DO NÓ COMO SUPORTE DO SUJEITO[1]
Frederico Feu de Carvalho
Psicanalista. Membro da EBP-MG/AMP
fredericofeu@uol.com.br
Resumo: A partir do terceiro capítulo do Seminário 23, de J. Lacan, o texto se propõe a esclarecer a utilização do nó borromeano por Lacan e algumas de suas aplicações à clínica das psicoses. Nesse contexto, confere-se privilégio à noção de Sinthoma como suporte do sujeito.
Palavras-chave: Nó borromeano; Sinthoma; sujeito.
From the node as support of the subject
Abstract: Through the third chapter of Lacan’s 23rd seminar, this essay aims to clarify Lacan’s use of the Borromean knot and some of its applications in the clinic of psychosis. In this context, the notion on Sinthome as the subject’s support is privileged.Through the third chapter of Lacan’s 23rd seminar, this essay aims to clarify Lacan’s use of the Borromean knot and some of its applications in the clinic of psychosis. In this context, the notion on Sinthome as the subject’s support is privileged.
Keywords: Borromean knot; Sinthome; Subject,
Imagem: Nelson de Almeida
O título desta intervenção, “Do nó como suporte do sujeito”, refere-se ao terceiro capítulo do Seminário 23, de Lacan, proferido no dia 16 de dezembro de 1975. Proponho retomar aqui essa lição acrescentando algumas reflexões sobre o tema do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais para o primeiro semestre de 2022, “O acontecimento de corpo político”, de forma a extrair consequências para nossa prática com as psicoses.
A clínica borromeana, se podemos chamar assim a clínica pensada a partir do paradigma dos nós, se conforma à psicose joyceana, assim como a clínica estrutural se conforma à psicose schereberiana. Mais do que abordar as formas ditas não desencadeadas da psicose, a clínica borromeana nos permite pensar formas de encadeamento não referidas ao discurso ou à norma social. Nesse sentido, podemos dizer que a psicose joyceana se refere à psicose funcional, ou seja, à psicose do ponto de vista de uma solução, uma invenção, uma armadura singular que suporta a existência de um sujeito. Chamamos de sinthoma essa armadura singular, a ser lida como cifra de gozo. Acredito que podemos formular assim a questão que nos ocupa este semestre: sem dúvida alguma, a política é capaz de produzir acontecimento de corpo. Isso ocorre toda vez que o sinthoma de cada um, na medida em que ele é suportado pelas marcas que uma cultura inscreve no corpo do falasser, é afetado pelo acontecimento político.
– I –
Um nó borromeano é um tipo de amarração de três anéis, traçado de forma com que cada anel mantenha sua independência com relação aos demais. Essa é a condição borromena. O nó borromeano, diz Lacan, é “o forçamento de uma nova escrita (…) e é também o forçamento de um novo tipo de ideia (…) que não floresce espontaneamente apenas devido ao que faz sentido, isto é, ao imaginário” (LACAN, 1975/76, p. 127). Há diferentes formas de se conceber a amarração borromeana, assim como diversas formas de reparar uma amarração que apresenta um erro, como em Joyce. Uma política do sinthoma seria aquela que se atém a essa diversidade e condições singulares. Isso implica, como diz Lacan logo no início dessa lição, “que tivéssemos na análise o sentimento de um risco absoluto” (LACAN, 1975/76, p. 44). Esse risco parece condizente com a clínica borromeana, assim como o cálculo interpretativo parece se adequar melhor à clínica estrutural. Trata-se do risco inerente ao manejo dos nós, na medida em que o ato analítico é capaz de amarrar, afrouxar, apertar ou desfazer uma determinada amarração sinthomática que suporta a vida de um sujeito.
Lacan deixa no ar essa advertência para se ocupar, em seguida, de uma exigência derivada do que poderíamos chamar de realismo nodal. Qual é o mínimo de elos possíveis para que ocorra a propriedade borromeana? Como vimos, a propriedade borromeana pode se dar entre três anéis, se eles estabelecem entre si um traçado específico e se eles se amarram uns aos outros, estabelecendo uma continuidade entre eles de forma que o corte de um libera os outros dois.
