Elucidações sobre acontecimento de corpo e o sonho do “Historiador do Detalhe”, de Carolina Koretzky

Elucidações sobre acontecimento de corpo e o sonho do “Historiador do Detalhe”, de Carolina Koretzky1

Paula Pimenta
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
paularamos.pimenta@gmail.com

Resumo: O artigo foi escrito como comentário ao texto de Ana Sanders, “O historiador do detalhe: articulações entre sonho e acontecimento de corpo”, publicado neste número. Ele se dedica a elucidar o que seria um acontecimento de corpo e a verificar sua presença no sonho trabalhado.

Palavras-chave: acontecimento de corpo; sonho; lalíngua.

ELUCIDATIONS ON BODY EVENT AND THE DREAM OF “THE DETAIL HISTORIAN”, BY CAROLINA KORETZKY

Abstract: The article was written as a commentary on Ana Sanders’ text, “The historian of detail: articulations between dreams and bodily events”, published in this issue. He dedicates himself to elucidating what a bodily event would be and verifying its presence in the worked dream.

Keywords: body event; dream; lalangue.

O caso do “historiador do detalhe”, apresentado por Carolina Koretzky, é precioso para revelar a função do sonho na psicose, ao que se acrescenta o modo como irrompe o chamado “acontecimento de corpo”. Em seu texto “O historiador do detalhe: articulações entre sonho e acontecimento de corpo”, Ana Sanders especifica sobre a montagem do sonho, para Freud e para Lacan, e descreve o sonho do pequeno Matéo, de oito anos, que lhe serve para “seguir dormindo, com os olhos bem abertos”.[2]

O presente artigo traz a proposta de elaborar um pequeno comentário suplementar sobre a noção de “acontecimento de corpo”, articulando-o com os efeitos do referido sonho na vida da criança.

Acontecimento de corpo: marca da letra

A concepção de “acontecimento de corpo” surge, na obra de Lacan (1975-76/2007), à época do Seminário 23, “O Sinthoma”, contemporâneo de seu escrito “Joyce, o Sintoma” (LACAN, 1975/2003). No entanto, a articulação entre corpo e gozo veio se constituindo desde o Seminário 20 (LACAN, 1972-73/1985). A partir dessa época, portanto, tem-se uma virada de orientação quanto ao status da interpretação analítica, que visaria o gozo fora do sentido que causou marcas no sujeito.

Em uma intervenção no Congresso da New Lacanian School (NLS), Miller define o acontecimento de corpo como

a percussão de lalíngua no corpo, o próprio encontro material, para o parlêtre, do significante com o corpo. A um só tempo, o acontecimento de corpo – o choque puro da linguagem sobre o corpo – seria um fato inaugural e constituinte do parlêtre e, também, algo a se reiterar sem cessar ao longo da existência, um acontecimento permanente. (BARRETO, 2018, p. 39)

Temos, então, a relação estabelecida entre lalíngua e acontecimento de corpo. Para que este ocorra, todavia, é preciso a inscrição da letra. Lalíngua são os estilhaços do choque da linguagem com o corpo, que comporta gozo, mas não promove um acontecimento de corpo por não demarcar uma borda que contorna um vazio (a zona erógena freudiana), o que incorreria na possibilidade de extração do objeto pulsional que localiza o gozo. O que faz isso é a letra, a marca no corpo de um dos estilhaços de lalíngua (BAYÓN, 2020).

 Lalíngua é o enxame (“essaim”, homófono a S1) de significantes. Não de palavras, mas de S1s, significantes sozinhos, que não se acoplam a nenhum outro em uma estrutura de linguagem que promova sentido. O gozo de lalíngua refere-se à materialidade do som, à substância sonora em que se produzem as homofonias, assonâncias e onomatopeias.

 Lalíngua institui o Um sozinho, sem o Outro, não estando a serviço da comunicação. Trata-se de um gozo anterior ao Outro, o gozo do parlêtre. O “sujeito” se constituirá somente em um segundo tempo lógico, pelo banho de linguagem que vem do campo do Outro. O enxame de S1s de lalíngua não produz sentido e não promove um acontecimento. É preciso que algum desses S1s se diferencie e seja alçado ao status de uma marca, que é a letra.

Se lalíngua é o impacto, a entrada do gozo no corpo, a letra implica uma localização desse gozo – que em lalíngua estava deslocalizado. Lalíngua é o início do gozo, enquanto a letra é sua marca, o recorte de um modo singular de gozo. A letra é marca de gozo e modo de gozo. É esse justamente o passo que permitirá a passagem de lalíngua à linguagem: o recorte de um S1 sintomático como o que escreve, primitivamente, a letra que marca o início da repetição, se articulará em seguida ao S2 no que Lacan chama a elucubração de saber sobre lalíngua. (BAYÓN, 2020, p. 85)

É uma contingência que funda um dos S1s do enxame como letra, por meio do encontro com o Outro.

