EDITORIAL – ALMANAQUE Nº30

Patrícia Ribeiro

CAROLINA BOTURA. 2018

 

Com este número comemoramos, com muita alegria, a 30ª edição da Almanaque On-line, cujo formato digital se iniciou há pouco mais de 15 anos!

Desta vez, norteados pelo tema O encontro com um psicanalista hoje, seus artigos dão testemunho da importância da presença do discurso psicanalítico em nossos dias, face à presença hegemônica de um discurso que impele a um imperativo de gozo, consoante com a sociedade atual de consumo em seu pacto com a ciência.

Essa aliança promoveu profundas modificações nos laços sociais e em nosso modo de viver, conforme destaca  Margarida Assad, nossa colega e entrevistada desta edição. Como ela aponta, vivemos em uma época marcada, por um lado, pela prevalência de um empuxo ao mais de gozar e, por outro, pela preponderância de soluções universais às questões subjetivas, saberes prontos para usar de forma indiscriminada. Não por acaso, acrescenta Margarida, as instituições sociais, entre elas, a família, “são esmagadas pelas novas formas de configuração do gozo, sem conseguirem sustentar o tempo do vazio necessário para que cada um possa se arranjar com seu desejo”. Ela ainda nos esclarece sobre o que está em jogo na formação atual dos grupos, tomando como exemplos grupos estruturados a partir de significantes que traem a presença da pulsão de morte em seus fundamentos — algo que muito recentemente assistimos, perplexos, em nosso país. Todavia, conforme Margarida, outras formações de grupos de nossa época permitem, ainda que de modo peculiar, manter o laço social “impedindo que se radicalize entre eles um gozo forjado pela marca irredutível da linguagem”.

Abrindo a rubrica Trilhamentos, Laura Rubião nos convida para pensar como o analista pode se fazer presente em nossa época, distante das “concepções tradicionais que evocavam o analista como figura neutra ou desinteressada”. Ao contrário, ela salienta a importância de que ele se faça presente como “aquele que escolhe estar ao lado da urgência do falasser e da solução sinthomática de cada um frente ao real do gozo”. Gilles Chatenay aborda a presença do real na experiência analítica tomando como ponto de partida o seminário de Lacan sobre a transferência. Esteban Pikiewicz percorre os textos de Freud e de Lacan para elucidar o que estaria implicado no sintagma “presença do analista” e sua articulação ao desejo do analista em sua dimensão real.

Em Encontros, Margaret Couto discute a crença na existência de um corpo natural sustentada pelas terapias cognitivas comportamentais, corpo passível de ser quantificado, domesticado e adaptado aos ideais da cultura. Ao contrário disso, uma vinheta clínica por ela apresentada atesta os efeitos da presença do psicanalista na clínica com crianças, verificando, uma vez mais, que o corpo não se reduz aos dados biológicos. Clarisse Boechat nos oferece suas reflexões sobre sua experiência de trabalho como psicóloga do “Consultório na Rua”, no centro do Rio de Janeiro, orientada pela pergunta “quando a psicanálise alcança as ruas, o que fazem os analistas?” e buscando, por fim, localizar “o que houve de analítico naqueles encontros atípicos nas ruas, em configurações bem distintas do setting tradicionalmente clínico”. Florencia Shanahan interroga sobre os modos de presença em uma análise apontando o lugar fundamental que o atendimento virtual teve para ela. No entanto, questiona a possiblidade de um final de análise, caso assim permanecesse. Fechando essa rubrica, Guy de Villers nos brinda com o relato dos efeitos de seu primeiro encontro com Lacan, causa da interpelação de seu desejo de “tudo compreender”. A partir desse encontro, o autor discute o que a presença de Lacan introduziu na prática da psicanálise.