Mas como manter juntos três anéis que não se amarram entre si, que não se amarram borromeanamente, por serem descontínuos devido à heterogeneidade entre eles, como é o caso do Real, do Simbólico e do Imaginário? Aqui é preciso supor que Real, Simbólico e Imaginário não se enodam espontaneamente, que o nó borromeano não é uma formação natural ou uma criação ex-nihilo e que é necessário acrescentar um quarto anel para que a amarração borromeana aconteça. É o que distingue o sinthoma como invenção de um sujeito.
Vejamos o que diz Lacan no referido capítulo do Seminário 23:
“Para que alguma coisa, que é preciso dizer que seja da ordem do sujeito — uma vez que o sujeito é apenas suposto —, encontre-se, em suma, sustentada no nó de três, será que basta que o nó de três se enode, ele mesmo, borromeanamente a três? Não nos parece que o mínimo em uma cadeia borromeana é sempre constituído por um nó de quatro?” (LACAN, 1975/76, p. 49).
(…) “É sempre em três suportes, que nesse caso chamaremos de subjetivos, isto é, pessoais, que um quarto vai se apoiar. Se vocês se lembrarem do modo com que introduzi esse quarto elemento em relação aos três elementos, cada um deles supostamente constituindo alguma coisa de pessoal, o quarto será o que enuncio este ano como o sinthoma” (LACAN, 1975/76, p. 50).
O quarto anel, que nomeamos sinthoma, escrito com “th”, tem a propriedade de manter junto o que, por definição, está separado (RSI). Nessa perspectiva, quando se considera que Real, Simbólico e Imaginário não estão amarrados borromeanamente, mas soltos, não tendo relação um com o outro, é o sinthoma que faz a amarração borromeana e é nesse sentido que ele é suporte do sujeito.
– II –
O que significa dizer que o nó suporta o sujeito? Significa que o sujeito não existe sem relação com seu sintoma. Ou seja: ele não existe a não ser pelo sintoma que o suporta, o que faz do sintoma a unidade clínica fundamental e irredutível de todo falasser. Mas o sujeito desconhece o seu sintoma, que para ele pode ser um estorvo, um desarranjo, um imperativo de gozo que contraria seus ideais ou uma forma clandestina de existência. No melhor dos casos, o sujeito é uma resposta ao real do sintoma. É essa resposta do sujeito ao real do sintoma que Lacan vai escrever de forma distinta, recorrendo a uma grafia antiga, como “Sinthoma”. Essa resposta se limita a um saber-fazer com o seu sintoma, ou sintomas, com isso que não se pode recusar, na medida em que o sintoma é o que suporta um sujeito.
Lacan cunhou, em seu último ensino, o termo falasser para expressar a relação entre o inconsciente e o gozo cifrado do sintoma que se estabelece sobretudo nas neuroses. A abordagem estrutural das formações do inconsciente, que são em geral fugazes e ligadas à expressividade do desejo, é tributária da lógica do significante e comporta mal a lógica do sintoma, ou seja, aquilo que perdura, que insiste e resiste à interpretação e que parece não querer dizer nada a ninguém, sendo, antes, tributário do gozo do corpo. Nesse sentido, em uma análise, é o sintoma que nos conduz das formações do inconsciente ao real. Dito de outra forma: se o inconsciente supõe o Outro da linguagem, sendo “estruturado como uma linguagem” e, portanto, interpretável — e mesmo infinitamente interpretável —, o resíduo do sintoma, o seu núcleo duro, ex-siste ao inconsciente e é nesse sentido que ele tem a ver com o real.
A identificação ao sinthoma, como destino de uma análise, seria então uma identificação a esse resíduo do falasser e comporta um paradoxo, pois, se por um lado, o sujeito é suportado pelo sintoma, se ele é imanente e não transcendente em relação ao sintoma, por outro lado, o sintoma é sempre “estrangeiro” ao próprio sujeito. A identificação ao sinthoma não é uma condescendência ao sintoma, mas uma resposta possível ao seu núcleo real, àquilo que o ultrapassa e determina o seu modo de gozo.
