Editorial – ALMANAQUE Nº32

Editorial

Patrícia Ribeiro

 

 

 

Queremos analistas que sejam analisantes, analisantes perpétuos a arrancar incessantemente farrapos de saber do sujeito suposto saber que não existe, farrapos tanto mais preciosos quanto mais raros e singulares.  Pois a via analítica não é a de um grande número, nem a da estatística, mas a do singular e do paradigma, do singular elevado a paradigma.
(Jacques-Alain Miller, em Discurso de encerramento da Jornada da École de la Cause freudienne, em 2008)

 Esta edição da Almanaque On-line traz um desdobramento do número anterior, quando o foco da pesquisa do IPSM-MG, em consonância com os temas do XIV Congresso da AMP e da 26ª Jornada da EBP-MG, foi o de explorar o aforismo lacaniano “todo mundo é louco, ou seja, delirante”. Tal loucura se define pela crença em um Outro que, ainda que não exista, protege o ser falante daquilo que é insuportável no real.

No presente número, tomamos como norte investigar o que seria uma clínica orientada não pelo delírio, mas pelo real, definido por Lacan como sem lei e sem sentido.  Um breve recorte do artigo que aqui publicamos na rubrica Trilhamentos, de Esthela Solano-Suárez, permite esclarecer o que a distingue de outras formas de tratamento pela palavra. Podemos dizer que a experiência analítica que inclui o real se orienta pelo que acontece “na disjunção entre o dito e o dizer. […] Esta disjunção convoca a distância entre o que é da ordem do meio-dizer da verdade e do real do gozo que ex-siste ao dito”. E Esthela Solano-Suarez prossegue: “o real em jogo na psicanálise não é o real da ciência.  […] Ele é suscetível de ser isolado como o fora-de-sentido do gozo do sintoma uma vez que este foi despido de seu aparelho de ficções fantasmáticas, a título de verdade mentirosa”. Em uma outra perspectiva sobre o real em jogo em uma análise, encontramos nessa mesma rubrica o texto da Aula Inaugural do IPSM-MG proferida por Sérgio de Mattos, que tomou como referência o tema do XI ENAPOL: “Começar a analisar-se”. Seu texto permite localizar a presença dessa orientação para o real ao afirmar, que desde o início, o analista deve estar atento “ao que levou o sujeito a procurar uma análise, cernir esse ponto de sofrimento, de embaraço, o que não anda bem”, destacando a importância de discriminar os “elementos que naquela circunstância específica evocaram traumas, repetições e algo insuportável que desencadeou o desejo de tratar”. Ram Mandil, em O ato de leitura em psicanálise, indaga sobre a possibilidade do ato analítico hoje, época “dos protocolos e das diretrizes terapêuticas, em que a ação ideal consiste em reduzir, ao mínimo, toda possibilidade de imprevisto”. Sua pesquisa o conduziu a identificar no caso Dora, texto freudiano seminal sobre a histeria, como a leitura feita por Freud acerca dos sintomas dessa paciente permitiu ao autor entrever a dupla dimensão do sintoma – “a que é apreendida pelo sentido e a que permanece opaca a toda significação”. Ram Mandil  evoca ainda passagens do ensino de Lacan sobre o ato de leitura no discurso psicanalítico amparadas na obra de Joyce, nas quais se pode desvelar a “presença do vazio da significação” no que concerne à polifonia dos sentidos dos sintomas. Do mesmo modo, em um diálogo presente em O retrato do artista quando jovem entre Stephen Dedalus e seus colegas, Mandil ressalta que dele se pode elucidar o que seria o ato de ler um sintoma sob a perspectiva do “encontro material entre um significante e o corpo, o próprio choque da linguagem sobre o corpo”.

Em Encontros, Hervé Castanet nos adverte sobre a onipresença em nossa época de uma episteme própria às neurociências, a qual nomeou tese neuro. Segundo esclarece, ela promove uma redução absoluta do mental ao neuronal visando apagar a possibilidade de existência do saber inconsciente, postulado princeps freudiano. Castanet constata ainda que essa tese se desdobra em uma outra, que a confirma – a tese dico –, isolada por J.A-Miller, que afirma: “Eu sou o que eu digo”. Este novo – e falso – cogito centrado unicamente no eu e abolindo a enunciação não é incompatível, sublinha Castanet, com “Eu sou isso que os traços escrevem em meu cérebro.” Em total oposição, o cogito lacaniano, que o autor aqui desenvolve – “Penso, logo go(z)sou” –, reafirma a existência de um real irrevogável, ou seja, “um saber impossível de ser reintegrado pelo sujeito”, que em nada se assemelha ao real biológico. Ainda nessa rubrica, contamos com um inestimável caso clínico apresentado por Jacqueline Dhéret, que coloca questões que atravessam a nossa época. Dhéret discorre sobre a análise “silenciosa” de uma menina de sete anos que não sabe como fazer com seu pai transexual. Ao longo das sessões, ela constrói soluções que a ajudam a suportar um real até então insuportável, que fez vacilar os semblantes nos quais se apoiava.

