Crianças À Deriva: Reflexões Sobre A Construção, O Comentário De Casos E A Transmissão Da Psicanálise

JEANNINE NARCISO

No livro A violência: sintoma social da época, encontra-se o tema “desditas da infância”. Desventura é sinônimo da palavra desdita. Há crianças vivendo desventuras em série, que é inclusive o título de uma série de livros infanto juvenis e de um filme.[1] São crianças que vivenciam a infelicidade, a aflição e a falta de sorte. Como comentar casos que trazem esta particularidade?

Miller (2006), no texto A arte do diagnóstico: o rouxinol de Lacan, aponta o caminho a percorrer entre o ponto de partida, que é a leitura do caso, e a busca por autores que já escreveram sobre o que é necessário saber para poder escrever um comentário. E vai dizer de duas vertentes do ensino: a investigação e a acumulação. A acumulação é a parte de procurar, nos livros, nos artigos, na internet, o que foi dito pelos que já se referiram ao assunto. E a outra parte é a investigação, a pesquisa, é o buscar, esperar o novo.

A partir do que diz Miller, torna-se importante pensar na pretensão que é comentar um caso. Tendo por certas as palavras de Lacan ao se referir à prática da psicanálise, “pretender, no profissional, ter um domínio de um real que não se presta a ser dominado” pode ser mesmo um “certo pecado” (Miller, 2006, p.19).

Na clínica psicanalítica, a construção, a apresentação e a escrita do caso clínico dão à psicanálise o estatuto de um saber transmissível. Miller vai dizer que, “na transmissão da clínica, devemos dar a primazia ou prevalência ao singular mais que ao geral e ao universal” (Miller, 2006, p.20). Ao privilegiar o caso de uma criança, interessa o detalhe, o que não pode ser generalizado. Não mais acreditar nos sistemas de classificação. O que não quer dizer que eles não existam, pelo contrário, estão presentes no dia a dia de todos nós. Frequentemente, somos convocados a avaliar ou a sermos avaliados.

Na psicanálise, as regras e as classes são o sujeito analisante quem inventa. Segundo Miller, cada analisante assume seu caso em um universal muito particular. Na época do mais, algumas crianças, por já terem passado pelo consultório de vários “psis”, já chegam dizendo que não querem que o que falam seja contado para os pais e que não querem fazer testes. E cada um, como a criança contemporânea que é, também quer dizer: “Não, sou apenas eu, não sou um número, não sou um exemplar” (Miller, 2006, p.21)

Como elaborar e transmitir a clínica no nosso tempo? A indicação que temos e que acontece no Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais é que se trata de pensar o diagnóstico como uma arte. “Como uma arte de julgar um caso sem regra e sem classe preestabelecida” (Miller, 2006, p.27) Uma experiência bem diferente da tendência atual estatístico-classificatória que refere o indivíduo a uma classe patológica. O discurso do mestre atual promete construir, com grande eficiência, maneiras tecnológicas de fazer diagnóstico automático.

Em psicanálise, a apresentação de ideias gerais sobre um tema cede lugar ao caso particular. A cada caso apresentado, privilegiamos a decisão que leva a encontrar os princípios que podem orientar a condução: “o tato que cada caso requer”. A experiência permite elaborar o tato. Se, inicialmente, são esperados muitos dados “para concluir sobre a hipotética orientação do tratamento, com o tempo se conclui com menos” (Miller, 2006, p.28)

No Núcleo de Psicanálise e Saúde Mental, alguns casos comentados não podem ser rigorosamente qualificados de caso clínico. Os casos são discutidos por serem situações de urgência, marcadas pelo excesso, pela violência e que demandam uma atenção. Segundo Viganó (2012), para possibilitar a construção do caso clínico a partir do caso social, é preciso um grupo de trabalho, o grupo de uma prática analítica na qual vários sustentam um desejo de saber visto como o êxito de uma experiência analítica e nomeado de transferência de trabalho.

Nesses casos, Laia (2010) considera que, às vezes, por serem situações relacionadas à violência, deslocam-se para um campo diferente da “psicanálise aplicada à terapêutica”, mas tampouco são da “psicanálise pura”. São considerados “problemas sociais” e, portanto, carregam a expectativa de “readaptação social”. O que exige do analista, presente nas instituições judiciárias, assistenciais e educativas, certo tato, já que não há nesses lugares uma transferência prévia à psicanálise, e muitos dos profissionais que ali trabalham não levam em conta a existência do inconsciente. Portanto, há o risco de fixar o sujeito em um discurso determinista.

Atualmente, um significativo número de crianças é encaminhado pelos programas de referência para a violência sexual e doméstica, para serviços em que trabalham psicanalistas. Muitas vezes, é a mãe quem procura o Outro da nossa época — o hospital, o poder público, para que traduza para ela o que está acontecendo com o filho. No momento em que é escutada, o que conta é a história da sua vida, da sua família e da criança. Na história de muitas crianças, a violência da qual se tornou vítima foi cometida pelo pai.

