Defender-se de uma incompatibilidade na vida representativa
Virgínia Carvalho
Psicanalista, membro da EBP/AMP, doutora
e mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG.
virginiacarvalhopsicanalise@gmail.com
Resumo: A autora trabalha a noção lacaniana de “des-montar” (déranger) a defesa a partir de uma releitura dos textos de Freud “As neuropsicoses de defesa” (1894) e “Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa” (1896), nos quais localiza a “incompatibilidade na vida representativa” como o ponto chave do qual o sujeito se defende, indicando algumas perspectivas clínicas dessa concepção.
Palavras-chave: Defesa; clínica psicanalítica; pulsão.
TO DEFEND FROM AN INCOMPATIBILITY IN A REPRESENTATIVE LIFE
Abstract: The author works with the Lacanian notion of “dis-assembling” (déranger) the defense, based on a reading of the Freud’s texts The neuropsychoses of defense (1894), and Additional observations on the neuropsychoses of defense (1896), in which she localizes the “incompatibility in representative life” as the key point from which the subject defends himself. She also indicates some clinical perspectives of this notion.Keywords: Defense; psychoanalytic clinic; drive.
Na 58ª edição das Lições Introdutórias à Psicanálise, propusemos o desafio de ler Freud a partir da orientação lacaniana de que des-montar a defesa é o “coração”, a matriz mesma da operação analítica (MILLER, 2020, p. 36). O termo utilizado por Lacan é dérange, que optamos por traduzir como desmontar, desordenar. Também incluímos um hífen no des-montar para realçar a ideia de que há uma nova montagem a ser feita, uma vez que não se elimina a defesa. Essa “des-montagem” parece se aproximar do que vemos no trabalho Disassembled/Things come apart, do fotógrafo Todd McLellan (2013). O artista desmonta alguns objetos e faz desses objetos desmontados uma bela e interessante nova montagem. As fotos encontram-se disponíveis em seu site.
Ler Freud com Lacan, Lacan com Freud e Miller fazendo a costura: eis nossa metodologia de trabalho. Mas é preciso fazer isso sem apagar a complexidade do texto freudiano. Em seu seminário sobre as psicoses, o Seminário 3 (1955-1956), Lacan nos orienta nesse desafio que é ler Freud:
“só mesmo ele [Freud] é que, em vida, tenha preparado os conceitos originais necessários a atacar e ordenar o campo novo em que descobria. Esses conceitos, ele os prepara cada um com um mundo de questões. O que há de interessante em Freud é que ele não as dissimula, essas questões. Cada um de seus textos é um texto problemático, de tal modo que ler Freud é reabrir as questões” (LACAN, 1955-1956/1995, p. 128).
Com-texto
Centrar-nos-emos sobre dois textos cuja temporalidade remonta a um tempo anterior ao que Freud localiza como o da “psicanálise propriamente dita” (1925/1996): “As neuropsicoses de defesa” (FREUD, 1894/1996) e “Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa” (FREUD, 1896/1996). Ambos são anteriores ao abandono por Freud da teoria da sedução, ou seja, ele ainda acreditava que a experiência traumática da qual seus pacientes lhe falavam referia-se a reminiscências de episódios de abuso ocorridos na infância, algum tipo de sedução por um adulto. É somente três anos após esses textos que Freud escreve a Fliess sua “Carta 69” (1892-1899/1996), dizendo que não acreditava mais em sua neurótica.
Em 1897, duas questões o atordoavam: por que ainda não havia sido possível levar uma análise à sua conclusão real e exitosa?, será que todos os pais são perversos e abusam de suas filhas? Como resposta, Freud se deparou com o papel “extraordinariamente grande desempenhado na vida mental dos neuróticos pelas atividades da fantasia” (FREUD, 1924/2016). Isso o fez constatar o “erro” que cometia ao privilegiar a sedução como um fato e, ao mesmo tempo, permitiu-lhe sustentar ainda mais a ideia de que, no psiquismo humano, existe uma instância em que a verdade e a ficção coexistem lado a lado (FREUD, 1892-1899/1996), o inconsciente.
Em 1925, ao revisitar a cena do abandono da teoria da sedução, conclui que tal abandono implicava em reconhecer que “os sintomas neuróticos não estavam diretamente relacionados com fatos reais, mas com fantasias impregnadas de desejos, e que, no tocante à neurose, a realidade psíquica era de maior importância que a realidade efetiva” (FREUD, 1925/1996, p. 29). Isso nos leva à ideia que vem sendo trabalhada por Miller a respeito de que, em Freud, tudo é sonho e que todo mundo é louco — mas não nos apressemos com isso.