Os 15 anos da Almanaque On-line são também comemorados pela presença, a partir desta edição, de uma nova rubrica, que apresentará ao leitor os trabalhos apresentados nas Lições Introdutórias — atividade ligada à Seção de Ensino do IPSM-MG cujo objetivo é transmitir à nossa comunidade os textos seminais de Freud e Lacan. Nessa rubrica de estreia, vocês terão a oportunidade de conhecer artigos que tiveram como horizonte de pesquisa o tema Des-montar a defesa. Como nos explica Virgínia Carvalho, esse título ressoa a orientação lacaniana de que “des-montar a defesa é o ‘coração’, a matriz mesma da operação analítica”, e a inclusão do hífen no ‘des-montar’ visa ressaltar “a ideia de que há sempre uma nova montagem a ser feita, uma vez que não se elimina a defesa”. A autora revela que a questão que permeou sua leitura se condensa na frase “como alguém pode não se defender?”. Em sua rigorosa leitura dos textos freudianos e das contribuições de Lacan e Miller sobre o conceito de defesa, ela esclarece pontos fundamentais quanto à inexorável presença da defesa em todo falasser, frisando suas particularidades nos quadros clínicos das neuroses e psicoses. Cristina Drummond, por sua vez, aborda a importância do conceito de defesa primária como norteador da clínica freudo-lacaniana. Tal conceito é apresentado como orientador na direção do tratamento, seja em casos nos quais a formação do sintoma se estrutura pelo recalque e é passível de decifração, permitindo a desmontagem de sentido, seja nos fenômenos de corpo, como as toxicomanias e anorexias. Mônica Campos destaca que, para Freud, a própria definição de sintoma pressupõe a conexão entre gozo e defesa, pois, “no sintoma, trata-se de obter satisfação e de defender-se dela”. E, lembra a autora, desse vínculo entre gozo e defesa decorre a observação de Lacan quanto ao “paradoxo de que os doentes sofrem dos seus sintomas, mas não parecem desejar tanto assim desfazer-se deles”. A leitura de Cristiana Pittella do texto freudiano “Neurose e psicose” explora a ideia desse conflito defesa e gozo “que perpassa a obra de Freud”, isto é, “entre forças antagônicas, a defesa e as moções pulsionais”, e esclarece que é a partir da posição do eu nesse conflito que Freud vai delimitar a neurose e a psicose como modos de defesa. Já em seu texto, Luciana Silviano Brandão trata do debate desde cedo aberto por Freud, que culminou em seu artigo de 1937, “A análise finita e infinita”, indagando sobre as possibilidades de um final de análise. A questão de fundo, enfatiza a autora, seria a pergunta sobre a possibilidade de resolver de forma definitiva o conflito entre a pulsão e a defesa. Fechando essa nova rubrica, Lucia Mello se detém sobre o artigo inacabado de Freud “Uma cisão do Eu — Ichspaltung” orientando-se pelas leituras de Lacan e Miller e suas preciosas contribuições sobre esse tema para a atualidade do trabalho clínico.

