Diante Da Escalada Dos Perigos, A Psicanálise?
A invenção freudiana sobreviveu a todos os desastres do século XX, mas nada garante que será assim nos tempos que virão. O que foi demonstrado é que o desejo do analista resiste, por meio de sua transmissão original através de sua própria experiência, enquanto houver sujeitos divididos por esse saber que lhes aflige, lhes faz suportar a existência humana ao preço de sintomas; enquanto houver mulheres e homens que acreditem no inconsciente. Se algumas condições foram reunidas para que essa invenção (LACAN, 2003, p. 29-90) viesse à luz, outras permanecem necessárias para que ela se desenvolva. A liberdade de pensamento é uma delas, assim como a liberdade de circular e de encontrar livremente seus concidadãos, a liberdade de exercer a profissão de psicanalista. Essas condições estão reunidas hoje na Europa, mas estarão amanhã? Em 1933, os livros de Freud foram queimados em praça pública pelos nazistas, e mesmo que a prática da psicanálise “não tenha sido proibida na Alemanha hitlerista, ela foi interditada aos analistas judeus” (SOKOLOWSKY, 2013, p. 265). As declarações de Freud reunidas por Laura Sokolowsky fazem pensar que ele não dava crédito ao futuro da psicanálise, principalmente quando a segurança de Berlim caiu por terra e os nazistas e seus colaboradores tomaram o Instituto de Berlim. Outro acontecimento foi o desaparecimento de Ferenczi na Hungria, o que não permitiu o desenvolvimento esperado da psicanálise, da mesma forma como nos EUA (mas ali por razões de orientação). Entretanto, em nenhum momento, Freud considerou a causa perdida, empenhando-se em encontrar a resposta à altura da urgência do momento, particularmente com seu Moisés, ou, ainda, com “Análise finita e infinita”. Sua idade não foi motivo de abstenção, pelo contrário, na medida de suas forças, contribuiu para sustentar o que podia ser sustentado.
A pulsão de morte
A Primeira Guerra Mundial foi, para Freud, o encontro com um real que perturbou sua percepção das relações humanas e teve uma grande repercussão sobre sua própria teoria. O nacionalismo alemão de sua juventude (FREUD, 1987, p. 199) e o orgulho pelo engajamento de seu filho Martin na guerra, seguido de Ernest, não se estenderam por muito tempo diante do massacre de uma jovem geração de homens, mesmo que seus próprios filhos tenham sobrevivido. A angústia, durante quatro anos, de não saber se os veria novamente, a morte de pessoas próximas, transformou Freud radicalmente, que tirou daí as consequências na teoria e na prática do pós-guerra. Suas preocupações sobre a morte orientaram textos maiores, tais como “Luto e melancolia”, “As pulsões e seus destinos”, “Além do princípio do prazer”. Em 1915: “De fato, é impossível imaginar nossa própria morte e, sempre que tentamos fazê-lo, podemos perceber que ainda estamos presentes como espectadores” (FREUD, 1969, p. 327). Por isso Freud vai “tentar dar um sentido à impensável destruição generalizada da qual é a testemunha” (KAMIENIACK, 2008), construindo sua metapsicologia. É sua concepção da sociedade e da cultura que se encontra perturbada pelas terríveis consequências da guerra. Como as nações de cultura podem cometer tais crimes de massa? Ele tentará responder retomando Gustave Le Bon e dará, nos textos O futuro de uma ilusão e O mal-estar na civilização, a ideia de que a cultura não dá nenhuma esperança de coexistência pacífica entre os humanos, sempre prontos a empregar a agressividade do narcisismo e das pulsões.
No coração do ser
Jacques-Alain Miller demonstrou como Lacan soube ler Freud acerca dessas questões sublinhando seu silêncio editorial durante a Segunda Guerra Mundial e destacando a importância desse período para aquele que soube intervir face o antijudaísmo que se abateu sobre sua família. À sensibilidade frente ao antissemitismo, Freud, que desde muito jovem sentiu na violência contra seu pai, fará assumir o fato de ser judeu, como dirá ao pai do pequeno Hans. Ele dá indicação do que a psicanálise deve enfrentar, ainda que tenha havido avanços no processo de a “tornar laica”. Não negligenciemos que ainda hoje as redes sociais dão voz a comentários cuja virulência antissemita ainda é dirigida a Freud e a seus descendentes. Por essa razão, as consequências do projeto nazista de exterminar massivamente os judeus da Europa continuam sendo aquilo com o que a psicanálise e os psicanalistas nunca poderão negociar. Que Lacan tenha feito uma referência aos campos de concentração em sua “Proposição de 9 de outubro de 1967” reforça ainda mais essa exigência.
