Constituição e perda do campo da realidade

Constituição e perda do campo da realidade1

Kátia Mariás
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP

katiamariasp@gmail.com

Resumo: O texto aborda a constituição do campo da realidade a partir da extração do objeto a e o modo como se dá a perda da realidade na neurose que, por meio da fantasia, busca reparar a realidade. O texto trata também de como, na psicose, essa subtração do objeto não ocorre, provocando a perda da realidade seguida de uma tentativa de reparação por meio do delírio.

Palavras-chave: constituição da realidade; perda da realidade; neurose; psicose; objeto a.

CONSTITUTION AND LOSS OF THE FIELD OF REALITY

Abstract: The text addresses the constitution of the field of reality by the extraction of object a as well as the way the loss of reality occurs in neurosis which, through fantasy, seeks to repair reality. The text also deals with how, in psychosis, this subtraction of the object does not happen, causing the loss of reality, followed by an attempt to repair it through delusion.

Keywords: constitution of reality; loss of reality; neurosis; psychosis; object a.

 

 

A experiência de satisfação

Para Freud, a condição para que a realidade seja constituída é que algo seja subtraído ao sujeito, funcionando como índice de uma realidade externa. É esse vazio subjetivo que organiza e corrige o mundo interno.

O campo da realidade não é dado a priori, precisa ser construído, pois não depende da percepção do objeto, não diz respeito a nenhuma realidade exterior, mas refere-se ao objeto perdido.

Em 1895, Freud elabora um projeto, conhecido como “Projeto para uma psicologia científica”, através do qual ambiciona apresentar uma psicopatologia nos moldes de uma Naturwissenschaft. Ou seja, constrói um modelo de aparelho psíquico que funciona segundo o modelo do arco reflexo e é constituído por sistemas de neurônios que recebem a quantidade de excitação e descarregam-na, tornando-se vazios novamente. Freud demonstra a função primária do aparelho psíquico, que é a tendência a descarregar toda a excitação que o perturba, negando, dessa forma, seu próprio funcionamento. Mas, como o aparelho deve manter-se funcionando, faz-se necessária a introdução de uma função secundária, expressa no princípio de constância.

Freud apresenta-nos as duas experiências fundamentais capazes de desencadear a constituição da realidade para o sujeito: as experiências de satisfação e de dor. Ambas as experiências são necessidades do organismo e exigem que se realize no meio externo uma “ação específica” para eliminar a excitação. Essa ação só pode ser realizada por um outro que venha a funcionar como força auxiliar do sujeito. É, portanto, a eliminação da tensão decorrente dos estímulos internos que dá lugar à vivência de satisfação. Toda vez que o estado de excitação e a percepção do desprazer reaparecem, a lembrança do objeto de satisfação será reativada em busca da descarga, produzindo, assim a alucinação. O aparelho psíquico não distingue entre o que é percebido e o que é lembrado. Tanto o objeto temido quanto o objeto desejado são apresentados como percebidos, e não lembrados, ou seja, são alucinados.

Como o princípio de prazer não é capaz de distinguir o objeto real do objeto alucinado, é necessário um princípio de correção que confira ao aparelho psíquico uma eficiência mínima, que será dada pelo princípio de realidade.

A perda da realidade

 O que temos em “Neurose e psicose” (Freud, 1924/2016a)? Que a neurose seria um conflito entre o Eu e o Isso e, a psicose, um conflito entre o Eu e o mundo exterior. Ou seja, tanto a neurose como a psicose se originam do conflito entre o Eu com as várias instâncias que o controlam, embora haja um fracasso na função do Eu que se esforça em conciliar as exigências dessas instâncias. A questão é saber como o Eu consegue sair ileso desse conflito.

Vale lembrar que “Além do princípio do prazer”, “O problema econômico do masoquismo” e “O eu e o isso” já haviam sido escritos, o que fez com que Freud pudesse avançar na diferenciação entre neurose e psicose a partir do conflito entre Eu, Isso e Supereu. Podemos observar que o Eu dividido, ao tentar reconciliar as várias exigências feitas a ele, sacrifica uma parte da realidade em graus diferentes. Freud termina o texto “Neurose e psicose”, assim, perguntando sobre o mecanismo análogo ao recalcamento que leva o Eu a se desligar do mundo exterior, na psicose.