Essa identificação comporta um forçamento, o advento de uma nova escrita, como a “metáfora delirante discreta” do paciente B., “Déf(ier D)ieu”, caso relatado na Conversação de Arcachon por de Jean-Pierre Deffieux (1998, p. 18) e debatido por nós no Núcleo de Psicose. Essa escrita é forçada porque ela é suportada pela letra do sintoma que podemos seguir, no relato do caso, desde a queixa inicial, “falta-me energia”, até a “centelha de vida” do laço com o analista. Mas a letra do sintoma, que fala com o corpo, permanece como tal, fora do sentido. Ela excede toda elucubração do saber. Um sintoma, isso se lê, e é só a partir dessa leitura — a ser distinguida da interpretação de uma formação do inconsciente — que temos uma ideia do que poderá ter sido esse acontecimento de corpo primordial que cifrou o sinthoma. É como um procedimento de leitura que Deffieux isola analiticamente o que faz suporte para B., tomando os elementos literais da cena traumática ocorrida aos 8 anos — o mês de março, o bordão, a madeira, a nudez — para verificar aquilo que o mantêm amarrado — o artesanato, a preocupação com o bem e o belo, o laço paterno, o exibicionismo do corpo —, mas também os pontos de ruptura que levam a novas amarrações.
Vale comparar com o caso Emma, que Freud explora no Projeto, igualmente a partir de uma cena aos 8 anos, em relação à solução encontrada (FREUD, 1895/1969, p. 463-468). Em Emma, a mediação do inconsciente resulta na construção de uma fantasia, anteparo frente ao real, que se torna possível pela extração do objeto olhar. De fato, o caminho da formação do sintoma na neurose supõe que a fantasia seja suportada pela letra do sintoma para que se possa constituir o semblante do objeto causa do desejo. Nesse fragmento freudiano, vale lembrar, a cena traumática se inscreve no inconsciente a partir de alguns significantes, como “riso”, “roupa” e “loja”, em torno dos quais a fantasia se constrói. A fantasia é uma fachada para a implicação do sujeito no sintoma, diz Freud, e o sintoma é o que resta após a travessia da fantasia, como “gozo puro de uma escrita” (MILLER apud LAURENT, 2016, p. 48). É o que leva Freud a dizer que a cena traumática ocorrida aos oito anos de idade, que podemos equivaler, nesse caso, a um acontecimento de corpo, modula a realidade sexual de Emma, levando-a a reencontrar a mesma cena aos doze anos de idade, como uma contingência da qual ela extrai o seu próprio gozo graças à reversibilidade da pulsão, que faz com ela se sinta desejada e olhada ao olhar e desejar.
Em B., de forma distinta, o exibicionismo do corpo nu, que Deffieux compara à “função da fantasia na pantomima do sujeito neurótico” (1998, p. 18), mostra que o sujeito mesmo está no lugar do objeto olhado, sem dele se separar. Essa pregnância maior do sintoma, na falta da mediação do desejo na fantasia, parece exigir então formas suplementares de amarração, como “a inscrição sobre o corpo de um fenômeno psicossomático, a psoríase, e uma metáfora delirante discreta” (DEFFIEUX, 1998, p. 18).
– III –
A concepção do nó borromeano de quatro anéis, à qual Lacan se aferra no referido capítulo do Seminário, Livro 23: O sinthoma, se refere sobretudo às neuroses. Nela encontramos uma vinculação mais estreita entre o sintoma e o inconsciente do que encontramos, em geral, na psicose. O inconsciente trabalha a partir da letra do sintoma; ele é uma elucubração de saber sobre o acontecimento de corpo político, no sentido que demos a essa expressão, ou seja, a radicalidade da incidência de um gozo que afeta o corpo do falasser, a fim de que esse acontecimento, que tem lugar na pólis — não há acontecimento de corpo autóctone, que não seja derivado da irrupção de um gozo que se apresenta como outro para um sujeito —, seja minimamente subjetivado como sintoma. Dessa forma, o real, ou melhor, o pedaço de real que cabe a um falasser, pode ser conjugado com o imaginário e o simbólico.
Não é o que acontece, por exemplo, na paranoia.
Na medida em que um sujeito enoda a três o imaginário, o simbólico e o real, ele é suportado apenas pela continuidade deles. O imaginário, o simbólico e o real são uma única e mesma consistência, e é nisso que consiste a psicose paranoica (LACAN, 1975/76, p. 52).