Oscar Ventura, nosso entrevistado, a quem agradecemos pela generosidade em contribuir com esta edição, sublinha a importância dos sonhos na prática clínica no que concerne à “possibilidade que oferecem para produzir una retificação na economia de gozo”. Ele evoca o célebre sonho da Injeção de Irma para demarcar sua ligação a um real que se encarna para Freud no mistério do corpo, “em um furo que aspira toda a pretensão de sentido que se lhe queira outorgar”. Ventura nos ajuda ainda a esclarecer a diferença entre o ato de escutar e ler em psicanálise, o primeiro estando mais próximo do campo do sentido, enquanto a leitura apontaria para o encontro com a materialidade da letra, isto é, para uma cifra de gozo não capturada na rede das representações.

Na rubrica Prelúdios, publicamos alguns dos textos apresentados no último semestre das Lições Introdutórias à Psicanálise. A referência desta vez foram os textos basilares de Freud sobre as psicoses. Assim, em Neurose e psicose, Luciana Silviano Brandão discorre sobre a distinção traçada por Freud entre essas estruturas para, em seguida, abordar o mecanismo próprio a cada uma delas frente ao conflito entre as instâncias psíquicas por ele postuladas: o Eu, o Isso e o Supereu. A autora sublinha a importante questão que Freud aí se coloca: qual seria o dispositivo análogo ao do recalcamento, pelo qual o Eu se desliga do mundo exterior, na psicose? Diante dessa pergunta, ela elucida o conceito freudiano de Verwerfgung, bem como o de forclusão, nova designação que lhe é dada por Lacan vinculada à metáfora paterna. Elisa Alvarenga nos apresenta a sua leitura do Manuscrito H, texto freudiano do final do século XIX, percorrendo esse momento da elaboração freudiana da concepção do aparelho psíquico. Nesse texto, como a autora sublinha, Freud resgata a importância da sexualidade nas neuroses e nas psicoses, assim como lança algumas das bases da primeira tópica freudiana (ics-pcs-cs) e da teoria da libido. A perda da realidade na neurose e na psicose é o texto abordado por Kátia Mariás, no qual Freud expõe suas elaborações sobre o modo de constituição do campo da realidade e o modo como se dá a sua perda, relacionando-as  ainda às contribuições de Lacan sobre a perda do objeto a nas neuroses e a ausência dessa subtração nas psicoses. Finalmente, Lucia Mello comenta o texto Comunicação de um caso de paranoia que contradiz a teoria psicanalítica, ressaltando as modificações conceituais decorrentes dessa leitura freudiana que, de acordo com a autora, abrange a clínica do sujeito, a fantasia fundamental, a pulsão e a fixação. A autora destaca como, nesse relato clínico, Freud extrai consequências da contradição que pode advir entre a teoria, decorrente de sua  pesquisa, e o  ato de dar a palavra ao paciente.