Em “A perda da realidade na neurose e na psicose” (Freud, 1924/2016b), escrito poucas semanas depois da conclusão de “Neurose e Psicose”, ele avança em relação a esse último, uma vez que ele está tentando extrair consequências para a nosografia psicanalítica, baseada no conflito e na divisão do Eu.

A perda, ou afrouxamento da realidade, na neurose se dá a partir de um recalcamento fracassado da pulsão. Quando o fator desencadeador de uma neurose é conhecido, o sujeito se afasta da experiência traumática e a relega à amnésia. Por qual caminho a neurose procura resolver o conflito? Recalcando a exigência pulsional, desvalorizando-a. Freud nos fornece o exemplo da paciente que, apaixonada por seu cunhado, fica abalada com a seguinte ideia no leito de morte da irmã: “agora ele está livre e pode se casar com você”. Essa cena é imediatamente esquecida e, com isso, é acionado o processo de regressão que leva aos sofrimentos histéricos. A moça recalca a exigência pulsional, que é o amor pelo cunhado. Haveria uma obediência inicial e uma posterior tentativa de fuga. A neurose não recusa a realidade, apenas não quer saber nada sobre ela; uma parte da realidade é evitada por uma espécie de fuga. Na neurose, a ênfase recai sobre o segundo tempo – o fracasso do recalcamento. Ela se contenta, via de regra, em evitar a parte correspondente da realidade e proteger-se do encontro com ela.

Na psicose, há dois passos: primeiramente, o Eu é arrancado da realidade; no segundo passo, procura reparar o prejuízo e restabelecer a relação com a realidade às custas do Isso. Há, nesse segundo passo, o caráter de reparação, que também procura compensar a perda de realidade, mas através da criação de uma nova realidade, que não apresenta mais o mesmo embate da realidade abandonada.

No caso trazido por Freud, a reação psicótica teria sido recusar a realidade do fato da morte da irmã. Haveria, aqui, uma fuga inicial seguida de uma fase ativa de reestruturação através do delírio, por exemplo.

A psicose a recusa e procura substituí-la. A tarefa da psicose é procurar percepções que correspondam à nova realidade pela via da alucinação. Aqui, a ênfase incide integralmente no primeiro passo – fuga da realidade –, que é patológico e pode levar ao adoecimento.

O segundo passo na neurose e na psicose sustenta-se nas mesmas tendências; em ambos os casos, ele serve à ânsia por poder do Isso, que não se deixa intimidar pela realidade. As duas são a expressão da rebelião do Isso contra o mundo exterior, seu desprazer ou sua incapacidade para se adequar à necessidade real.

Neurose e psicose se distinguem muito mais entre si na primeira reação introdutória do que na tentativa de reparação. Freud insiste, de várias formas, em esclarecer que o segundo tempo em ambas as estruturas são parecidos, uma vez que o fracasso está colocado nas duas formas clínicas.

A diferença crucial entre neurose e psicose é enfraquecida pelo fato de que na neurose não faltam tentativas de substituir a realidade indesejada por uma mais de acordo com o desejo. Isso é possível graças à existência de um mundo de fantasia. É desse mundo de fantasia que a neurose retira material para novas formações de desejo. Na psicose, o mundo da fantasia desempenha o mesmo papel, configurando o reservatório de onde se recolhem a matéria e o protótipo para a construção da nova realidade.

O fantástico novo mundo da psicose quer se alojar no lugar da realidade exterior. O da neurose se apoia em uma parte da realidade, assim como a brincadeira da criança, e lhe empresta um significado especial e um sentido secreto, que chamamos simbólico. Lacan nos ajuda a compreender esse trecho ao afirmar que a realidade não é homônima de realidade exterior. No momento em que desencadeia sua neurose, o sujeito elide, escotomiza, uma parte de sua realidade psíquica, ou, se podemos dizer, seu id. Essa parte é esquecida, mas continua a fazer-se ouvir. Mas como? De uma forma simbólica. É como se o sujeito colocasse um armazém à parte na realidade, conservando recursos para uso da construção do mundo exterior. O sujeito tenta fazer ressurgir a realidade elidida, num determinado momento, emprestando-lhe uma significação particular, um sentido secreto, que chamamos simbólico. É na medida em que a realidade não é plenamente rearticulada de maneira simbólica no mundo exterior que há, no sujeito, fuga parcial da realidade, incapacidade de enfrentar essa parte da realidade, secretamente conservada (LACAN, 1955-56/1985, p. 56).

