Diferentes usos da droga

Diferentes usos da droga1

Marcelo Quintão e Silva
Psiquiatra e psicanalista

E-mail: mquintaos@uol.com.br

Resumo: Vivemos numa época marcada pela invasão dos objetos de consumo e, neste artigo, tomamos a toxicomania como seu paradigma. Quando o gozo deixa de ser localizado e se torna onipresente, como uma “metástase”, o que assistimos é um enxame de drogas. O desafio da clínica passa por uma abordagem que possa localizar a droga na história singular de cada sujeito, Um por Um.

Palavras-chave: toxicomania; metástase do gozo; sintoma; gozo onipresente.

DIFFERENT USES OF DRUGS

Abstract: We live in an era marked by the invasion of consumer objects, with drug abbuse taken in this article as a paradigm. When juissance ceases to be localized and becomes omnipresent, like a “metastasis,” what we see is a swarm of drugs. The clinical challenge lies in an approach that can pinpoint the drug within the singular history of each subject, One by One.

Keywords: drug addiction; enjoyment metastasis; symptom; omnipresent enjoyment. 

 

O conceito de toxicomania é uma criação recente e sua importância, seu lugar e seu papel estão em constante evolução, na medida em que se modificam as configurações da subjetividade contemporânea, a cada tempo. Trabalhamos aqui o caso de um paciente atendido na rede pública de BH à luz do trabalho de Fabián Naparstek (2015; 2018), no qual ele nos apresenta, numa articulação com outros conceitos, um percurso histórico e teórico a respeito da presença das drogas em nossa civilização.

Tendo por objeto a singularidade do sujeito, o autor vai localizá-la inserido no contexto do número sem fim de novas drogas que atualmente invadem o mundo, acentuando que existem inúmeras maneiras de cada falasser fazer uso delas. Seu significado para cada um é único e tem uma inserção particularizada em sua vida, passando então a compor sua história, sua singularidade. Essa relação de um sujeito com uma substância pode ser diferente da de outro e diferente também em determinados momentos de sua própria história pessoal.

A história da relação do homem com as substâncias psicoativas é milenar e praticamente universal, marcada por particularidades em cada cultura, tanto no tocante ao uso pessoal quanto a seu valor social, muitas vezes assumindo uma função ritualística e com atribuições especiais para alguns sujeitos dentro do grupo. Já a designação desse uso como “toxicomania” possui em torno de 150 anos, aparecendo nos primeiros registros dos hospitais. Momento crucial na história do consumo das substâncias é aquele em que o uso, sob os efeitos do discurso da ciência, se transforma em toxicomania ou alcoolismo. Esse momento inaugura um novo laço subjetivo com a substância em questão, modo marcado pelo discurso da ciência, que estabelece um laço patológico (NAPARSTEK, 2018).

O primeiro uso extenso e prolongado de opiláceos em ambiente hospitalar ocorreu durante a Guerra Civil norte-americana (1861-1865), por aplicação intravenosa de morfina para acalmar a dor dos feridos, quando foi descrita a “dependência artificial” à morfina. O mesmo ocorreu na guerra franco-prussiana, em 1870. O fato determinante nesse percurso foi a primeira descrição da “síndrome de abstinência”, que trouxe a dependência para o campo da medicina, o que se considera um fato científico. Ao se introduzir, tendo por base o discurso da ciência, os termos “toxicomania” e “adição”, patologizando essa forma de laço com a droga, fica estabelecido um novo campo nosológico (NAPARSTEK, 2018).

Os EUA tomaram uma decisão crucial ao responderem com a “guerra às drogas”, atuando em busca do apoio de outros países para que adotassem a mesma política, tendo por base a ciência enquanto discurso do amo. Vale dizer que o que se iniciava era uma política repressiva contra as drogas, de consequências geopolíticas.

A orientação da Organização Mundial da Saúde por sua vez se baseia na distinção entre as diferentes substâncias pelo maior ou menor risco de abuso ou de dependência e o que está em jogo é o tipo de droga e a quantidade consumida. As drogas se dividem pelo seu poder de induzir dependência, “drogas duras”, ou as de menor potencial, “drogas doces”. Surge então uma série das assim chamadas “drogas malignas”, cuja variedade inicial só cresce desde então.