Também convém lembrar que, quando escreveu “Neuropsicoses de defesa” (FREUD, 1894/1996), ele ainda não dispunha de uma teoria consistente do recalque — o que se consolidou melhor em sua metapsicologia, em 1915, quando o relaciona ao “pilar sobre o qual repousa o edifício da psicanálise” (FREUD, 1915/2010), mas que ele localiza ainda mais no texto sobre “Inibição, sintoma e angústia” (FREUD, 1926/1996), que será posteriormente trabalhado aqui. Também não havia formulado suas constatações acerca da pulsão de morte, o que vai acontecer em 1920, não sem antes questionar de diversas formas sua maneira de formalizar o conceito de pulsão.
Inicialmente, Freud (1910/1996) considerava que havia dois grupos distintos de pulsão. Um que estava a serviço da autoconservação, que nomeou de pulsões do Eu, e outro que serviria às demandas sexuais. Esse primeiro dualismo pulsional ancorava suas bases no poeta Schiller, que acreditava que “fome e amor” moviam as engrenagens do mundo. Em “A perturbação psicogênica da visão” (1910/1996), Freud nos dá algumas imagens para compreendermos como uma mesma fonte poderia obedecer às duas correntes pulsionais. Diz Freud:
“A boca serve tanto para beijar como para comer e para falar; os olhos percebem não só alterações no mundo externo, que são importantes para a preservação da vida, como também as características dos objetos que os fazem ser escolhidos como objetos de amor — seus encantos” (FREUD, 1910/1996, p. 201).
Segundo Freud nos indica em sua conferência sobre “Angústia e vida pulsional” (1932/1996), quando começa a estudar o Eu e se aprofunda no conceito de narcisismo, “a distinção entre pulsão do Eu e sexual perde o sentido”, já que o Eu é sempre o principal reservatório da libido. Nesse momento, abrem-se algumas perguntas para ele sobre um tipo de pulsão bastante destrutiva, que revela uma propensão a restaurar uma situação anterior, um retorno ao inorgânico: uma “estranha pulsão que se volta para a destruição de sua própria morada orgânica essencial” (FREUD, 1932/1996). Desse modo, a hipótese de Freud passa a ser a de que existiriam duas classes de pulsão: “as pulsões sexuais, compreendidas no sentido mais amplo — Eros, se preferem esse nome —, e as pulsões agressivas, cuja finalidade é a destruição” (1932/1996, p. 129). A ideia freudiana de que vida e morte se mesclam no processo de viver e que as pulsões de morte estariam amalgamadas às de vida permitiu a Lacan (1964/1998) considerar que a pulsão é pulsão de morte e que a pulsão de vida já seria um tratamento dado à pulsão.
A pulsão é considerada por Lacan (1964/1998) um dos mais importantes conceitos fundamentais da psicanálise. Segundo a metapsicologia de Freud (1915/2016), elas podem ser consideradas “uma medida da exigência de trabalho imposta ao anímico, em decorrência de sua relação com o corporal” (p. 25). Por isso é um “conceito fronteiriço entre o anímico e o somático” (FREUD, 1915/2016, p. 25). Ela é uma pressão (drang) constante, da qual não se pode fugir, e que tem como meta a satisfação. Como esta implicaria numa suspensão do estímulo corporal, e isso não é possível, a pulsão insiste como demanda. Sua fonte é corporal, mas seu objeto é o que há de mais variável, pois não está nunca atrelado a ela. É sempre um objeto faltoso, pois será sempre um substituto, o que está escrito por Freud, nos “Três ensaios sobre a sexualidade”, do seguinte modo: “o encontro do objeto é, na verdade, um reencontro” (1905/1996, p. 210). Lacan (1964/1998) a configura como uma montagem surrealista, tal como um sujeito acéfalo, sem pé nem cabeça.
A pulsão não pode ser satisfeita nem eliminada, no entanto, pode sofrer alguns destinos. Freud (1915/2016) enumerou quatro: 1) reversão em seu oposto, que seria a mudança da finalidade da pulsão, como a mudança de atividade para passividade; 2) retorno em direção à própria pessoa; 3) sublimação, que consiste na modificação da finalidade sexual da pulsão para uma finalidade não sexual e também em uma inibição do alvo, sem restrição da intensidade; e o 4) recalque, que consiste na separação entre a ideia e o afeto que a acompanha, mantendo a ideia afastada da consciência.