Quando Freud compara o conflito neurótico ao conflito psicótico, em “A perda da realidade na neurose e na psicose”, ele está afirmando que existe crise ou conflito quando há oposição entre a exigência pulsional e a consideração da realidade pelo sujeito. Se, na neurose, o conflito se dá pelo retorno da exigência pulsional à qual o sujeito renunciou em favor da realidade, na psicose o conflito ocorre quando se impõe, para o sujeito, a parte da realidade recusada em benefício da pulsão. Isso quer dizer que o conflito se apresenta quando é exigida do sujeito psicótico uma consideração parcial da realidade que ele recusa.

Freud (1924/2016b, p. 284) conclui seu texto afirmando que, para ambas, neurose e psicose, conta não apenas a questão da perda de realidade, mas também a de uma substituição da realidade.

Vemos que Freud abordou a psicose pela perda da realidade, já Lacan, ao diferenciar a neurose da psicose no que diz respeito às perturbações que elas produzem nas relações do sujeito com a realidade, se ocupa menos dessa perda se interessando pela própria constituição do campo da realidade. No caso do psicótico, a relação profundamente pervertida com a realidade se chama delírio. É, portanto, com a realidade exterior que, em certo momento, houve buraco, ruptura, dilaceração, hiância. A própria realidade é, em primeiro lugar, provida de um buraco, que o mundo fantástico virá em seguida cumular.

O “não” e o campo da realidade

 As elaborações de Freud apresentadas no “Projeto…” tornam-se mais claras quando lidas com o auxílio de um outro texto, curto, mas de igual densidade: “A negação” (Freud, 1925/2016), publicado 30 anos depois do “Projeto…”. Nesse trabalho, Freud apresenta as operações primordiais que definem a constituição do sujeito e, consequentemente, seu campo de realidade. Ele mantém a hipótese de que “algo” deve ser expulso, deve estar fora, deve estar perdido, para que essa perda seja incluída, seja aceita pelo sujeito e possa ser, enfim, negada. O esforço a ser feito para assimilar essa operação deve se dar num tempo lógico, mítico e não cronológico.

O principal objetivo do teste de realidade não é encontrar na percepção real um objeto que corresponda ao representado, mas, sim, reencontrá-lo. Assim, uma precondição para o estabelecimento do teste de realidade consiste em que os objetos que outrora traziam satisfação real tenham sido perdidos. A condição da prova de realidade é o objeto perdido: ela exige e força a representação a veicular uma falta – a perda do objeto corresponde à abertura do sistema fechado e à ascensão ao mundo da significação. É o processo de nascimento do sujeito e da sua realidade. Trata-se de pôr à prova o exterior pelo interior, da constituição da realidade do sujeito na redescoberta do objeto. O objeto é reencontrado numa busca, uma vez que não se encontra jamais o mesmo objeto. Ante a impossibilidade de apropriação do objeto, o sujeito se vale da fantasia.

Nesse texto, Freud apresenta a dupla operação primordial – Bejahung e Ausstossung, afirmação e expulsão –, fundamental para a articulação dos mecanismos psíquicos de negação, a saber, a Verneinung, para a perversão, a Verdrangung, para a neurose e a Verwerfung, para a psicose.

Freud conclui que é pela via do “não” que se pode dizer o “sim”. O “não” é o certificado de origem, é a marca fundamental e distintiva do sujeito. O termo Verwerfung, introduzido no texto “A negação”, será traduzido por Lacan como foraclusão e definitivamente isolado como sendo a operação presente nas psicoses.

Jacques-Alain Miller (1996, p. 51) retoma a nota que Lacan (1957-58/1998, p. 559-560) acrescentou em 1966 a “De uma questão preliminar a todo tratamento da psicose”, citando uma fórmula de difícil entendimento: “o campo da realidade se sustenta apenas pela extração do objeto a que, entretanto, lhe enquadra”. Ele desenvolve essa frase articulando a dimensão libidinal das psicoses ao objeto a, ou seja, a realidade está condicionada ao distanciamento, à extração desse objeto, e é exatamente porque é extraído que ele dá à realidade seu enquadramento: o do furo. O furo é o quadro-realidade, a moldura é o enquadre. O sujeito, como sujeito barrado, é esse furo, falta-a-ser.