Na sequência apresentamos, em Incursões, trabalhos dos núcleos da Seção Clínica do IPSM-MG. Sérgio de Campos e Fernanda Otoni discorrem sobre a particularidade da presença do analista em relação à psicose ordinária, casos que se manifestam na clínica sob formas de gozo que “exigem um tempo maior para que uma precisão diagnóstica se esclareça”, não restrita a respostas sobre sim ou não à presença do Nome-do-Pai. Campos acrescenta que, longe de se tratar de uma nova categoria diagnóstica, ela “expressa a ponta de um iceberg de uma psicose clássica que se encontra submersa e subjacente”. Já Otoni, comentando o texto de Campos, indaga se o sintagma “psicose ordinária” não seria um convite para explorarmos as consequências da afirmativa de Miller quanto à “igualdade clínica fundamental entre os falasseres” e, por conseguinte, fazermos um deslocamento da pergunta de “o que será que ele é” para “como é que ele funciona”. Philippe Lacadée traz importantes elementos para pensarmos as primeiras relações da criança com o Outro sobre o prisma dos “pais traumáticos”, expressão que encontramos em Lacan para indicar que “todo pai ou mãe é traumático” por portar um gozo cuja significação escapa à criança, e, seguindo em sua leitura do Seminário 19, evoca a aproximação lacaniana entre essa posição traumática dos pais e a posição do psicanalista. Ondina Machado traz uma importante reflexão sobre as implicações da criminalização do aborto sob a perspectiva da psicanálise, tomando como premissa que o desejo de ter um filho “não é solução para todas as mulheres”. O neologismo adixões, cunhado por Ernesto Sinatra, é trazido à discussão em seu texto. Inspirado pelo X freudiano da expressão fixierung, o autor pretende ressaltar a marca da fixação singular de satisfação com que cada UM responde ao trauma da não-relação e, assim, diferenciá-lo das generalizações dadas ao termo adições, para o qual toda e qualquer forma de consumo se aplica. Nathália Temponi e Cláudia Reis se valem de uma vinheta clínica para se perguntarem sobre a natureza da relação de um sujeito com a substância tóxica e sobre os efeitos de seu encontro com uma psicanalista. Sílvia Soares reflete sobre os efeitos da incidência massiva do mundo digital (jogos e celulares) na clínica com crianças e adolescentes interpelando sobre as possibilidades de estabelecimento de uma abertura ao saber inconsciente no caso de sujeitos que creem ter o objeto em suas mãos, e, em vista disso, sobre como convocá-los a desejar, a querer saber sobre um mais-além desse gozo opaco. Alessandra Rocha trata da questão do grito silencioso a partir do acontecimento de corpo político na perspectiva da clínica psicanalítica com crianças, tomando a questão do grito e do silêncio em Lacan para evidenciar a sua importância na psicanálise.

De uma nova geração traz os artigos de três alunos do Curso de Psicanálise e se inicia com a discussão trazida por Isadora Urbano sobre o papel da escrita como suporte psíquico para a poeta norte-americana Sylvia Plath, buscando, em trechos de seus diários, cartas, poemas e no romance A redoma de vidro, as dimensões que a escrita assumiu na vida dessa autora. Wallace Faustino Rodrigues, por sua vez, examina, à luz dos três tempos lógicos do Édipo propostos por Lacan, a paternidade na neurose obsessiva a partir de fragmentos da obra do escritor norueguês Karl Ove Knausgard. Fechando a rubrica, Marina del Papa nos transmite o relato de sua experiência clínica orientada pela psicanálise dentro de um hospital, salientando que sua prática lhe trouxe a possibilidade de não apenas revisitar conceitos importantes à escuta clínica, como fez ressoar a potência da presença do analista com seu corpo.

Esta edição do aniversário de 15 anos contou com as belas e instigantes imagens generosamente cedidas por Carolina Botura. Graduada pela Escola Guignard – UEMG em Pintura e Escultura, Carolina trabalha com cruzamento e prolongamento de linguagens, tendo a ação como disparadora de sua produção em desenho, pintura, escultura, instalação, performance, vídeo, música e cerâmica. Suas pesquisas estão relacionadas à transformação e ao movimento, ao caos e à origem, atravessados pelo viés do tempo para tratar de temas como animalidade, amor, morte, magia, perda, sexualidade, espiritualidade, energia, política e natureza. Paulista de Botucatu, vive e trabalha em Belo Horizonte e já participou de diversas mostras, individuais e coletivas, e residências artísticas no Brasil e no exterior. É também poeta e performer.

Antes de convidá-los para a leitura, gostaria de parabenizar os colegas que estiveram presentes durante todos esses anos na produção da Almanaque On-line, seus diretores de publicação, membros das equipes da revista e os autores que, desde 2007, contribuem para a sua importância como meio de divulgação do trabalho de pesquisa e ensino da psicanálise de orientação lacaniana realizado no Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais. E, mais uma vez, quero deixar o agradecimento aos colegas da equipe atual.

Obrigada pela parceria tão dedicada e entusiamada!

 

Carolina Botura:
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