O recalque ganhou um texto próprio, e, nesse, Freud (1915/2010) o articula à formação dos sintomas, sendo estes últimos seus derivados. Indica que é o recalque originário (Urverdrangung) o responsável pela divisão entre os sistemas pré-consciente/consciente e inconsciente e que esse primeiro recalque consiste em negar o acesso do representante pulsional à consciência, através de um “contrainvestimento” (1915/2016). O recalque propriamente dito é o que vai cuidar de sua continuidade e funciona mantendo uma ideia afastada da consciência.
Mas o recalque é a defesa? Freud os separa e os mistura, chegando a localizar, no texto “Inibição, sintoma e angústia” (1926/1996), que o recalque não é a mesma coisa que a defesa, classificando o recalque como “um caso especial de defesa”, pois a defesa seria algo “que pode abranger todos os processos que tenham a mesma finalidade — a saber, a proteção do eu contra as exigências” pulsionais (p. 159). Miller (2020) nos ajuda a entender a ideia de que a defesa não se equivale ao recalque. Enquanto o recalque incide sobre o significante, separando a ideia do afeto, a defesa não recairia sobre um significante. Ela qualifica, já em Freud, “uma relação com a pulsão” (MILLER, 2020, p. 52). A defesa é defesa ao real. Falarei sobre isso depois.
Feito esse com-texto freudiano, podemos agora retornar aos textos de 1894 e 1896 para entendermos melhor o que Freud chama de “incompatibilidade na vida representativa” e nos permitirmos, ainda hoje, cento e vinte seis anos após, a aprender com Freud sem nos apressarmos tanto para chegar ao ultimíssimo Miller.
A incompatibilidade representativa
Adentremos, então, em “As neuropsicoses de defesa”, cujo subtítulo é “tentativa de formulação de uma teoria da histeria adquirida, de muitas fobias e obsessões e de certas psicoses alucinatórias” (FREUD, 1894/1996). Isso nos dá uma orientação sobre o rumo que Freud imprime a esse texto: há algo comum entre a neurose histérica, a neurose obsessiva, a fobia e a psicose. Embora circunscreva esse ponto em comum, em nenhum momento Freud iguala essas categorias, borrando suas diferenças. Não faz uma despatologização, como a que tem ocorrido em nossa cultura e que Miller (2022) vem apontando como uma “igualdade” que acaba por apagar a clínica, dando lugar a uma substituição dos princípios clínicos por princípios jurídicos, já que tudo passa a se relacionar a estilos de vida. Não sei se vocês estariam de acordo, mas me pareceu que, nesse texto de Freud (1894/1996), fica evidente seu esforço, com os recursos que tem naquele momento, para dar lugar à loucura de cada um.
Leio a questão central desses textos da seguinte maneira: “como alguém pode não se defender?”. Isso me faz lembrar a pergunta feita por Lacan em seu Seminário 23 (1975-1976/2007), a propósito do paciente que relatava sofrer de “falas impostas”, dizendo-se afetado pela telepatia, de modo que todo mundo era avisado de suas reflexões. O “telepata emissor” havia tentado se matar, tamanho sofrimento na experiência desses fenômenos elementares. Joyce também vivenciava essa sensação de “palavras impostas”, uma vez que sua relação própria com as palavras evidencia o modo como as “experimenta como algo estranho, heterogêneo, ‘imposto’, que não vai por si” (MANDIL, 2003, p. 249). Joyce produz um anteparo ao caráter excessivamente vivo da linguagem, desarticulando-a. Mas, para fazer tal desarticulação, ele preserva a letra, mantendo sua escrita em inglês (MANDIL, 2003). Lacan (1975-1976/2007) destaca que a escrita deu um tratamento à dimensão parasita que está presente para todo falasser: “a questão é antes saber por que um homem dito normal não percebe que a fala é um parasita, que a fala é uma excrescência, que a fala é a forma de câncer pela qual o ser humano é afligido” (p. 92).
Em Freud (1894/1996), ao buscar em sua experiência clínica alguma resposta, indica:
“Esses pacientes que analisei, portanto, gozaram de boa saúde mental até o momento em que houve uma ocorrência de incompatibilidade em sua vida representativa — isto é, até que seu eu se confrontou com uma experiência, uma representação ou um sentimento que suscitaram um afeto tão aflitivo que o sujeito decidiu esquecê-lo, pois não confiava em sua capacidade de resolver a contradição entre a representação incompatível e seu eu por meio da atividade de pensamento” (p. 55).
Luiz Hanns, em seu Dicionário comentado do alemão de Freud (1996), se dedica ao termo unverträglich (p. 277). Quer dizer inassimilável, indigesto (faz mal à saúde), inconciliável, intratável e aponta para uma impossibilidade de coexistência. Hanns (1996) concorda com a tradução de “incompatível” presente na Imago, mas aponta que, com ela, “perde-se a ideia de uma incompatibilidade visceral, bem como a noção de que se trata de uma impossibilidade de coexistência” (p. 281). Interessante nos perguntarmos sobre o que seria essa “representação incompatível” de que Freud tanto fala. Estaríamos aí no terreno que Lacan nos ensinou a ler como o registro do real?