Lacan diz que a amarração que caracteriza a paranoia é o que define também a personalidade. “Paranoia e personalidade não têm, como tais, relação, pela simples razão de que são a mesma coisa” (LACAN, 1975/76, p. 52). Como podemos entender essa igualdade? Ela sugere que personalidade e paranoia se equivalem porque, em ambas, os três registros não se distinguem, como seria o caso da consistência, atribuída ao imaginário, do furo proveniente do simbólico e da ex-sistência própria ao real, como veremos adiante. O que nos leva a concluir que a personalidade mantém sua própria coesão a partir do artifício que podemos definir como uma exclusão do sujeito que seria suportado pelo sintoma. De fato, a estrutura paranoica se mostra, para todos os efeitos, impenetrável, como um bloco monolítico que tudo interpreta de forma rígida e especular, como reflexo da própria personalidade, sem nada querer saber do sintoma que a concerne.
Poderíamos conceber ainda, a partir de outras indicações de Lacan para além do Seminário 23 — embora jamais desenvolvidas por ele e, sim, por autores do Campo Freudiano, como Nieves Soria e Fabian Schejtman[2] —, outras formas de enodamento próprias das psicoses, como a parafrenia, a mania e a melancolia.
No caso da parafrenia, essa indicação de Lacan é extraída de uma apresentação de paciente ocorrida em 1975, portanto, contemporânea ao Seminário 23. Trata-se da paciente conhecida como Sra. B., que Lacan identifica a uma parafrenia imaginativa pelo fato de que ela se reduz a uma “pura vestimenta”, ou seja, a um puro semblante, sem a menor ideia do corpo que leva sob essa vestimenta, daquilo que poderia fornecer um lastro a esse ser de puro semblante. Certamente, essa referência ao corpo por baixo do vestido deve ser tomada em sua ex-sistência real, e não em sua dimensão de consistência imaginária, que seria, justamente, aquela de um corpo recoberto por um vestido. Essa configuração parafrênica poderia, assim, ser apresentada como uma interpenetração do simbólico e do imaginário que deixa solto o real.
Em relação à mania e à melancolia, as indicações de Lacan são aquelas que encontramos em Televisão (LACAN, 2003a), texto de 1974. Nessas estruturas clínicas, é o simbólico que permanece desligado, enquanto real e imaginário se interpenetram. Nesse texto, no capítulo em que Lacan analisa os afetos a partir da estrutura da linguagem, o desligamento do simbólico foi por ele referido ao rechaço do inconsciente. Tal rechaço equivale, no plano ético, a uma covardia moral. A diferença é que, na melancolia, o real predomina e submete o imaginário, como “pura cultura da pulsão de morte”, da qual falava Freud (1923/1969, p. 69), esmagando assim a imagem narcísica em que o Eu se sustenta, enquanto, na mania, é o imaginário que se sobrepõe ao real na forma da excitação maníaca, produzida a partir de um “retorno no real daquilo que foi rechaçado da linguagem” (LACAN, 2003a, p. 524).
A psicose de Joyce, por sua vez, pressupõe um lapso da amarração RSI, como indicado no desenho abaixo, à esquerda, do qual resulta a interpenetração entre o Real e o Simbólico que deixa solto o Imaginário. Essa seria a forma predominante dos enodamentos encontrados na esquizofrenia. No diagrama à direita, esse lapso se encontra corrigido por um quarto elo, que restabelece a amarração entre eles, configurando o sinthoma.
Mas essa correção só realiza em parte a propriedade borromeana. De fato, podemos dizer que, dessa forma, o Imaginário passa a se amarrar ao Simbólico e ao Real. Lacan identificou esse quarto elo ao Ego de Joyce, cuja consistência é dada por sua obra. Contudo, a independência entre RSI, a outra condição essencial à propriedade borromeana, não é verificada. A interpenetração entre o Simbólico e o Real persiste na forma peculiar da escrita de Joyce, que Lacan comparou a uma dissolução da linguagem, uma escrita que não diz nada a ninguém, que não fala ao inconsciente de ninguém, marcada pelo enigma e, por isso mesmo, capaz de fazer trabalharem os universitários. É por isso que Lacan vai dizer que Joyce era desabonado do inconsciente.