Ao dar seu seminário na rua Ulm, na École Normale Supérieure, nos degraus do Panthéon durante a greve da Sorbonne, e legalmente criar o departamento de Vincennes não sem se endereçar aos estudantes “enraivecidos” no local, Lacan nos mostrou que defender a extensão da psicanálise exige sair do consultório e se juntar ao real dos transbordamentos sociais para perceber algo que diz daquilo que é o gosto do momento, até mesmo o desgosto.
Ele sustentou essas consequências para a psicanálise, e seu seminário O avesso da psicanálise formaliza as modalidades do discurso que afetam aquele que se analisa e as passagens possíveis ou impossíveis de um ao outro (mestre, histeria, universidade, psicanálise). Percebe-se uma constante necessidade de se reformular os conceitos com os quais trabalhamos, com o objetivo de mantê-los ativos no real que tentamos abordar e na experiência do tratamento, para reduzi-lo a um matema transmissível e, assim, entender esse real que ruge e ameaça o mundo. Vê-se assim que a atualidade tem esta frase da “Proposição”: “Nosso futuro dos mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação!” (LACAN, 2003, p. 263).
Uma exigência
Lacan localizou um pouco antes o que se tornou uma exigência e que o levou a se separar da IPA, não por sua própria vontade, mas assumindo posições que deram uma chance à psicanálise freudiana de se reinventar: “Eis onde nos demitimos daquilo que nos faz responsáveis, ou seja, da posição em que fixei a psicanálise em sua relação com a ciência, a de extrair a verdade que lhes corresponde em termos cujo resto de voz nos é alocado” (LACAN, 2003, p. 257).
Ao terminar os Escritos por “A ciência e a verdade”, Lacan lançou um sinal decisivo. J.-A. Miller foi capaz de nos transmitir sua força e nos conduzir através da construção da AMP, e, ainda mais, a não dar importância aos golpes daqueles que são facilmente fascinados pela ciência e desejavam esquecer as consequências de seus posicionamentos. Seja pela invasão da prática avaliadora, seja utilizando as miragens do imaginário e da genética, o respeito que essas disciplinas impõem apenas se mantém quando deixam um lugar para a palavra. Esse ainda é e sempre será o papel do movimento dos Fóruns, hoje europeus.
O fim da democracia libera[1]
Não importa sua duração: dois séculos para a democracia ateniense, cinco para o Império Romano, mil anos para a república vienense, os sistemas políticos mudam. A alegria econômica ou o regime das liberdades de seus povos nada mudaram. Desde a última guerra mundial, vivemos na Europa e na América do Norte em um sistema que garante globalmente as liberdades individuais e promete um futuro de desenvolvimento econômico para seus habitantes com mais ou menos intervencionismo para corrigir o excesso do mercado. Depois de menos de um século, essa “democracia liberal […] poderia de fato estar chegando ao fim” (MOUNK, 2018, p. 364). O fim da União Soviética e de seus vassalos, ao marcar o fim das “democracias populares”, abriu a era de uma liberdade da qual eram privados, sem democracia. O autoritarismo que prevalecia retornou mascarado por um populismo travestido pelo sufrágio universal, uma força que tende a ser ouvida na Europa (Polônia, Hungria, Áustria, Itália, etc…). As vociferações do presidente Trump, dos EUA, mal escondem sua ambição nesse domínio, e mesmo que as instituições americanas enquadrem seus excessos, isso ainda respinga em outros países do mundo (Filipinas, Venezuela e ameaças no Brasil). Essa disjunção entre democracia e liberdades individuais é perceptível nos sistemas em que a potência do mercado exige, para a sua expansão profunda, um ataque às liberdades individuais – ou, pelo contrário, deseja restringir a satisfação da reivindicação dos povos – e também nos sistemas em que as oligarquias se instalam para controlar a sociedade civil em benefício dos seus interesses econômicos ou ideológicos (Erdogan, na Turquia, por exemplo). Ocasionalmente, as manifestações de massa permitiram limitar essa evolução (contra a presidência corrupta da Coreia do Sul ou contra o partido polonês Direito e Justiça, em 2007). Os chefes de Estado que devem suas eleições às promessas “populistas” têm, frequentemente, uma visão a curto prazo que lhes permite assegurar uma reeleição, por uma redistribuição saudável em um primeiro tempo, e, em seguida, é a hora dos sacrifícios com a privação das liberdades democráticas para assegurar a perenidade de um regime desligado de todas as realidades (o exemplo da Venezuela é surpreendente a esse respeito). Inútil convocar o grau de cultura dos povos ou a anterioridade de seu sistema democrático: o equilíbrio conseguido entre liberdade e democracia é ameaçado quando as dificuldades complexas do mundo real conduzem as personalidades políticas a fazer proposições simples e a curto prazo para tratá-las. A qualificação de demagógico é insuficiente para qualificar os comportamentos políticos que conduzem ao desastre, como a história não tão antiga demonstrou na Europa ocidental. Sob o pretexto de satisfazer as reivindicações do povo, os partidos da França tornaram-se movimentos ou agrupamentos, prontos a tomar as pesquisas de opinião como a realidade dos desejos de um povo ou de uma nação. Nem a pena de morte teria sido abolida nem o aborto, legalizado, sem a força de convicção de um Robert Badinter ou de uma Simone Veil. Foi, contudo, necessário que um presidente eleito tivesse a coragem de dizer que ele era fiador dos interesses do povo francês e obter o aval da representação parlamentar. Veremos desaparecer essas equações que nos permitem falar de democracia liberal (no sentido anglo-saxão, e não somente do lado do liberalismo econômico) sob o golpe das palavras de ordem tão absurdas quanto injustas sobre a imigração ou o aumento da insegurança?
