Editorial Almanaque#33

Maria Rita Guimarães

 

Se Machado de Assis se ocupou, em 1890, segundo dizem, de escrever uma linda ficção sobre a invenção dos almanaques, na qual lhes dá o estatuto de “oficina da vida”, parece ser que essa estranha palavra, cuja etimologia ainda é discutida, evoca um movimento. Ou vários, simultâneos e/ou sucessivos, ao longo do Tempo, personagem lindamente escolhido por Machado de Assis em seu conto e escrito dessa maneira, com a letra T maiúscula. Outro exemplo de movimento, acompanhado de almanaque, tomamos de Wassily Kandinsky (1912/2013, p. 22), quando este escreve para Paul Westheim:

amadureceu em mim o desejo de compilar um livro (uma espécie de almanaque), em que artistas exclusivos deveriam contribuir como autores. […] A separação daninha de uma arte da outra, de “arte” em relação à arte popular, à arte infantil, à “etnográfica”, às sólidas paredes erigidas em meio às coisas que a meus olhos estavam intimamente relacionadas – tudo isso tirou de mim a paz.

Almanaque, a publicação on-line do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, neste seu número 33 homenageia Kandinsky, veste-se com a capa do livro ao qual fez referência como desejo, ainda como um projeto: Almanaque “O cavaleiro Azul”. Foi um projeto fulgurante, faísca apagada pela primeira guerra mundial dois anos após seu primeiro número, mas suficiente para incendiar, no movimento de renovação, a história da arte moderna até nosso tempo.

A revista Almanaque, em seu surgimento, tal como falou Simone Souto na conversa mantida conosco, possibilitou o movimento de espalhar pela cidade, pelas instituições existentes em Belo Horizonte naqueles idos, um forte laço: a psicanálise lacaniana e o Instituto, recém-criado. O compromisso com esse movimento mantém-se até nossos dias. Uma memória que faz a ligação do passado a um farol que ilumina o futuro. Você certamente se interessará em conhecer esse passado em Encontros.

A partir do número 33, a revista Almanaque estará muito circulante. Cada um de seus leitores a terá na palma da mão, tal como o antigo tabloide de cartas enigmáticas estampadas, que era impresso e perambulava pela cidade!

Traz uma versão descarregável: você poderá baixá-la e levá-la no celular, exatamente onde a guardou, para leitura posterior. Mas estamos confiantes de que você também a visitará no site https://institutopsicanalise-mg.com.br/publicacoes/almanaque, seu lugar de referência. Outra novidade é que, na versão PDF, suas páginas estão numeradas.

Uma revista sem índice propõe uma novidade? Não sabemos; mas, isso sabemos, é que desejamos que você a percorra, que se sinta encorajado a examiná-la. E – quem sabe? – , num outro momento poderá até nos dizer algo sobre a revista, até mesmo se a falta de índice “fez falta”.

Também importa assinalar que, entre o tempo de trabalho no IPSM-MG e seus efeitos, a publicação trará, a cada número, um conteúdo que revisitará o tema pesquisado na Seção Clínica e nas demais atividades já realizadas, focando a luz em pontos obscuros. Neste número, no ritmo dessa proposta, um título orientará a leitura dos textos que já apresentam o que se extraiu do semestre anterior: o único e o específico na experiência analítica.

Três colegas foram convidados e aceitaram nos dar a mão no e em Trilhamentos, do que sugere e provoca o título. Já exploramos, pesquisamos e vivenciamos os termos que o compõem?

Maria Wilma Faria inicialmente toma a trilha da sinonímia, buscando nos informar qual acepção da palavra, afinal, pode corresponder ao “específico” de que falamos no campo da experiência analítica. Encaminha a questão examinando-a entre o primeiro e último ensinos de Lacan, fundamentando a necessidade clínica de “saber que um caso nunca realiza o seu tipo”.

Frederico Feu, sem conhecer o texto de Maria Wilma, começa seu escrito dialogando com ele, explorando a distinção entre o caso clínico e o tipo clínico. Logo, lança-nos a proposição seguinte:

Gostaria de propor, no âmbito de nossa discussão no IPSM-MG, que a distinção entre o “único’” e o “específico” não recobre inteiramente aquela entre o caso único e o tipo clínico, especialmente se remetemos o “único” ao “Um”, marca de gozo original do falasser.

Para conhecer a argumentação formulada pelo autor a respeito de sua proposição, aceite o convite que ele nos faz e recolha o esclarecedor ensinamento que o texto nos traz.

