Entrevista Cao Guimarães

ALESSANDRA THOMAZ ROCHA, DADE SENA E LUDMILLA FÉRES FARIA

 

FLORENCIA MARTINEZ

 

A GAMBIARRA[1] COMO PARADIGMA DA QUEDA DO FALOCENTRISMO

 

Diante dos imperativos consumistas contemporâneos, quando o mercado se torna cada vez mais sedutor e agressivo, com promessas e ofertas cada dia mais criativas e de forma a impulsionar o consumo do objeto ideal inconsumível, a gambiarra surge como paradigma de solução sinthomática desta época, da queda do falocentrismo, na qual a transgressão se inscreve como imperativo de gozo diante de um desejo impossível de sustentar.

 

A obra fotográfica artística Gambiarras, de Cao Guimarães, nos traz o frescor da invenção moderna e nos mostra, de forma instigante, como a falta se inscreve no discurso capitalista, subvertendo-o. Ela inaugura um espaço entre a ordem e a desordem, entre a contenção e a soltura, entre o imprevisível e o previsto, diante do peso da norma. Ela surge, finalmente, tão fugaz, precária e instável, como uma solução performática do improviso. As gambiarras demonstram, de forma contundente, como a civilização responde ao imperativo de gozo com o vazio de sentido e seu avesso, o cúmulo de sentido: o enigma, que se traduz na invenção singular de um objeto resto, construído a partir do que é inútil e descartável. Demonstra, assim, a função do inútil. Foi a partir dessa leitura que a equipe do Almanaque realizou a entrevista abaixo com Cao Guimarães.

 

Cao Guimarães é um cineasta e artista plástico mineiro nascido em 1965, em Belo Horizonte, cidade onde vive e trabalha. Atuando na interface entre o cinema e as artes plásticas, aborda e documenta a realidade a partir de seu olhar questionador, astuto, sensível e atento. Consoante à lógica de sua época, demonstra, de forma brilhante, como o artista sempre precede o psicanalista em sua leitura sobre o mundo. Por meio da fotografia como objeto de arte, bem como de seus filmes, vídeos e exposições, nos lança a questão do uso das imagens e do saber fazer com elas, de forma a causar a surpresa ou o espanto, tanto quanto a fascinação e o desejo de saber.

 

 Almanaque: Poderíamos saber um pouco sobre o processo de escolha dos temas de seus trabalhos e, em especial, sobre o que suscitou seu desejo de retratar, documentar as gambiarras?

 

Cao Guimarães: Geralmente essa entidade movediça chamada realidade é o grande substrato dos meus trabalhos, realidade na qual me movo, às vezes de forma contemplativa, às vezes propositiva e, às vezes, imersiva, podendo também ser de duas ou três dessas formas ao mesmo tempo. A fagulha inicial que gera o desejo de realizar algo sobre alguma coisa é o espanto, um sentimento que coloca meus sentidos em alerta e que, de alguma forma, me transcende ou me transporta para além de mim mesmo, na direção de um outro que desconheço e que me fascina.

 

No caso específico das gambiarras, foi uma espécie de reencontro com meu eu, minha cultura, minhas origens. Após dois anos morando no exterior, empreendi uma viagem de dois meses por dez estados brasileiros, principalmente pelo Nordeste, para realizar meu primeiro longa-metragem (O fim do sem fim) e me deparei com essa prática bastante comum em países como o Brasil, onde a realidade socioeconômica instiga, quase obriga, as pessoas a produzir gambiarras para viver.

 

Almanaque: O que você teria a dizer sobre a estética da gambiarra? Pode-se dizer que ela encarna a dimensão abjeta do objeto ideal, ou seja, ela materializa o objeto do desejo a partir de uma estética transgressiva? Nesse sentido, a estética da gambiarra abdica de toda ordem?

 

Cao Guimarães: Sou partidário da posição de Nietzsche, de que o objeto ideal não existe. Para ele, Sócrates (via Platão) e Jesus Cristo (mais precisamente seus apóstolos e principalmente São Paulo, que fundaram o catolicismo) são os dois grandes artífices de uma certa deformação na percepção da realidade: impregnaram a cultura ocidental da concepção de um mundo ideal (no caso de Platão) ou de um mundo transcendente no pior sentido da palavra, ou seja, da abdicação de viver esta vida para perenizar-se na existência idílica do paraíso após a morte (no caso do catolicismo). Já no mundo capitalista contemporâneo, o objeto ideal não está no mundo das ideias nem na vida após a morte, mas nas prateleiras de um supermercado ou nas roupas de uma celebridade, ou seja, num mundo da descartabilidade, um mundo feito para poucos que joga com o desejo de todos. Transgredir, então, é resistir a esse jogo, reinventando, de forma criativa, soluções de existência não programada. A gambiarra faz parte dessa resistência e traz no seu cerne a imprevisibilidade e a transgressão de uma certa ordem imposta pela força do consumo.

 

Almanaque: Você retrata bastante em seus trabalhos a vertente do documento, da imagem documental e do testemunho como contraponto à literatura e à arte de ficção. Que relação você estabelece entre sua obra fotográfica Gambiarra e o documento?

 

Cao Guimarães: Para mim, o simples fato de eleger algo dentro da miríade de coisas que se vê e enquadrar este algo com as lentes de uma câmera ou de sua consciência e sensibilidade já produz um amálgama fundindo o documento com o que você chama de literatura ou arte de ficção. Alguém já disse “não existe maior ficção do que a realidade”. O que me interessa é justamente essa “fricção”.

 

Almanaque: Qual é a relação que você estabelece entre a gambiarra como dimensão abjeta do objeto de arte e os ready-made de Marcel Duchamp?

 

Cao Guimarães: A relação é total. Duchamp foi quem deu o chute inicial na bola (objeto artístico) e deixou o campo invertido, sem linhas definidas; um gramado infinito, impossível de ser de novo contido dentro de quatro linhas, onde a bola sempre havia rolado. A força da vida ordinária que se manifesta em qualquer coisa, incapaz de ser contida em uma moldura, em uma definição. O mictório que não é mais para receber urina, mas para ser contemplado em um museu. O tijolo furado que já não é mais para construir casas, mas para receber vassouras.

 

[1] Gambiarra: soluções de existência não programada.