O paradigma Joyce abre um leque de pesquisas que torna possível pensar as psicoses sinthomatizadas, ou seja, psicoses nas quais uma amarração a partir de um quarto elo permite ao sujeito se sustentar pelo sinthoma, de forma que a psicose não se desencadeie. Resta saber em que essa forma de psicose se distingue da pré-psicose, aquela, por exemplo, que manteve Schreber estabilizado até os 50 anos de idade graças às suas identificações imaginárias.
Uma hipótese, apontada por Nieves Soria a partir de Fabian Schejtman (SORIA, 2008, p. 69), permite fazer a seguinte distinção: uma psicose sinthomatizada seria aquela em que a correção do lapso do nó, como apontou Lacan na conclusão do Seminário 23, ocorre no mesmo lugar onde ocorreu o lapso do nó. É o caso do Ego de Joyce, que se sustenta justamente da natureza de seu sinthoma. Essa solução se distinguiria de outras, supostamente mais frágeis, nas quais a correção não incide sobre o ponto do lapso ou a solução encontrada se apoiaria em identificações imaginárias que se dissolveriam frente a um apelo simbólico ao Nome-do-Pai, como ocorreu com Schreber.
– IV-
Vimos que a amarração borromeana pressupõe a independência, mas também a equivalência entre os registros Simbólico, Imaginário e Real, diferentemente da clínica estruturalista, que postulava a primazia do simbólico sobre o imaginário como condição para que o real fosse enquadrado. Essa eficácia do simbólico será relativizada pela clínica borromeana, assim como o valor da interpretação analítica, em direção a uma pragmática que busca discernir como o sujeito se arranja, como ele se vira para se sustentar com o seu próprio sintoma, ou seja, como ele se vira com o que, para ele, constitui essas três “subjetividades” denominadas Real, Simbólico e Imaginário, que, mesmo sendo equivalentes, não deixam de ser heterogêneas. Lacan caracteriza essa heterogeneidade da seguinte maneira:
“Não é por acaso, mas como resultado de uma concentração que seja no imaginário que eu coloque o suporte do que é a consistência, assim como faço do furo o essencial do que diz respeito ao simbólico e o real sustentando especialmente o que chamo de a ex-sistência” (LACAN, 1975/76, p. 49).
A consistência atribuída ao Imaginário é o que resulta da “ideia de si mesmo como corpo”, ideia para a qual Lacan utiliza o termo “Ego”, o mesmo termo que ele utiliza para nomear o sinthoma de Joyce. Isso define uma relação de propriedade do sujeito com o seu corpo. De fato, o sujeito tem um corpo; ele não é um corpo. Mas isso é apenas uma crença. “O falasser adora seu corpo, porque crê que o tem”, diz Lacan. “Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante” (LACAN, 1975/76, p. 64). Portanto, a consistência imaginária, ou seja, “aquilo que mantém junto” o falasser e seu corpo, se refere a uma ideia, como a ideia de um saco, e é sustentada por uma crença. A propriedade borromeana atribuída ao sinthoma, no sentido do que mantém junto RSI, deve ser distinguida da consistência do Imaginário que mantém junto o falasser e seu corpo. Trata-se de uma consideração importante, especialmente se referida ao campo das psicoses, na medida em que a recomposição do imaginário pode vir a ser, em alguns casos, uma orientação clínica. Se tomamos o exemplo de Joyce, vimos que essa recomposição se faz por meio do sinthoma, ou seja, a escrita e a publicação de uma obra, o que implica tomar Joyce como um artífice de seu próprio sinthoma, na medida em que isso tem efeito de suplência do lapso que deixa solto o imaginário.
