Editorial Almanaque nº23

LETÍCIA SOARES

ÁREAS DE CONFLITO DE MINERAÇAO NO ESTADO DE MINAS GERAIS

Gostaríamos de destacar neste Almanaque o que ele transmite de uma dimensão política, no sentido daquilo que pode ser marcante e determinante para o indivíduo e/ou para a coletividade. A própria escolha do tema desta edição, “Acontecimento”, foi inspirada no impacto da experiência do rompimento da barragem na cidade de Brumadinho/MG em janeiro de 2019. Durante as leituras, somos convocados a refletir sobre os processos que ameaçam as coletividades humanas e a medir a parte que nos é devida. Nesse contexto, aproveitamos a escrita de Matet, que nos lembra que “Lacan nos mostrou que defender a extensão da psicanálise exige sair do consultório e se juntar ao real dos transbordamentos sociais para perceber algo que diz daquilo que é o gosto do momento, até mesmo, o desgosto”[i].

 

Em TRILHAMENTOS, o texto rigoroso e rico em referências de Guy Briole, “Os acontecimentos têm um rosto?”, nos oferece um bom percurso para compreender as noções de acontecimento, contingência, trauma, alteridade, acidente e rosto.  Com Levinas, a experiência da alteridade toma a forma do rosto. Não aquela dos traços de uma máscara, nem a do sentido, mas no fato de que o rosto está lá, surgido dele mesmo. Por isso, o rosto é o acontecimento por excelência.

 

Nessa mesma rubrica, o texto de Matet, “Diante da escalada dos perigos, a psicanálise?”, nos provoca a pensar sobre os sintomas contemporâneos e as manifestações do real no social que ruge e ameaça o mundo. Matet aponta como a ampliação do conhecimento da ciência, os processos de segregação, os discursos de medo ou de ódio e as dificuldades econômicas e sociais que avançam na atualidade convocam a psicanálise a encontrar recursos para intervir e permanecer no futuro.

 

Nosso convidado para a ENTREVISTA desta edição foi o coordenador de saúde mental do município de Brumadinho, Rodrigo Chaves, que logo de início nomeia o rompimento da barragem como “um crime em acontecimento”. Nessa expressão, nota-se uma análise significativa da situação: por um lado, foi um acidente que poderia ter sido evitado; por outro, desde que houve a ruptura, os efeitos e as consequências se tornaram imprevisíveis e inesperados para o ambiente e para as pessoas. Em seu complexo trabalho, Rodrigo extrai, do modo universalizante de abordar as pessoas afetadas pela tragédia coletiva, o importante testemunho do individual, ou seja, o que se escuta de cada um em suas vivências singulares.

 

Na rubrica INCURSÕES, ainda em consonância com o tema do nosso último Almanaque, “Ódio, cólera e indignação”, apresentamos os desdobramentos do que foi trabalhado nos núcleos de pesquisa do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais durante o primeiro semestre de 2019. Compõem essa rubrica os textos de Tereza Cristina Côrtes Facury, Andréa Eulálio, Bernardo Micherif Carneiro e Silvane Carozzi. Temos, assim, um conjunto expressivo de textos que contribuem e nos instigam rumo ao próximo Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana, o IX ENAPOL.

 

Na rubrica ENCONTROS, temos a oportunidade de conhecer duas experiências clínicas através da metodologia de Conversação, tal como a proposta por Jacques Alain-Miller. No texto de Nádia Laguárdia de Lima, Juliana Tassara Berni e Helena Greco Lisita, ficamos com as falas expressivas e marcantes dos adolescentes de escolas públicas de BH. No texto de Aparecida Rosângela Silveira, apresentado na I Jornada Clínica do IPSM-MG ocorrida em Montes Claros/MG, podemos acompanhar os efeitos da experiência de supervisão clínico-institucional em equipes da Rede de Atenção Psicossocial, em especial as conversações realizadas com a equipe do Consultório na Rua.

 

Para o texto DE UMA NOVA GERAÇÃO, Daniela Gontijo de Souza, aluna do IPSM-MG, apresenta seu tema de interesse sobre os efeitos na clínica da histeria diante das “mutações da ordem simbólica” na sociedade contemporânea.

 

Para finalizar esse convite à leitura, gostaríamos de chamar a atenção para as imagens escolhidas para nosso Almanaque 23, do fotógrafo Richardson Pontone, extraídas do documentário Lama: o crime Vale no Brasil[ii]. São fotos que mostram a ruptura, o inesperado e as marcas desse acontecimento traumático. Diante do real impossível de suportar, recorremos ao poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), ”Lira Itabirana”:

 

O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.

Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!

Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?

 

[i] Lacan, na École Normale Supérieure, ao dar seu Seminário na rua Ulm, nos degraus do Panthéon durante a greve da Sorbonne e criar o departamento de Vincennes.

[ii] Disponível em https://libreflix.org/i/lama-o-crime-vale-no-brasil.