O relato de vida feito pela mãe mostra que os acidentes na vida da criança começam cedo. São vidas marcadas pela errância, pela dificuldade econômica, pela gravidez indesejada e pelo abandono. A criança chega ao mundo sem a garantia de inscrição no Outro. Segundo Lacadée:

Para um sujeito que chega ao mundo como um corpo, como um corpo vivo que goza, grita e chora, é muito importante encontrar um desejo que se debruce sobre ele e que não seja anônimo. Esse desejo só não é anônimo, quando a maneira como a mãe se refere ao corpo de seu filho, a maneira como ela se ocupa de suas necessidades, inclui um mistério que se chama ‘desejo’ (LACADÉE, 2006, p.68).

Quando a criança destina seu discurso a alguém que a escuta, logo inventa a sua maneira de fazer uso da língua para dizer o que se passa com ela. Assim, pode falar de um pai desajustado, que demonstra aos filhos não saber o que fazer com a vida, que não se apresenta como o agente da interdição sexual. É um adulto que não coloca obstáculo para sua própria satisfação, ao seu direito ao gozo. Assim, na ausência de um adulto que o oriente em direção ao Outro, a criança não “adquire uma certa intuição da situação que lhe é proibida” (LACAN, 1984/2002, p.42) e não consegue conter sua busca pela satisfação pulsional.

Segundo Laurent, a psicanálise pode-se posicionar e transmitir algum saber sobre o real em jogo nessas situações. Como analistas, devemos “dispensar os semblantes propostos à civilização” e sustentar que o “discurso da parentalidade, cortado da particularidade do desejo que produziu a criança, faz parte destes semblantes que recusamos” (LAURENT, 2007, p.278).

pO que a investigação sobre a transferência vai-nos trazer com toda a força é o desejo do analista como aquele que vai contra a “criança generalizada”, vai contra tomar o ser falante como objeto e deixá-lo sem palavra e sem responsabilidade. Ocupando um lugar no discurso analítico, tornamo-nos destinatários do sofrimento da criança, oferecendo-nos como seu complemento a partir do manejo de nosso ato e interpretação.

Por se opor ao discurso da “criança generalizada” (LACAN, 1967/2003, p.367), o analista de orientação lacaniana se oferece como destinatário do sofrimento da criança, como seu complemento, como um parceiro. Ou seja, para Castro (2006), pode o psicanalista, a partir do manejo do ato clínico e da interpretação, favorecer a invenção, a construção de um saber que possibilite à criança não mais se submeter a um imperativo de gozo.

Algumas crianças estão à deriva, o seu sofrimento não para de agitar seus corpos. Elas parecem estar sem um destino. Compreende-se, assim, que é na experiência analítica, no momento do surgimento do significante carregado de gozo, que o analista pode manejar seu ato, para que, como sujeito, a criança se reconduza e se ancore, quando necessário, em um bom porto. E, a partir deste porto, cada uma possa partir para novas aventuras, sustentada por um desejo que não seja anônimo (LACAN, 1969/2003, p.373).

 

(1) “Desventuras em série” nome dado aos 13 livros de aventura pelo autor Lemony Snicket (pseudônimo de Daniel Handler). No Brasil, a série foi publicada pela Editora Companhia das Letras. Em 2004, foi lançada uma adaptação, para o cinema, de três livros da série.

 


Referências
CASTRO, H. “Ficções e fixões: ancoragens paternas”, Curinga, Belo Horizonte, Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n.23, 2006, p.113-121.
LACADÉE, P. “O uso do nome-do-pai: a ferramenta do pai e a prática analítica”, Curinga, Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n.23, 2006, p.34-70.
LACAN, J. (1967). “Alocução sobre as psicoses da criança”, In: ______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.361-368.
LACAN, J. (1969). “Nota sobre a criança”, In: ______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.369-370.
LACAN, J. (1984). Complexos familiares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p.42.
LAIA, S. “Considerações psicanalíticas sobre a violência urbana”, Latusa Digital, Rio de Janeiro, ano 7, n.40-41, mar./jun. 2010.
LAURENT, É. “A criança no avesso das famílias”, In: ALVARENGA, E.; FAVRET, E.; CÁRDENAS, M. H., A variedade da prática: do tipo clínico ao caso único em psicanálise. Terceiro Encontro Americano do Campo Freudiano. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2007, p.20.
MILLER, J.-A. “A arte do diagnóstico: O rouxinol de Lacan”, Curinga, Belo Horizonte, Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n.23, 2006, p.15-33.
TELLES, H. “Desditas da infância”, In: MACHADO, O.; DEREZENSKY, E. (Orgs.), A violência: sintoma social da época. Belo Horizonte: Scriptum, 2013, p.272-280.
VIGANÓ, C. “Servir-se do pai além do Édipo”, In: ALKIMIM, W. (Org.), Novas conferências. Belo Horizonte: Scriptum, 2012, p.175.

Jeannine Narciso
Psicanalista, responsável pelo Núcleo de Psicanálise e Saúde Mental – Montes Claros e Ipatinga. Psicóloga pela Universidade Federal de Minas Gerais. Especialista em Saúde Mental pela Universidade Estadual de Montes Claros. E-mail: jannarciso31@gmail.com