Tem-se aqui o acontecimento de corpo que se produz no troumatismo: a inscrição da letra e sua borda, que instaura a compulsão à repetição do sintoma e a escritura primitiva do sintoma. Essa inscrição, essa marca que se repete, é um acontecimento de corpo. (BAYÓN, 2020, p. 93)

Há uma sincronia entre a inscrição da letra e o troumatismo. À medida em que ela se escreve, também se inscreve o furo. A letra fura o gozo de lalíngua, esvaziando-o ao extrair o S1 do conjunto indiferenciado de uns, deixando sua marca como cicatriz.

Assim, o Um pode fazer dois, articulando-se com um S2 e compondo uma cadeia. É a partir desse S1 da letra que a linguagem pode advir, concatenando um S2 que se encadeia e promove sentido, compondo a estrutura da linguagem (MILLER, 1998).

O acontecimento de corpo é, portanto, marca no corpo da inscrição desse gozo localizado que é a letra. “A repetição do sintoma é esse algo do que acabo de dizer que primitivamente é escritura” (LACAN,1974-75, aula de 21 de janeiro de 1975). Esse Um que se escreve, por sua função de letra, constitui o necessário do sintoma.

O troumatismo é trauma por ser uma irrupção de gozo que produz um furo no real. Esse furo é a não-relação sexual e se produz como uma borda simbólica que a letra demarca; trata-se da borda do furo no saber, no S2. A letra é a borda mesma; ela “escreve o zero e o Um na contingência do trauma, ou seja, escreve o furo e a borda no mesmo ato”. (BAYÓN, 2020, p. 93).

Então nos perguntamos: por que podemos afirmar que o sonho de Matéo apresenta um acontecimento de corpo?

O sonho de Matéo e a letra como acontecimento de corpo

O relato do sonho feito por Matéo à sua analista, seus comentários posteriores e o efeito apaziguador e localizador do gozo que se sucedeu faz-nos afirmar ter havido ali um acontecimento de corpo.

A criança apresenta um ponto de perplexidade diante do conteúdo do sonho, ao afirmar: “foi estranho! Fui eu mesmo que ordenei minha própria morte” (KORETZKY, 2020, p. 131, tradução nossa). Mas não toma isso como um enigma a ser transformado em uma busca de sentido. Em seu lugar, surge a certeza delirante – “Senti verdadeiramente em meu corpo o que é morrer. […] Conheço o efeito no corpo de receber uma bala” (KORETZKY, 2020, p. 132, tradução nossa) –, a partir de uma condensação de elementos de sua história que promovem uma marca no corpo, localizando algo do gozo. Produz-se uma letra que faz acontecimento de corpo. “A ‘bala’ do sonho é o verbo que se faz carne” (KORETZKY, 2020, p. 133, tradução nossa), o que remete ao estatuto de lalíngua.

É importante observar que, na cronologia do caso, esse sonho-letra surge em um segundo tempo do tratamento, após um trabalho de construção do corpo promovido pela análise.

Com o sonho, surge em Matéo um laço vivo com o saber, um saber (delirante) experimentado no corpo, que se apoia sobre um acontecimento de corpo. Ele sabe o que é morrer por uma ferida no corpo, aqui está a invenção psicótica de um lugar de exceção que institui “um movimento de morte e renascimento do sujeito” (KORETZKY, 2020, p. 132, tradução nossa). Os efeitos perenes testemunhados posteriormente pela criança reforçam nosso entendimento de que foi um acontecimento de corpo que irrompeu no sonho.

Finalizo retomando as palavras de Barreto, já citadas anteriormente, de que o acontecimento de corpo é algo que se reitera “sem cessar ao longo da existência, um acontecimento permanente”. É nessa gradação de acontecimento permanente que vem rearranjar o modo de gozo do sujeito que reconhecemos essa produção onírica especial de Matéo.

 


Referências
BARRETO, F. P. Fenômeno e acontecimento de corpo na clínica da estabilização psicótica. Cythère, Rev. de la Red Univ. Amer., v. 1, ago. p. 34-43, 2018. Disponível em: http://revistacythere.com/wp-content/uploads/2018/08/CYTHERE-1.-PAES-BARRETO-Fen%C3%B4meno-e-acontecimento-de-corpo.pdf. Acesso em: 13 mai. 2021.
BAYÓN, P. A. El autismo, entre lalengua y la letra. Olivos, AR: Grama, 2020.
KORETZKY, C. El historiador del detalle. In: MILLER, J.-A. La conversación clínica del UFORCA. Olivos, AR: Grama, 2020.
LACAN, J. Le Séminaire, livre 22: RSI. Leçon 21 janvier 1975 établie par J.-A. Miller. Ornicar?, n. 5, 1975, p. 104-110. (Trabalho original proferido em 1974-75).
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
LACAN, J. Joyce, o sintoma. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 560-566. (Trabalho original publicado em 1975).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
MILLER, J.-A. Os signos do gozo. Buenos Aires: Paidós, 1998.

[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise com Crianças do IPSM-MG, em 4/10/2023, como comentário ao trabalho de Ana Sanders (publicado acima).
[2] Expressão de Carolina Koretzky, por ocasião da oportuna apresentação do caso realizada no âmbito do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Psicose do IPSM-MG, em 2/6/2023.