Freud (1894/1996) lembra que seus pacientes histéricos “conseguem recordar com toda precisão desejável seus esforços defensivos, sua intenção de ‘expulsar aquilo para longe’, de não pensar no assunto, de suprimi-lo” (p. 55). Como faz Elizabeth Von R., que se culpava por pensar em um rapaz que lhe causara uma “leve impressão erótica” justamente no momento de cuidar de seu pai enfermo, ou Miss Lucy, ao experimentar um sentimento de paixão por seu patrão. Indico a vocês retomar os casos trabalhados por Freud em seus “Estudos sobre a histeria” (1893-1895/2016), texto que se encontra no segundo volume das Obras Completas.
Em “As neuropsicoses de defesa” (1894/1996), Freud ressalta que o fato de nos defendermos não é patológico. Os sintomas que levam os sujeitos a procurar uma análise surgem, ao contrário, quando a defesa não funciona: quando “esse tipo de esquecimento não funcionou” (FREUD, 1894/1996, p. 55). Quando a defesa não é eficaz, há uma série de reações patológicas.
O eu se impõe uma tarefa, em sua atitude defensiva, de tratar a representação incompatível como “non-arrivé”, como se ela não tivesse chegado. Mas o que ocorre é que “tanto o traço mnêmico quanto o afeto ligado à representação lá estão de uma vez por todas e não podem ser erradicados” (FREUD, 1894/1996, p. 56). O eu promove, então, uma transformação dessa representação poderosa numa representação fraca, retirando-lhe o afeto. Separa-se, portanto, o afeto e a ideia, o que Freud mais adiante vai formalizar como sendo o mecanismo do recalque.
O afeto que resta livre precisa ser utilizado de alguma forma, e, nesse texto de 1894, Freud localiza que histeria, fobia e neurose obsessiva se encontram nesse modo de funcionar, mas não de forma semelhante. Embora todos eles tentem se defender da “representação incompatível”, a maneira como fazem com esse afeto livre é distinta. Vejamos essa distinção tão clínica que Freud nos apresenta.
Na histeria, esse afeto se converte em algo somático. Como ocorre com Miss Lucy, que procura Freud com uma “rinite supurativa cronicamente recorrente”, aparentemente derivada de uma cárie no osso etmoide, mas que persistia sem que seu colega clínico pudesse continuar atribuindo o problema “a uma afecção local” (FREUD, 1893-1895/2016, p. 134). Ela havia perdido todo o sentido do olfato e “era quase continuamente perseguida por uma ou duas sensações olfativas subjetivas, que lhe eram muito aflitivas. Além disso, estava desanimada e fatigada e se queixava de peso na cabeça, pouco apetite e perda de eficiência” (FREUD, 1893-1895/2016, p. 134).
Ela constantemente sentia um cheiro perturbador de pudim queimado, sintoma que foi “o ponto de partida da análise”. Nessa, Miss Lucy trouxe à luz a primeira lembrança desse cheiro, e os desdobramentos do caso mostram que Freud tentava localizar nesse momento algo que pudesse levá-lo à representação incompatível. Nos “Estudos sobre a histeria”, vemos o movimento de Freud (1893-1895/2016) de tentar levantar a barreira imposta pelo recalque. Miss Lucy havia chegado à ideia de que sua paixão pelo patrão era sua fonte de sofrimento, e isso tornou desnecessário o sintoma de sentir cheiro de pudim queimado, porém, abriu caminho para um deslocamento, passando a experimentar um outro odor: o de fumaça de charuto. Freud (1893-1895/2016) relata não ter ficado “muito satisfeito com os resultados do tratamento”. Em suas palavras: “eu apenas eliminara um sintoma só para que seu lugar fosse ocupado por outro” (FREUD, 1893-1895/2016, p. 145). Ele segue ainda o caminho do segundo odor, tentando liberar mais lembranças traumáticas, e chega a uma cena que supõe ter desencadeado os sintomas. Trata-se de um momento em que o patrão havia gritado com ela sem que ela fosse responsável pela situação em questão, o que, em sua concepção, evidenciava sua ausência de sentimentos ternos para com ela. Ao chegarem a essa cena, uma lembrança aflitiva, ela se libera dos sofrimentos que ensejaram o início da análise, que durou nove semanas.