Iniciamos a rubrica  Incursões com o texto de Marcelo Quintão, no qual ele apresenta algumas das contribuições de Fabián Naparstek referentes à clínica das toxicomanias, partindo de um percurso histórico sobre a presença das drogas na civilização para, finalmente, destacar, valendo-se de uma vinheta clínica, que a relação de um  falasser com o objeto droga é sempre singular, assim como pode ser diferente também em determinados momentos de sua própria história. Mônica Campos, em Será que o racismo mata? Implicações de uma clínica atravessada pelo racismo, parte de um caso clínico apresentado no Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Segregação e de imediato responde positivamente à pergunta formulada em seu título. Sua leitura do caso adverte também para as práticas racistas que promovem uma mortificação subjetiva para concluir destacando a importância de uma posição radical do psicanalista em apostar nas soluções singulares de cada sujeito que apontem para a vida, fazendo assim um contraponto aos discursos segregativos. Lilany Pacheco, por sua vez, apresenta uma instigante leitura da pesquisa realizada no semestre pelo Ateliê, focalizando especialmente a contribuição de Mônica Campos, sob a baliza da interrogação “quais as contribuições que a psicanálise pode oferecer ou ensinar sobre a leitura de  casos que implicam em discursos racistas e suas consequências para o preto”. A autora propõe também pensar como o psicanalista pode avançar nas suas reflexões contra o racismo e as demais formas de segregação. Araceli Teixidó traz à discussão o tema da eutanásia a partir das mudanças efetivadas na Espanha, país onde vive, a partir da lei de regulamentação dessa prática. Araceli focaliza especialmente a relevância e a delicadeza envolvidas no ato do profissional de saúde ao responder a essa demanda, salientando que ele  não pode se ater a um mero cumprimento de um protocolo. Em O historiador do detalhe: articulações entre sonho e acontecimento de corpo, Ana Sanders faz uma interessante leitura do caso de uma criança atendida por Carolina Koretsky e publicado no livro La Conversación Clínica. Matéo, é um menino que não conta com  o recurso  do sintoma e da fantasia como defesa ao real ligado à sua existência e a um desejo de morte que o assolava. É a partir de um sonho relatado em análise, no qual irrompe um acontecimento de corpo, que “esse sujeito pode deslocar o desejo de morte materno” permitindo-lhe “uma possível solução para a cessão do gozo mortífero” pela via do delírio. Por sua vez, Paula Pimenta tece um valioso comentário sobre o texto de Ana Sanders, realçando a função do sonho na psicose, nos brindando também com sua leitura esclarecedora sobre o sintagma lacaniano, acontecimento de corpo.

Por fim, na rubrica De uma nova geração, Silvia Coutinho Lima interroga, a partir do atual cenário marcado pelos excessos em relação aos corpos – intervenções estéticas, medicamentosas, cirurgias plásticas etc. –, sobre o que impele os sujeitos para essas escolhas, e  embora saiba que a amarração de cada corpo é tecida de forma radicalmente singular para cada falasser, a autora pergunta se esse investimento exacerbado no corpo poderia apontar para um modo de defesa. Ana Paula Menezes de Souza, em seu texto,  discute a interpretação para, a partir desse conceito fundamental da psicanálise, explorar as suas ressonâncias no ensino de Lacan entre o inconsciente estruturado como uma linguagem e o inconsciente real, “quando o espaço de um lapso já não tem nenhum impacto de sentido”. Dessa forma, a autora busca situar o lugar do analista em um tempo em que “a lógica hegemônica de uma psicoeducação prescritiva” se faz cada vez mais atuante.

Chegando ao final deste número – que também marca a conclusão do  trabalho desta Diretoria –, nós, da equipe editorial da revista Almanaque On-line, desejamos a todos uma boa leitura e que os textos aqui reunidos possam conduzir às múltiplas ressonâncias advindas de uma clínica psicanalítica que inclui o real, que considera as inscrições contingentes nos corpos, habitados que são por uma estranha alteridade que excede as elucubrações de sentido.

Uma última palavra, ainda: gostaríamos de agradecer imensamente ao artista Sérgio Machado pela generosidade com que nos cedeu as belas imagens que ilustram este número.

E, claro, queremos fazer também um especial agradecimento a todas as colegas da diretoria do IPSM-MG pelo apoio sempre presente, aos colegas da equipe editorial responsáveis por colocar “no ar” mais esta edição da Almanaque On-line, assim como a todos que deram a sua preciosa contribuição como participantes da produção da revista desde 2020. Nosso muito obrigado!

 

Sérgio Machado, nascido em Belo Horizonte, estudou na Escola Guignard entre 1981 e 1985, onde conviveu com grandes desenhistas e escultores. Sua formação foi com o desenho, mas ele sempre se interessou pelo objeto, sua construção, seu volume. Assim, o artista desenvolveu uma forma de interação entre desenho e objeto, escolhendo a madeira reaproveitada como matéria-prima principal. Suas cadeiras, pequenas esculturas em madeira e os tubarões de tamanhos variados são marcas desse trabalho. Sérgio já realizou várias exposições ao longo de sua carreira e participou de feiras nacionais e internacionais. Atualmente, o artista desenvolve um trabalho com pedras. São pinturas, desenhos e esculturas que surgem a partir do estudo e da observação do mineral e de suas formas, volume, texturas, impressões e histórias. Essa temática, como Sérgio observa, está muito ligada ao período geológico mais recente, o antropoceno, caracterizado pelo impacto da presença do homem na terra.

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