Portanto, é um nome dado pela ciência, que cria uma patologia, levando ao conceito de um uso único da droga, o uso toxicômano – conceito que não inclui o sujeito. A toxicomania enquanto tal está intimamente ligada a um discurso dominante em uma época bem precisa e nomeia um uso globalizado das drogas.

Para Freud (1930/2020), uma das maneiras de paliar o mal-estar na cultura, além da religião, das artes, e da ciência, é o uso dos narcóticos, o que naquele tempo ocorria como um sintoma isolado, bem diferente do que se passa atualmente. Em nossa época, há um forçamento universal a esse enfrentamento pela via do consumo, uma tendência que propõe uma resposta única e globalizada: trata-se de uma defesa única, de acesso igual para todos contra o mal-estar, na tentativa de apagar todas as diferenças, pela via de um modo de laço subjetivo com a droga em dado momento da história do falasser.

No tempo de Freud os ideais tinham sua primazia, o Nome-do-Pai preponderava. Mas se segue um segundo período, que Jacques-Alain Miller (2011) chama de “a inexistência do outro”, caracterizado como uma “toxicomania generalizada”, um modo supostamente único e globalizado de responder ao mal-estar na civilização.

Hoje vivemos uma tendência de queda na política repressiva e abre-se o debate sobre a legalização. A “guerra às drogas” foi perdida, e está criado um fantástico mercado paralelo, talvez incontrolável. A maconha é legalizada em diversos países, introduzida no mercado integral, passando a ser uma mercadoria a mais no sistema de produção e consumo, com cotação na bolsa e disputada por empresas. Estamos numa nova era no que diz respeito às drogas. Como corolário, há uma pluralização de diferentes substâncias usadas como drogas e o mundo é invadido por um enxame de drogas, tornando ineficazes as antigas classificações e a lista das drogas más, num movimento que tende a se generalizar.

A época repressiva pretendia localizar o gozo maligno do consumo em uma lista restritiva e fora da lei, com o Nome-do-Pai operando nesse sentido. Mas, como se verifica no ensino de Lacan – assinalado por Miller (2011) –, o gozo, que antes era localizado, hoje se encontra disseminado, há uma onipresença do gozo, que está por toda parte, o que foi chamado por Naparstek  (2015) de metástase do gozo.

Novos desafios

Essas transformações implicam em uma nova realidade para o analista, que precisa modificar sua abordagem da clínica. A psicanálise precisa inventar novas formas de lidar com o paciente, o que se torna possível pela orientação do ultimíssimo ensino de Lacan, especialmente na nova abordagem pelo “sintoma”, nesta época da metástase do gozo e do enxame das drogas. Vamos nos orientar pelo direito ao sinthoma, todo homem tem direito a seus sintomas (LACAN, 1975/1997). Aliás, foi graças à importância que Freud reconheceu na reivindicação da histérica que a psicanálise pôde se construir a partir desse direito.

A abordagem orientada para o sujeito não tem como ponto de partida a ideia de que a droga é nociva, mas da ideia de que ela tem uma função determinada dentro de uma conjuntura subjetiva e que convém ter muita prudência para se avaliar antes de intervir. Veremos que no caso das psicoses a que ponto é importante não propor uma abstinência logo de início, já que para certos sujeitos, uma suspensão abrupta do consumo pode resultar no desencadeamento da psicose. (NAPARSTEK, 2018, p. 23)

Miller (2011, p. 36), por sua vez, acentua o direito à singularidade afirmando que: “A psicanálise representa justamente a reivindicação, a rebelião do não como todo mundo e promove o direito a Um sozinho, à diferença do discurso do mestre que faz valer o direito para todos”.

A vida está boa

Na clínica das toxicomanias, nos deparamos diariamente com a dificuldade de fazer falar o sujeito toxicômano, aquele que renunciou ao gozo fálico preferindo a droga como meio de gozo, dispensando o Outro e preferindo o gozo do Um sozinho. Porém, no caso clínico trazido à discussão, essa questão se coloca de outra maneira, uma vez que atualmente o sujeito não está em uso da droga. Ela aparece em sua história pregressa, quando exerceu um papel de grandes repercussões em sua vida. O que sabemos desse uso está no campo de seus efeitos, em seus relatos de fatos já distantes no tempo. Tentaremos localizar algumas questões à luz desse caso.