Voltando ao texto que estamos trabalhando, Freud (1894/1996) acreditava que, se na histeria esse afeto livre se transpõe para “enormes somas de excitação para a inervação somática”, na neurose obsessiva haveria uma carência na “aptidão para a conversão” (p. 59). Não obstante, os sujeitos parecem também “rechaçar uma representação incompatível”. Quando tal representação é separada de seu afeto, ele fica obrigado a permanecer na esfera psíquica. Como está livre, “liga-se a outras representações que não são incompatíveis em si mesmas, e graças a essa ‘falsa ligação’ tais representações se transformam em representações obsessivas” (FREUD, 1894/1996, p. 59).
No caso do Homem dos Ratos, de 1909, isso fica muito evidente. Vale muito a pena a retomada desse caso, que se encontra no volume X, no texto intitulado “Nota sobre um caso de neurose obsessiva”. Trata-se de um jovem senhor de formação universitária que se apresenta a Freud (1909/1996) com obsessões que o acompanham desde a infância e que se intensificaram nos últimos quatro anos. O caso tem como cenário os ratos (Ratten), que tomam relevo a partir do relato de um castigo feito pelo capitão “cruel” quando prestava o serviço militar. Tal castigo consistia em amarrar o criminoso e introduzir ratos dentro de suas nádegas. Esse relato se transforma em ideia obsessiva, produzindo sintomas que se referem ao termo: Ratten (ratos), Spielratten (ratos de jogo), Raten (prestações, pagamentos), Heiraten (casamentos, acasalamentos). Para Freud (1909/1996), no final das contas, o que se coloca é uma questão sobre sua própria existência como rato, por ver no animal uma “imagem viva de si mesmo” (p. 188).
No início de seu tratamento, o paciente relata a Freud sobre o episódio da morte de seu pai, que ocorreu exatamente no momento em que ele havia se deitado para descansar, enquanto o acompanhava por ocasião da doença no pulmão. Soube, pela enfermeira, que o pai o havia chamado, o que aumentou ainda mais sua recriminação: “passara a tratar a si próprio como criminoso” (FREUD, 1909/1996, p. 156). No caso do Homem dos Ratos, o rato foi o objeto erotizado. É o que faz com que esse sujeito inclua os ratos em sua economia, o que pode ser visto na associação que faz entre “tantos ratos, tantos florins” (LACAN, 1962-1963/2005, p. 250).
Para Freud (1894/1996), “a obsessão é, em primeiro lugar, a fonte do afeto agora colocado numa falsa ligação” (p. 59). O paciente chega se queixando de suas obsessões, mas o afeto ligado a uma determinada ideia parece estar desalojado e transposto.
No caso de uma substituição da qualidade do afeto, estamos no terreno da fobia: a angústia liberada cuja origem sexual não deva ser lembrada pelo paciente irá apoderar-se das fobias primárias comuns da espécie humana, relacionadas com animais, tempestades, escuridão, e assim por diante, ou de coisas inequivocamente associadas, de um modo ou de outro, com o que é sexual — tais como a micção, a defecação ou, de um modo geral, a sujeira e o contágio. Podemos aqui fazer referência a Hans e sua fobia de cavalos, caso que se encontra no volume XVII sob o título “História de uma neurose infantil” (FREUD, 1909/1996).
Em “Neuropsicoses de defesa”, Freud (1894/1996) lembra que, embora sejam distintas as maneiras de lidar com o afeto liberado da representação incompatível recalcada, “em todas as situações, é a vida sexual o que desperta o afeto aflitivo”.
Mas, e a psicose? Considero que esses dois textos com os quais estamos trabalhando nos trazem luzes importantes para o trabalho com a psicose, mesmo que sejam ainda muito incipientes e que Freud ainda não tenha localizado a diferenciação entre a defesa e o recalque. Vejamos o que ele escreve:
“a defesa contra a representação incompatível [na neurose] foi efetuada separando-a de seu afeto; a representação em si permaneceu na consciência, ainda que enfraquecida e isolada. Há, entretanto, uma espécie de defesa muito mais poderosa e bem-sucedida. Nela o eu rejeita a representação incompatível juntamente com seu afeto e se comporta como se a representação jamais lhe tivesse ocorrido. Mas, a partir do momento em que isso é conseguido, o sujeito fica numa psicose que só pode ser qualificada como ‘confusão alucinatória’” (FREUD, 1894/1996, p. 64).
Vemos como Freud, já em 1894, aponta para a rejeição da representação incompatível na psicose, o que Lacan irá trabalhar a partir de sua concepção de foraclusão, que pode ser lida no Seminário 3 (LACAN, 1955-1956/1995).