O furo do Simbólico, por sua vez, advém da característica fundamental do significante, a de ser aquilo que representa um sujeito para um outro significante. Se partimos dessa definição, é o sujeito mesmo que aparece como esse furo, no sentido da sua falta-a-ser. O simbólico, portanto, ao qual se deu primazia quando a clínica lacaniana se orientava por uma busca da verdade, é sem esperanças, se quisermos nos apoiar nele para nos sustentar como sujeitos. Os obsessivos que o digam. Vale relembrar, no entanto, que Lacan distingue o furo do simbólico, que o “especializa” enquanto um sistema de linguagem marcado pelas substituições metafóricas e deslizamentos metonímicos, do que Lacan chama de “o verdadeiro furo”, Ⱥ, que ele situa fora do simbólico, na confluência do real com o imaginário, como veremos adiante. Não há Outro do Outro. Isso reduz o simbólico ao sentido imaginário, mesmo quando interpretamos uma formação do inconsciente seguindo as trilhas das leis do significante que herdamos de Freud. Essa condição não nos impede de fazer ciência, isto é, de utilizar a via lógica para nos orientar na busca da verdade no campo da realidade, para além do que almejamos como a consistência do imaginário que, como sabemos, nos engana o tempo todo, por ser essa crença sustentada por uma miragem. É o furo do simbólico, portanto, o que nos permite figurar a verdade dos fatos para além de uma crença subjetiva.
A ex-sistência do Real, por sua vez, deriva primeiramente do fato de que o sentido está foracluído do Real (LACAN, 1975/76, p. 117). Na medida em que o sentido é o que enquadra para nós o campo da realidade, o real não diz respeito à realidade das coisas, como ocorre em relação à ciência, tampouco se confunde com o que poderíamos chamar de uma natureza humana, que não sabemos bem a que se refere, uma vez que ela é atravessada pela linguagem. Seria o real uma pura potência negativa? Lacan vai dizer que o fato de o Real não poder ser imaginado ou pensado não quer dizer que o Real seja um limite da experiência humana. Pelo contrário, o Real incide o tempo todo, no sentido de que ele é uma experiência cotidiana, a experiência de um acontecimento de corpo. O Real também não se atém ao Ⱥ, o furo do simbólico, que é o limite da imaginação humana. O que confere certa esperança em relação ao real é ele poder ser contido pelo nó borromeano para um sujeito. Se não fosse assim, não haveria como suportá-lo. O nó borromeano é o que permite ao falasser cernir um pedaço do real, para chamar de seu, podemos dizer. É nesse sentido que Lacan (2003b) aproxima o sinthoma do acontecimento de corpo. É por ser um acontecimento de corpo que o sinthoma tem a ver com um real, com um real que Lacan chama de “orientável”, mesmo que essa orientação exclua o sentido. A ex-sistência é uma forma de existência específica do nó. Vejamos o que diz Lacan sobre isso:
“Ao sistir fora do Imaginário e do Simbólico, o real colide, movendo-se especialmente em algo da ordem da limitação. A partir do momento em que ele está borromeanamente enodado aos outros dois, estes lhe resistem. Isso quer dizer que o real só tem existência ao encontrar pelo simbólico e pelo imaginário a retenção” (LACAN, 1975/76, p. 49).
– V –
Lacan retoma, na quarta parte do capítulo III do Seminário 23, que estamos examinando, o esquema do nó borromeano já trabalhado em seu Seminário 22, RSI. A planificação do nó permite estabelecer três campos de contato, cada um sendo o resultado da articulação de dois registros, com a concomitante exclusão do terceiro. O campo central, como sabemos, é preenchido pelo objeto a, que não aparece representado nesse esquema do Seminário 23. Lacan observa, em primeiro lugar, que a notação (Ⱥ) se refere ao axioma “não há Outro do Outro”, o que quer dizer que nada se opõe ao Simbólico. Por conseguinte, não há também J(Ⱥ), o gozo do Outro do Outro (LACAN, 1975/76, p. 54), a não ser no imaginário da paranoia, na medida em que essa estrutura clínica identifica o gozo com o lugar do Outro. É nesse espaço entre Imaginário e Real, que se escreve como Ⱥ, que Lacan vai localizar, como acabamos de observar, o que ele chama, no capítulo IX, de o verdadeiro furo, a ser distinguido da falta inerente à castração, que devemos situar em um outro campo, aquele do gozo fálico. Esse furo, ao qual não corresponde nenhuma ordem de existência, remete, por outro lado, àquilo que podemos chamar da inibição própria do Imaginário em relação ao Real. É a essa inibição que Lacan recorre, na elaboração desse seminário, para justificar as dificuldades e os erros cometidos por ele mesmo ao traçar imaginariamente os seus nós borromeanos, o que, para ele, é um índice do real do nó. Embora as diversas configurações dos nós tenham como suporte uma imagem, como essa que está agora diante de nossos olhos, a dificuldade de imaginação é patente quando se trata de seus entrelaçamentos, da mesma forma que as dificuldades de escrita dos nós. Nesse sentido, vemos que o nó não é o matema, essa escrita lacaniana clarificadora e reduzida à qual podemos associar uma espécie de mecânica que condensa uma série de relações entre o imaginário, o simbólico e o real.