A mola de tudo isso é o medo instilado nos habitantes de um país ao brandir ameaças que afetam sua existência, por mais pacífica e isolada que ela seja. Basta observar as regiões nas quais os extremos (direita e esquerda) fazem suas melhores pontuações eleitorais na França para compreender esse amálgama entre as reais dificuldades econômicas e sociais e os discursos de medo ou de ódio que constituem as reivindicações que sustentam os regimes autoritários até mesmo as ditaduras (TONDELIER, 2017).
Combater
A ciência, à medida que amplia seu conhecimento e seu domínio da realidade do nosso planeta (bem como dos seres vivos), exige sempre mais meios econômicos e liberdade de ação. Por definição, sob o modelo do experimentador que não se inclui em sua experiência, como Lacan o demonstrou, os atores do mundo científico contemporâneo que atuam supostamente pelo interesse de todos, para o seu desenvolvimento, às vezes são, a contragosto, os profetas de um mundo que caminha para a destruição. As questões dos orçamentos de pesquisa demonstram que, frequentemente, as promessas de resultados ocupam a dianteira da cena, e isso sem dar informações completas sobre o que é visado. A maneira como são solicitadas as doações nos grandes setores de pesquisa (da medicina à ecologia) se assemelha, por vezes, às promessas de startups em busca de investidores. O avesso dessas promessas revela ser os medos que elas veiculam quando os resultados dessas investigações ou dessas pesquisas não se realizam.
A meteorologia e a ecologia doutrinária também fazem crescer o nível de apreensão dos riscos (lembremo-nos dos milenaristas). Os medos das crianças, como nossa clínica o demonstra, nutrem a angústia do adulto que se exprime na clínica pós-traumática. O terreno é, então, propício para que a mola desses medos seja ativada e oriente os votos em direção às proteções prometidas ou à designação de um bode expiatório: o emigrante será o escolhido, como se cada um devesse compartilhar diretamente seu prato com aquele que foge dos horrores da guerra e da miséria.
Então, não são os movimentos da população que ameaçam a liberdade ou a democracia, mas o medo que dela se pode sentir.
A experiência da psicanálise nos confronta com a exigência de achar os recursos para viver com os outros, mesmo com aqueles que não escolhemos, como os pais ou ascendentes, e até mesmo para nos mantermos afastados sem desconhecer as razões devastadoras que teríamos para fazê-lo. Ela nos ensina a não ignorar os processos de segregação (SIDON, 2102) que ameaçam, sem parar, as coletividades humanas e a medir a parte que nos é devida.
As diferentes associações, os CPCTs, reunidos na FIPA, continuam sendo observatórios excepcionais dessas manifestações do real no social, desses sintomas contemporâneos que não conduzem necessariamente a encontrar um psicanalista. Indicadores dos limites também daquilo que é esperado dos efeitos da fala em nossa sociedade. Que as Jornadas da ECF das Escolas da AMP tenham um grande sucesso público testemunha o que é esperado do ponto extremo da experiência quando se trata do testemunho dos AE. Os atentados de 2015 mostraram a fragilidade de nossas construções, mas também sua vitalidade, quando, no ano seguinte ao cancelamento, um público ainda maior esteve presente nas Jornadas da ECF.
O mais íntimo que se mistura a essa performance pública no passe continua a ser uma ferramenta maior para interpretar não somente a Escola de psicanálise que o acolhe, mas também o mundo que o envolve. A esse preço, a psicanálise tem um futuro, mas não sem combater os germes do ódio, sempre prontos a se expressar. As declarações de amor não são suficientes.
Tradução: Luciana Silviano Brandão Lopes
Revisão: Ana Helena Souza e Márcia Mezêncio