Interessante o fragmento clínico, trazido por Freud (1894/1996), da moça que experimentava sua paixão por um homem e que acreditava, de modo erotômano, que ele também a amava, e que, diante da recusa deste, vive a chegada do seu amor como um sonho. Freud (1894/1996) lembra que ali “o eu rechaçou a representação incompatível através de uma fuga para a psicose” (p. 65). Ele
“rompe com a representação incompatível; esta porém, fica inseparavelmente ligada a um fragmento da realidade, de modo que, à medida que o eu obtém esse resultado, também ele se desliga total e parcialmente da realidade. […] Assim, quando a defesa consegue ser levada a termo, ele se encontra num estado de confusão alucinatória” (FREUD, 1894/1996, p. 65).
Freud (1894/1996) conclui o texto com a ideia de que há “três métodos de defesa” (p. 66) e podemos convidar Lacan e Miller para essa conversa, mas não sem antes percorrermos suas “Observações adicionais às neuropsicoses de defesa”, texto de 1896 que nos traz ainda mais elementos. Neste, ele afirma que a defesa é “o ponto nuclear no mecanismo psíquico” tanto da histeria como da neurose obsessiva e da psicose alucinatória (FREUD, 1896/1996).
Ele vai tentando explicar a neurose e a psicose a partir do traço mnêmico deixado por perturbações sexuais vividas antes do advento da maturidade. Na neurose histérica, o afeto vinculado à experiência seria colocado no corpo, enquanto, na neurose obsessiva, se deslocaria para outra ideia. Para ele,
“a natureza da neurose obsessiva pode ser expressa numa fórmula simples. As ideias obsessivas são, invariavelmente, auto-acusações transformadas que reemergiram do recalcamento e que sempre se relacionam com algum ato sexual praticado com prazer na infância” (FREUD, 1896/1996, p. 169).
O sujeito recalca e substitui a lembrança dessas ações prazerosas por “um sintoma primário de defesa” (FREUD, 1896/1996, p. 169). A conscienciosidade, a vergonha e a autodesconfiança são sintomas dessa espécie, que dão início a um período de aparente saúde mas que, na realidade, apontam para uma defesa bem-sucedida.
“O período seguinte, o da doença, é caracterizado pelo retorno das lembranças recalcadas — isto é, pelo fracasso da defesa” (FREUD, 1896/1996, p. 169). Esse fracasso leva a formações de compromisso entre as representações recalcadas e as recalcadoras; os sintomas. Ele usa um termo interessante, apontando que se trata de um “colapso da defesa” (FREUD, 1896/1996, p. 171).
Nesse texto bastante clínico, Freud (1896/1996) mostra algumas estratégias da neurose obsessiva. Considero que nos auxilia grandemente na clínica porque nos ajuda a entender que os sintomas dos quais o obsessivo se queixa no início do tratamento não são a causa de seu sofrimento, mas sim sua maneira de se defender dele. Ou seja, a dúvida, a compulsão, a autoacusação, a ruminação, as medidas penitenciais, a vergonha, a hipocondria, as medidas de proteção e de colecionar objetos, assim como a busca incessante por assegurar “o entorpecimento da mente” são manifestações de uma defesa secundária, diante do colapso da defesa primária.
Diferentemente da neurose, na paranoia a defesa é muito bem sucedida, daí Freud (1896/1996) a considera uma psicose de defesa. Ao mesmo tempo, ele indica que no desencadeamento psicótico haveria um total fracasso da defesa:
“Em vista do que se sabe da paranoia além disso, inclino-me a supor que há um gradual comprometimento das resistências que enfraquecem as auto-acusações, de modo que, por fim, a defesa fracassa por completo e a auto-acusação original, o termo real do insulto de que o sujeito vinha tentando poupar-se, retorna em sua forma inalterada” (FREUD, 1984/1996, p. 181).
Mais tarde, ele indica que o que foi abolido do simbólico retorna no real.
“Parte dos sintomas provém da defesa primária — a saber, todas as representações delirantes caracterizadas pela desconfiança e pela suspeita e relacionadas à representação de perseguição por outrem” (FREUD, 1896/1996, p. 182).
Outra passagem interessante é quando ele diz que “nenhuma defesa pode valer contra os sintomas de retorno aos quais, como sabemos, liga-se uma crença” (FREUD, 1896/1996, p. 183). Parece-me que podemos extrair algumas consequências dessa frase quando estivermos nos dedicando a desenvolver algo sobre o delírio.