O segundo termo evocado por Lacan nessa lição é o sentido, localizado por ele na confluência entre o imaginário e o simbólico. Esse campo mostra que o sentido atribuído ao simbólico está em continuidade com o imaginário, e não em oposição a ele. O máximo que podemos atingir pela via do sentido, como quando interpretamos, é alguma ordem de ficção, uma vez que o verdadeiro, em se tratando da análise e não da ciência, não pode ser dito com os instrumentos da linguagem. Disso, resulta o que Lacan chamou de juis-sens, o gozo do sentido, que é o gozo próprio da confluência do simbólico com o imaginário ao qual podemos relacionar o modo de satisfação do delírio, assim como o do trabalho do inconsciente. O que se opõe ao simbólico não é, portanto, o imaginário, como na clínica estrutural, mas Ⱥ. Por outro lado, o que se opõe ao sentido é o real.
Finalmente, temos o gozo dito do falo, que Lacan distingue aqui do gozo peniano:
“O gozo peniano advém a propósito do imaginário, isto é, do gozo do duplo, da imagem especular, do gozo do corpo. Ele constitui propriamente os diferentes objetos que ocupam as hiâncias das quais o corpo é o suporte imaginário. O gozo fálico, em contrapartida, situa-se na conjunção do simbólico com o real. Isso na medida em que, no sujeito que se sustenta no falasser, que é o que designo como sendo o inconsciente, há a capacidade de conjugar a fala e o que concerne a um certo gozo, aquele dito do falo, experimentado como parasitário, devido a essa própria fala, devido ao falasser” (…) Portanto, inscrevo aqui o gozo fálico contrabalançando o que concerne ao sentido. É o lugar do que é em consciência designado pelo falasser como poder” (LACAN, 1975/76, p 55.).
Lacan não desenvolve, ao menos nesse capítulo, a aproximação entre o gozo fálico e o poder, mas podemos supor que se trata de um destino possível a ser dado ao acontecimento de corpo político pelo sintoma. De qualquer maneira, é preciso sublinhar a distinção entre o gozo do sentido e o gozo próprio ligado à função de fonação que caracteriza o gozo fálico. O gozo fálico participa do real por ser um gozo “fora-do-corpo”, na medida em que está associado à fala, e é por isso que ele não se refere ao gozo peniano, o gozo próprio do corpo que concerne ao imaginário.
Resta saber em que consiste, propriamente falando, o gozo do sinthoma. Podemos deduzir que o gozo do sinthoma refere-se a um saber-fazer a partir do qual o sujeito pode ligar um pedaço do real ao semblante, uma vez que o semblante que permite enquadrar a realidade onde pisamos depende da amarração do real, isto é, de forma que um acontecimento de corpo, aquele que é próprio a um falasser singular, possa ser concernido.
É nesse sentido que se pode dizer que o gozo do sinthoma é um gozo possível que resulta de um tratamento do impossível. A clínica borromeana pode ser então concebida a partir de uma pragmática que concerne ao sintoma. Em suas várias facetas, se considerarmos as variedades e as exigências borromeanas das quais resulta essa possibilidade, poderíamos afirmar, de acordo com essa pragmática, que “é de suturas e emendas que se trata na análise” (LACAN, 1975/76, p. 71).
Proponho, para concluir, lembrar simplesmente em que consiste essa pragmática analítica Ela diz respeito às diferentes conexões do falasser que o sinthoma busca concernir como suporte do sujeito: o corpo, o laço social, o pensamento e o sexo.