 

A janela da fantasia só é constituída sob a condição de que o objeto a seja extraído. É por isso que falamos que a fantasia é enquadramento e, também, tela. O termo “tela”, ao mesmo tempo em que faz obstáculo ao olhar, dissimulando-o, também permite que uma imagem se forme. Há ainda a fantasia-cena, ou seja, é no enquadramento dessa janela, sobre essa tela, que a realidade toma sua significação para nós.

Na psicose, a “morte do sujeito” é o que responde à não-extração do objeto a.

Tomemos a função de ver: para que o olho exerça sua função de ver, ele não pode se ver, ou seja, é preciso que ele seja desinvestido libidinalmente para que possa libidinizar o objeto que é visto por ele. A visão do campo da realidade esconde o olhar. Na psicose, o que ocorre é que o olhar se torna visível precisamente porque, como objeto a, ele não se encontra extraído do campo da realidade. O que se produz, portanto, quando o objeto a não é extraído, é o transporte do olhar para esse ponto no infinito, e é isso que o torna visível. A experiência da psicose prova que a não-extração do objeto é correlata da multiplicação das vozes e da multiplicação dos olhares (MILLER, 1996).

Lacan é exemplar com o caso “Eu venho do salsicheiro”. A paciente, ao murmurar “Eu venho do salsicheiro”, escuta como resposta: “Porca”.  O sujeito não recebe sua mensagem de maneira invertida, como o neurótico, mas recebe sua própria mensagem vinda de fora, vinda do real.

Na neurose, o pai é tomado como aquele que agencia a castração. Nesse sentido, pode-se afirmar que a castração é o certificado de que ali teve origem o sujeito. A castração é a expulsão, a renúncia pulsional à qual o sujeito se submete, permitindo a afirmação de um campo de significantes, chamados, por Lacan, de primordiais.

Como já dito, Freud nos ensina que é a partir do “não” que se pode dizer o “sim”. Ou melhor, é porque o sujeito aceita a castração que o seu mundo da realidade se constitui. Com a castração, abre-se uma brecha, uma lacuna que divide o sujeito, inserindo-o no campo do desejo, da promessa de um reencontro com o objeto que outrora lhe trouxe satisfação. É essencialmente o significante do Nome-do-pai que se trata de ser transmitido na neurose.

a psicose, no entanto, não é isso que acontece. A catástrofe na psicose é exatamente porque o pai não foi capaz de transmitir o seu nome, deixando o sujeito “largado”, à deriva. A passagem ao ato pode, muitas vezes, ser um tipo de extração forçada, uma vez que o que temos na psicose é a não-extração do objeto a. A presença do objeto a no real – olhar ou a voz – deve ser apreendida em um movimento de retorno.

O que Freud propõe é que a satisfação libidinal seja subtraída ao sujeito para que seu organismo funcione. Um objeto tem, necessariamente, que estar fora para que a realidade seja constituída. Em primeiro lugar, a realidade se constitui como desinvestida pela libido e, em segundo lugar, essa realidade só se constitui como realidade se ela é furada. Um pedaço da realidade lhe foi arrancado e é este pedaço da realidade que a libido investe. Deve haver uma perda subjetiva para que o mundo interno seja organizado, caso contrário, o sujeito “cairá sob o golpe da Verwerfung”. A Verwerfung é a ausência absoluta da operação de subtração, é a consequência psíquica da não-operação Bejahung-Ausstossung, deixando o sujeito fora do universo simbólico, preso do lado de fora, foracluído, preso no mundo da psicose. A importância dessa operação, constitutiva do campo da realidade de um sujeito, é o certificado de que, naquele sujeito, houve a transmissão de um pai.


 

Referências
 FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. I, 1990, p. 387-401. (Trabalho original publicado em 1950[1895])
 FREUD, S. Neurose e psicose. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Neurose, psicose, perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016a, p. 271-278. (Trabalho original publicado em 1924).
 FREUD, S. A perda da realidade na neurose e na psicose. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016b, p. 279-286. (Trabalho original publicado em 1924).
FREUD, S. A negação. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 305-314. (Trabalho original publicado em 1925).
 LACAN, J. O Seminário, livro 3: As psicoses. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1955-56).
 LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 537-590. (Trabalho original proferido em 1957-58).
 MILLER, J-A. Mostrado em Prémontré. In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.

 

[1] Texto apresentado em Lições Introdutórias à Psicanálise, atividade da diretoria de Ensino do IPSM-MG, em 17/10/2023.