Conter E Contar A Vida Secreta Das Palavras
ADMARDO BONIFÁCIO GOMES JÚNIOR
ADMARDO – FILME FULL-THE-SECRET-LIFE-OF-WORDS
A vida secreta das palavras, filme dirigido por Isabel Coixet, conta a história de Hanna (Sarah Polley), uma mulher de 30 anos, parcialmente surda, solitária, silenciosa e fechada em seu mundo. Empregada exemplar em uma fábrica têxtil, um dia, no fim de uma jornada de trabalho, é advertida por um colega, que a faz ligar seu aparelho de surdez, pois está sendo chamada, pelo serviço de alto falante, para comparecer à diretoria. Lá, é convencida pelo diretor a tirar um mês de férias. Há pressão do sindicato e dos colegas contra seu padrão excessivamente adequado à produção. Seguindo a sugestão de seu chefe, ela segue de férias a um pequeno povoado costeiro. Antes de sua partida, vemos Hanna em casa, comendo os mesmos nuggets, arroz e meia maçã de sua refeição diária. Na bagagem para a viagem, ela coloca vários sabonetes, todos iguais, como elementos que compõem uma rígida rotina.
No local das férias, ela escuta, da conversa de um desconhecido ao telefone, que estão precisando de uma enfermeira para cuidar de um trabalhador acidentado em uma plataforma petrolífera em pleno alto mar, longe da civilização. Decidida do que fazer com o vazio do tempo das férias, ela se oferece para o trabalho.
Hanna se expressa pouco. Seu rosto tem sempre a mesma expressão séria, entristecida e concentrada. As poucas palavras que fala denotam uma objetividade quase constrangedora. Aos poucos, descobrimos que Hanna é enfermeira, trabalhou com pacientes queimados e é estrangeira. Mas há muito mais a descobrir.
Na plataforma de petróleo desativada devido a um recente acidente, ela encontra seu paciente, Josef (Tim Robbins), um homem que sofreu uma série de queimaduras que o deixaram temporariamente cego e bastante comprometido para uma remoção até um hospital. No primeiro contato entre os dois, Josef, cego, procura, com as palavras, se aproximar de Hanna e criar alguma imagem da mulher que lhe cuida, não sem tentar estabelecer com ela alguma intimidade. Os contatos entre os dois personagens são estabelecidos entre os cuidados medicinais prestados por Hanna e as constantes questões que Josef lhe faz sobre sua vida e seu cotidiano. Ela se restringe às obrigações de enfermeira, sem respostas, sem intimidade, sem nem mesmo dizer seu nome, que Josef tentara adivinhar e acaba por nomeá-la Cora: o nome de uma freira que cuidou de um jovem e que, diante da morte dele, descobre que o amava.
Um belo e delicado encontro começa a se estabelecer entre esses dois personagens, no qual a cegueira temporária de Josef, que lhe impõe a necessidade de recriar as imagens de seu mundo com as palavras, se depara com mundo particular de Hanna, um meio mantido sob controle, como que ao alcance do botão de seu aparelho de surdez. Nesse encontro, entre a audição – agora necessária para Hanna – e a fala como único recurso para Josef, imobilizado e cego, as palavras ganham uma inigualável força vital e desvelam segredos. Aos poucos, as frases engraçadas, brincadeiras e piadas que Josef cria no contato com Hanna vão fazendo sua expressão facial mudar, pequenos sorrisos se esboçam e algumas confissões tomam o lugar do silêncio e da rígida defesa.
Os então habitantes da plataforma de petróleo são Hanna e Josef, um ganso que se chama Lisa e mais seis homens: Simon, Abdul, Dimitri, Martin, Scott e Liam. Vamos, aos poucos, conhecendo a singular história de cada um desses portadores da vida secreta das palavras. Personagens cujos trabalhos lhes preservam a solidão como forma de viver em paz. Simon é um exímio cozinheiro e diz que, para suportar o tédio do local e não ficar louco, cozinha pratos de diferentes nacionalidades, ao som das músicas de cada país a ser representado na culinária. Martin é oceanógrafo e gosta de jogar basquete sozinho. Seu trabalho é medir, pelas ondas que se chocam contra a plataforma todos os dias, a força do mar. Scott e Liam cuidam da casa de máquinas, têm, cada um, suas famílias e filhos e vivem ali, na plataforma, uma relação amorosa. Abdul trata da limpeza. Delicadamente, Hanna se integra àqueles habitantes exatamente por se sentir confortável em meio a seus inabituais, mas familiares silêncios e palavras, repletos de solidão e lembranças.
Dimitri é o encarregado geral e é quem um dia relata, a pedido de Hanna, o acidente que feriu Josef e matou o melhor amigo deste. As palavras de Dimitri sobre a morte do amigo de Josef são:
Esse homem queria se matar. Se lançou às chamas. Josef tentou salvá-lo, mas… tudo aconteceu muito rápido. Todos vimos ele se jogando às chamas. Não dissemos à companhia tudo o que se passou. Deixamos que pensassem que foi um acidente. Esse homem deixou uma mulher e dois filhos. Por que dizer a verdade? Deixamos que pensassem que morreu acidentalmente. Isso deixaria dinheiro para a família. E… no fundo… tudo é um acidente.