Na paranoia, a autoacusação é defendida pela projeção, ou seja, a desconfiança passa a ser de outras pessoas: “o sujeito deixa de reconhecer a autoacusação; e como que para compensar isso, fica privado de proteção contra as autoacusações que retornam em suas representações delirantes” (FREUD, 1896/1996, p. 182). Essas autoacusações retornam sob a forma de pensamentos ditos em voz alta. As representações delirantes que chegam à consciência através de uma formação de compromisso (os sintomas de retorno) “fazem exigências à atividade de pensamento do eu, até que possam ser aceitos sem contradição” (FREUD, 1896/1996, p. 183). Assim, o que corresponde aos sintomas de defesa secundária na neurose obsessiva, na psicose se faz como uma formação delirante combinatória: “delírios interpretativos que terminam por uma alteração no eu” (FREUD, 1896/1996, p. 183).
Esse desenvolvimento é realizado por Freud a partir do caso da Sra. P. e evidencia uma certa confusão entre a paranoia e a esquizofrenia, ponto que também no texto anterior se verifica. Digo isso pela nota que ele apresenta em 1924, reforçando que se trata de um caso de dementia paranoides.
A Sra. P., caracterizada por Freud (1894/1996) como “uma mulher inteligente”, levava “uma vida saudável” em seus últimos anos até que o nascimento de seu filho “mostrou os primeiros sinais de sua atual enfermidade” (p. 175). Ela tornou-se pouco comunicativa e desconfiada, acreditando que as pessoas a estavam menosprezando, o que, pouco tempo depois, se transformou numa queixa de que as pessoas liam seus pensamentos e sabiam tudo o que ocorria em sua casa. Isso era transposto a seu corpo e a sensação que ela experimentava em seu baixo abdome era atribuída à certeza de que sua criada, com quem estava a sós, havia tido uma “ideia imprópria” (FREUD, 1894/1996, p. 175). Sentia seus órgãos genitais “como se sente uma mão pesada” e começou a ver coisas que a horrorizavam, como alucinações de mulheres nuas e genitálias femininas e masculinas. Essas imagens a aterrorizavam porque ela também sentia seu corpo exposto. Começou a ser importunada por vozes que a censuravam e passou a não mais querer sair de casa e não se alimentar.
Com Freud, a Sra. P. pôde percorrer algumas cenas infantis, entre elas, uma em que se despia sem nenhuma vergonha na frente de outras crianças, o que leva Freud a considerar que haveria algo por aí. Mas “a depressão da paciente começou na época de uma discussão entre seu marido e seu irmão, em consequência da qual este passou a não mais frequentar sua casa” (FREUD, 1894/1996, p. 178). Ele não dá muitos elementos sobre esse ponto, mas traz uma nova cena em que sua cunhada a visitara e lhe dissera que “em toda família acontecem coisas sobre as quais eu gostaria de pôr uma pedra. Mas quando uma coisa desse tipo acontece comigo, eu a trato com descaso” (FREUD, 1894/1996, p. 178). O significante “descaso” havia impregnado o delírio de P. Seria interessante sabermos mais sobre onde entra o bebê de P. nessa história, mas Freud não nos deu elementos a esse respeito, mesmo tendo localizado que o desencadeamento ocorreu após o nascimento da criança.
No texto que estamos trabalhando, de 1894, Freud afirma que pode reproduzir com sua paciente “várias cenas de seu relacionamento sexual com o irmão” e, nessas revivescências, seu corpo “participou da conversa”, o que nos aponta algo sobre a importância do atendimento presencial. Para ele, “depois de percorrermos essa série de cenas, as sensações e imagens alucinatórias desapareceram e (ao menos até o presente) não retornaram” (FREUD, 1894/1996, p. 179). Não deixem de ler as notas de rodapé escritas por Freud. Elas nos mostram, tal como a arte de Todd McLellan (2013), que há algo que se monta e se des-monta, formando novas montagens. Arranjos e desarranjos.
Des-montar a defesa
O desenvolvimento de Freud nos leva à ideia de que a defesa é algo basal que está presente tanto na neurose como na psicose e que é defesa ao sexual, ou à pulsão, como ele irá trabalhar mais adiante. Em um texto intitulado “Clínica irônica”, de 1988, que vocês encontram publicado no livro Matemas I (1996), Miller indica que nos defendemos do real e que “todos os nossos discursos não passam de defesas contra o real” (p. 190). Lembra que, para Lacan, a clínica psicanalítica é “o real como o impossível de suportar”. Nesse sentido, as formas clínicas não passam de modos de defesa, até mesmo “no caso limite dito esquizofrênico, onde o sujeito aparece sem defesa diante do impossível de suportar” (MILLER, 1996, p. 198).