Sérgio de Castro concentra-se no termo “Único”. Apoia-se no que foi escrito por Jacques-Alain Miller na contracapa Seminário 19 para nos trazer à reflexão a relação do Único ao Um-dividualismo moderno:

Se, por um lado podemos, ao Um-dividualismo, localizá-lo na rigidez autorreferida dos identitarismos atuais, por outro, podemos constatar que basta que se inicie uma análise para se verificar que há uma dimensão do Outro em cada um que faz voar pelos ares tal aprisionamento.

Em relação ao único e específico, o que nos aporta o texto “A histeria rígida: a existência da neurose hoje”? Esse rigoroso trabalho de Simone Souto, apresentado na Aula Inaugural do IPSM-MG e na abertura da atividades da EBP-MG em março de 2024, ajuda-nos a buscar os elementos à pergunta levantada, assim como nos traz pontos fundamentais ao estudo do tema proposto para a 27ª Jornada da EBP-MG … e as neuroses continuam existindo. Leitura imprescindível, a autora nos traça um percurso desde a histérica freudiana até a histérica de hoje. E o que se pode dizer da histérica de nosso tempo? Nas palavras de Simone Souto:

por mais que a histérica hoje apresente o sintoma sustentado no falo como significante do gozo impossível de negativizar, ela não deixa de demonstrar que o que lhe é dado como gozo é sempre aquele que não deveria ser, é sempre um gozo que não convém se comparado ao único gozo que conviria: aquele relativo à relação sexual que ela visa a atingir. Sendo assim, ela se recusa a ser o sintoma de outro corpo, do corpo de um homem, ou seja, aquilo de que ele goza. Portanto, em seu sintoma, ela goza do significante como Um-sozinho, como um corpo que se goza, mas se recusa a fazer passar esse gozo por um outro, colocá-lo à prova na relação com o parceiro.

Ainda na rubrica Encontros, atualiza-se um antigo tema, melhor dizer, um antigo debate, através de uma pergunta, já tornada clássica, feita por Silvia Tendlarz, colega da Escuela de la Orientación Lacaniana (EOL) – a quem renovamos nossos agradecimentos pela autorização para a publicação, aqui, desta entrevista – a Éric Laurent: “O senhor encontra alguma especificidade na análise com crianças?”. A resposta vem, esclarecedora e orientadora, no sentido clínico: “Claro, a especificidade está na divisão entre o sintoma e o fantasma”.

Outro dado que surpreende é a observação – conhecida, porém pouco comentada – de Laurent:

Isso faz com que no movimento psicanalítico existam tensões entre aqueles que praticam análise com crianças e aqueles que não praticam. Muitas vezes essa separação encobre a diferença de sexos: são as mulheres aquelas que se ocupam das crianças, e os homens não. Há poucos homens que se ocupam disso – embora dependa dos países. Essa oposição é falsa e pode produzir dentro da sociedade de psicanálise a realização da diferença entre os sexos.

O que se conversou poderia se acompanhar por uma interrogação. Efetivamente, perguntar pelo que, na Conversação da Seção Clínica do IPSM-MG, realizada a cada semestre, se trabalhou, debateu e foi transmitido através dos casos clínicos, é assunto que toca a comunidade analítica. O texto aqui publicado nesta rubrica dá provas disso. Sem os casos clínicos – retirados em razão da confidencialidade –, podemos acompanhar o desenvolvimento teórico realizado por Sandra Espinha, sobre “A anorexia: corpos não aprisionados pelo discurso”, texto que é, aliás, uma ótima referência para a preparação ao próximo XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, a se realizar em novembro deste ano.

Por fim, De uma nova geração comparece no Almanaque trazendo uma pergunta:  O que é a psicose ordinária? A pergunta de Fabiana Peralva Lima justifica-se com o seguinte parágrafo:

Conversações clínicas pautadas em casos que apresentavam, para o analista, dificuldades e limitações na definição diagnóstica apontavam para algo novo na clínica psicanalítica. Casos em que não se reconheciam sinais claros de uma neurose e nem tampouco sinais positivos e evidentes de psicose, como alucinações e delírios, faziam ruído à época. Foram três valiosos encontros na França cujas elaborações culminaram na definição do termo “psicose ordinária”, em oposição às psicoses extraordinárias e clássicas nas suas apresentações.

Deixamos o convite: vamos à leitura deste Almanaque 33?


Referências
ASSIS, J. M. M. de. Como se inventaram os almanaques. In: Obra completa. Organizada por Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. (Texto originalmente publicado em 1890).
KANDINSKY, W.; MARC, F. (Eds.). Almanaque “O cavaleiro Azul” (Der Blaue Reiter). Organização de Jorge Schwartz; tradução de Flávia Bancher. São Paulo: Editora Edusp / Museu Lasar Segall, 2013. (Texto originalmente publicado em 1912).