O filme segue. Há muito mais para contar, mas pensemos sobre a função subjetiva do trabalho. O que A vida secreta das palavras nos permite desvelar dessa função? Parece-nos que, se pensarmos o trabalho como “uso de si” (SCHWARTZ, 2000), ele é inteiramente uma reflexão sobre muita coisa do que se passa aí. É um filme em que fica claro que as escolhas possíveis que cada pessoa faz ali, no campo do trabalho, diz muito sobre a dimensão subjetiva de cada uma delas. A diretora Isabel Coixet soube trazer para a história toda a dramática do uso que cada personagem faz ali, de si, na relação com o trabalho. No filme, trabalho e vida não se separam, eles estão na mesma plataforma.
Depois que descobrimos alguns dos segredos das palavras que contam a história de Hanna, entendemos melhor o uso que a personagem parece fazer de si na fábrica têxtil. O trabalho ali é o da contenção, na repetição de uma rotina sem muita invenção. A mesma comida todos os dias, o mesmo trabalho repetitivo, quatro anos sem aparente interrupção. Tudo isso indica cumprir uma função. Seu modo sintomático de viver busca amarrar registros por demais disjuntos pelos traumas vividos.
A vida secreta das palavras de Hanna na fábrica segue seu rumo, organizado de forma a conter. Manter dentro de si. Sob certo uso. Sem risco de transbordar e inundar a vida de lágrimas. Mas eis que algo interrompe sua surdez também controlada. O eventual, a contingência, o inesperado, o acidental: as férias forçadas que a conduzem ao litoral. No ônibus, a caminho das férias, podemos ver Hanna bordando um pedaço de pano. Nesse novo lugar, o trabalho de bordado é dispensado numa lixeira. Prenúncio de um novo uso de si? Do uso de conter para o uso de contar a vida secreta das palavras? ”Sou enfermeira”, diz Hanna, ao seu vizinho de mesa cuja conversa ela ouvia. É surpreendente a forma decidida com que Hanna se apresenta. Naquele momento, as palavras servem para contar algo de muito importante da sua história. Sou enfermeira. Um significante que a nomeia. Uma palavra que a identifica, e cujo emprego acaba por expô-la ao trabalho de contar sua vida.
O trabalho de enfermeira reenvia Hanna a sua vida no ponto em que ela foi paralisada. Onde ela brutalmente foi obrigada a se conter. Uma formação interrompida pela guerra. Uma escolha impedida. Um projeto de uso de si violentamente abortado. Retomar essa atividade, esse uso de seu corpo na função de cuidar do outro, parece ir, aos poucos, permitindo fazer conviver experiências incomunicáveis: o antes e o depois das atrocidades vividas, as marcas indeléveis das torturas sofridas na guerra. Nesse trabalho, um novo uso do corpo, que lhe exige reordenar, com as palavras, as novas experiências do encontro com alguém que lhe demanda cuidado e afeto. Um encontro no qual o amor e a confiança permitem que ela possa dizer, afinal, algo de seu trabalho e de si. Numa manhã, Hanna, ao limpar o corpo de Josef, relata:
Quando estudava em Dubrovnik, sempre temia o momento de limpar os pacientes. Sentia-me desconfortável… pensando que eles estavam com vergonha. Mas percebi que as pessoas gostam de estar limpas. Não importa como você os limpa… ou quem limpa, eles gostam de estar nas suas mãos. Gostam de te confiar o seu corpo. Como se dissessem: É apenas o meu corpo. Só um corpo. Você nunca vai saber o que penso realmente, quem sou.
Essa é a frase que desencadeia a sequência de palavras que descortinam algumas das doses do horror guardadas em segredo pela personagem. Na cena, Hanna diz dos cortes e cicatrizes que levaram à morte aquela que vivia com ela e que era sua melhor amiga. E ela desnuda seu corpo para que seu paciente, cego, possa tocar e sentir as cicatrizes que o marcam. A última palavra dita nessa sequência responde à pergunta de Josef “Como se chamava a tua amiga?”: “Hanna”, ela responde. Só então Josef pôde saber seu nome. Nesse ato, corpo, história e nome se enlaçam. Amor e trabalho, nesse momento, parecem cumprir mais um passo no caminho da sublimação da pulsão de morte contida e contada nesse corpo.
Estaríamos aí frente a um novo uso do trabalho enquanto significante mestre S1, que parece conter a vida da personagem? Podemos pensar que retomar no corpo os gestos do saber-fazer de sua escolha profissional de enfermeira a convoca a contar a vida em um novo uso de si?
Lembremos de Freud (1930) em O mal-estar na civilização, da ênfase concedida ao trabalho, da livre escolha, do uso das moções pulsionais, do que a sublimação nesse domínio pode operar. Lembremos de Lacan (1976-1977) ao dizer do savoir y faire para entender que o saber que aí se produz não é da ordem da troca, do sentido, do pensamento, da interpretação. Ele é uso, é emprego, é fazer com. Não é que não possa ser aprendido, mas é que não se deixa apreender no formalismo do ensino, nos programas disciplinares, nas prescrições do trabalho, nas sugestões terapêuticas, etc. Não é um saber da racionalidade orientada pelos conceitos, mas pela dialética desses com a atividade da vida. É um saber que permite lidar com o fato de que, na vida secreta das palavras, como disse o encarregado Dimitri, “tudo é um acidente”. Aberto às contingências, às múltiplas causalidades, às arbitragens, às variações de possibilidades de ordenar as palavras e com elas ampliar os sentidos de seu uso.
Ao final do filme, a voz de criança que narra parte da vida de Hanna, a acompanha e a acolhe, pode se fazer mais ausente. Essa presença imaginária que ajuda Hanna a se enlaçar é substituída pela presença real de uma família que ela pôde constituir. O amor dedicado ao marido e às crianças e o trabalho de cuidar, contido no lar, parecem fazer prosseguir a pulsão por um destino mais sublime.