIAS
FREUD, S. (1930) “O mal-estar na civilização” In: Obras completas, vol. 18, São Paulo: Companhia das Letras, 2010 p. 13-122.
LACAN, J. (1972-1973) O seminário, livro 20: mais, ainda. Brasil: Jorge Zahar, 1982.
LACAN, J. (1962) “Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina”, Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 734-745.
LACAN, J. (1974) “Televisão” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 508-543.
MILLER, J.-A. “Des semblants dans la relation entre les sexes” In: La Cause freudienne, nº36, mai 1997, p. 7-16.
MILLER, J-. “A teoria do capricho” In: Opção Lacaniana, nº 30, São Paulo, 2001, p. 79-86.
MILLER, J.-A. “Uma partilha sexual” In: Clique, nº2, Belo Horizonte: Instituto de Psicanálise e Saúde Mental, 2003. p. 13-29.
MILLER, J.-A. “Le théâtre secret de la pulsion” In: Le Point, nº 2062, 22 mars 2012.
REGNAULT, F. Notre objet a. Paris: Verdier, 2003.
SHAKESPEARE, W. “Macbeth” In: Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995. Vol. I, p.475-528.
[1] Cf. Miller, 2003, p. 16: “A ética da justa medida é por excelência uma ética masculina”.