Trata-se de um homem de meia-idade que nasceu e viveu toda a sua vida até o presente em um contexto que bem se aplica ao que foi descrito no texto de Naparstek (2018). Um mundo invadido pelas drogas, no qual elas permeiam não apenas as relações interpessoais, mas também as relações sociais e formas de exercício de poder. Desde a infância, esteve sempre em algum grau de proximidade com as drogas: seus irmãos, amigos e vizinhos “ganhavam a vida” como aviãozinho – seu primeiro nome nessa vida – e desde cedo ele também já conseguia um ganho razoável vendendo e usando drogas. Aliás, a droga lhe permitiu alcançar um lugar de poder nesse ambiente, mesmo que fosse, segundo as suas palavras, com “muitos pecados”.

Cumpriu uma longa pena de prisão, período em que foi apresentado a uma nova religião, o que lhe custou a ruptura com a parceira, mas lhe abriu caminho para outro casamento e possibilidades de se afirmar socialmente, quando em liberdade. Pela via da religião, conseguiu realizar enlaçamentos e se defender dos excessos das substâncias psicoativas, embora continue vivendo no mesmo ambiente submetido ao regime da guerra às drogas.

Do geral ao particular, do genérico ao singular: há drogas ou uma droga? Mas que droga? Indiferente de sabermos qual foi a substância em questão, como neste caso, o que nos interessa aqui é o singular desse falasser, ou seja, como ela se inseriu em sua vida e a particularidade dos seus efeitos.

Ao se generalizar o diagnóstico de toxicomania, não importa qual seja a direção que é dada pelo discurso da ciência e referendada pela OMS, o que se visa é o objeto, em detrimento do sujeito. A tipificação de um campo nosológico apenas pelo objeto, deixando de fora o sujeito, é uma forma de patologizar a cultura. Esse diagnóstico prêt-à-porter já tem as terapêuticas e remédios “indicados”, o que se agrava com a penalização dessa condição. É mais difícil e custoso para a civilização o trabalho de descriminalizar e despatologizar. É aqui que a psicanálise tem a contribuir, no sentido de trazer de volta para o falasser a singularidade de sua história a partir de seus ditos e de seus atos, de sua fala. Ao recolher de cada um os significantes traumáticos que o mortificam, passamos a promover a vida, de tal modo que esses significantes possam ter um papel vivificante. Trabalho a ser feito sob transferência.

Em seu retorno a Lacan, Miller (2011, p. 36) reafirma o direito à singularidade: “A psicanálise representa justamente a reivindicação, a rebelião do não como todo mundo; a psicanálise promete o direito ao Um sozinho, à diferença do discurso do mestre, que está do lado do direito para todos.

Ao dizer que do lado da invenção devemos fazer um “investimento no sintoma”, isso significa que “todo homem tem direito ao sintoma” (MILLER, 2011, p. 36) com o qual possa fazer laço. É preciso fazer o inventário daquilo que vem do falasser, de seus restos sintomáticos a partir dele mesmo, o que estaria no sentido de reafirmar sua singularidade orientando-nos assim pela via da despatologização, vivificando-o.


Referências
FREUD, S. O mal-estar na cultura. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Cultura, sociedade e religião – O mal-estar na cultura e outros escritos. Belo Horizonte. Autêntica, 2020, p. 305-410. (Trabalho original publicado em 1930).
LACAN, J. Joyce, o Sintoma II. Uno por uno, n. 45, 1997. (Trabalho original proferido em 1975).
MILLER, J.-A. Todo el mundo es loco. In: Sutilezas analíticas. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2011.
MILLER, J.-A. El ultimíssimo Lacan. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller (2006-2007) Buenos Aires: Paidós, 2014.
NAPARSTEK, F. A metástase do gozo. Pharmakon, n. 1, 2015. Disponível em: http://pharmakondigital.com/a-metastase-do-gozo1/. Acesso em: 26 nov. 2023.
NAPARSTEK, F. L’essaim actuel des drogues er les métastases de la juissance. Les Cahiers de l’ASREEP-NLS – Conversation du TyA: Les adictions sans substances, n. 2, p. 13-26, 2018.

[1] Texto elaborado a partir do comentário do caso apresentado por Walcymara Medeiros no Núcleo de Investigação e Pesquisa nas Toxicomanias e Alcoolismo no dia 03/10/2023.