Miller (1996) considera que “o delírio é universal porque os homens falam e porque há linguagem para eles. Eis, então, o a-b-c ao qual se volta: a linguagem [o Outro] tem como tal, efeito de aniquilamento” (p. 192). Anteriormente, trabalhamos com a ideia de que não há Outro do Outro, ou seja, não há um Outro que diga o verdadeiro sobre o verdadeiro. Para falar com Guimarães Rosa (1956/2019), “mente pouco quem a verdade toda diz”. Nesse sentido, Miller (1996) propõe que nossa clínica seja irônica, ou seja, fundada sobre a inexistência do Outro como defesa contra o real (a neurose tenta fazer existir o Outro, ao preço de um apagamento subjetivo; na psicose, o Outro não está separado do gozo).
Dez anos após, em seu curso sobre A experiência do real na cura psicanalítica, Miller (2014) afirma que “na psicanálise se trata do real e da defesa contra este”. Mas, o que é o real? Milner (2006) nos ajuda na definição dos três registros, real, simbólico e imaginário, do qual depende a estruturação da realidade:
“existem três suposições. A primeira, ou melhor, uma delas, pois já é demais por ordem nisso, por mais arbitrária que seja, é que há: proposição tética que só tem por conteúdo sua própria posição — um gesto de corte, sem o qual não há nada que exista. Chamaremos isso de real ou R. Outra suposição, dita simbólica ou S, é que há alíngua, suposição sem a qual nada, e singularmente nenhuma suposição, poderia ser dita. Uma outra suposição, enfim, é que há semelhante, na qual se institui tudo o que constitui laço: é o imaginário ou I” (p. 7).
Para Lacan (1975-1976/2007), o real é o impossível porque “é sem lei” e “não tem ordem”1 (p. 133). Exatamente por isso, para que o homem possa, talvez, “reencontrar alguma coisa que seja da ordem do real” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 120), é necessário se colocar no lugar de lixo, o que significa dispensar o sentido. Quanto mais tenta apreender o real pelo sentido, mais longe está dele.
Miller (2012) ressalta que o real psicanalítico é desprovido de sentido e não corresponde a nenhum querer-dizer. Ele não é “um cosmo, não é um mundo, nem uma ordem; é um pedaço, um fragmento assistemático porque separado do saber ficcional” (MILLER, 2012, n.p.). O real é o que se produz no choque pulsional do encontro do significante com o corpo. O real inventado por Lacan não é o real da ciência. É um real ao acaso, contingente, na medida em que falta a lei natural da relação entre os sexos. O sentido escapa a esse real e, quando há doação de sentido, ela ocorre através da elucubração da fantasia. Favret, ao se perguntar sobre O que ilumina o passe no Ultimíssimo ensino de Lacan? (2014), propõe que, no final de uma análise, trata-se de como cada um tenta se aproximar de um ponto, de um pedaço de real, apesar de sua opacidade.
Frente ao real, nos defendemos. A defesa, segundo Miller (2014), qualifica a relação inaugural do sujeito com o real. “A abordagem do real se inscreve em primeiro lugar em termos de defesa, e não de apetite, harmonia ou cálculo” (MILLER, 2014, p. 51). Miller (2012) indica que, “para entrar no século XXI, nossa clínica deverá se concentrar em desmontar a defesa, desordenar a defesa contra o real”. Em uma análise, o inconsciente transferencial é uma “defesa contra o real”, ou seja, uma tentativa de fazer o Outro existir. Isso ocorre porque, “no inconsciente transferencial, continua vigente uma intenção, um querer dizer, um querer que me seja dito algo” (MILLER, 2012). Isso não ocorre no inconsciente real, que não é intencional, apenas “é”. Isso abriria para mais outra pesquisa que encontraria sua ancoragem no “Prefácio para Edição Inglesa do Seminário 11” (LACAN, 1976/2003).
Essa indicação de que nossa clínica precisa “des-montar a defesa” provém da afirmação lacaniana, em seu Seminário, livro 24: l’insu que sait de l’une-bevue s’aile a mourre (LACAN, 1976-1977), de que o falasser fala sozinho e sempre a mesma coisa, a não ser que se abra para falar com um psicanalista e receba deste algo que desordena, desarranja (dérange) sua defesa (LACAN, 1976-1977). Gueguen (2014) propõe a utilização do termo “desmontagem da defesa” em detrimento da expressão “perturbar a defesa”, pois, para ele, “a desmontagem da defesa supõe que uma outra construção venha no lugar do que foi esvaziado” (p.103). Nos testemunhos de passe vemos essa des-montagem, assim como buscamos fazer nas construções de casos clínicos. É também essa nossa aposta de leitura ao texto freudiano: des-montá-lo e nos permitir sermos tocados por ele.