“EU NÃO SOU DE FALAR MUITO, EU DANÇO”[1] 

MÁRCIA MEZÊNCIO
Psicanalista, membro da EBP e AMP, mestre em Psicologia (Estudos psicanalíticos) pela UFMG |
marciasouzamezencio@gmail.com

Resumo: Comentário do filme Inocência roubada, narrativa ficcional sobre a experiência infantil de abuso sofrido pela protagonista e suas tentativas de dar tratamento ao trauma. Interrogam-se os efeitos, para o sujeito, da interpretação dada pelo discurso jurídico. Propõe-se que o que a justiça faz valer é a responsabilidade do sujeito por seu dizer, por sair do silêncio e confessar o segredo.

Palavras-chave: Interpretação, acontecimento traumático, gozo, responsabilidade.

I’M NOT MUCH OF A TALKER, I’D RATHER DANCE 

Abstract: Commentary on the movie “Les chatouilles”, a fictional narrative about an experience of child abuse suffered by the protagonist and her attempts to treat her trauma. The effects, for the subject, of the interpretation given by the legal discourse are questioned. It is proposed that what justice enforces is the subject’s responsibility of saying it, for leaving the silence and confessing the secret.

Keywords: Interpretation, traumatic event, jouissance, responsibility.

 

Mário Azevedo, S/T, 2020/2021.

Começa com as cócegas e termina com a labareda de gasolina. Tudo isso é, sempre, o gozo (LACAN, 1969-1970/1992, p. 68)[2].

Inocência roubada (2018) é um filme difícil de assistir. O tema é delicado e sabemos que não se trata de uma ficção, mas de uma narrativa ficcional sobre a experiência infantil de abuso sofrido pela protagonista e suas tentativas de dar tratamento ao trauma que faz sintoma em seu corpo para produzir uma medida que o sustente. O próprio filme, antecedido por uma peça teatral, Les chatouilles ou la danse de la colère, bem como a parceria amorosa, se insere na série de tratamentos que o sujeito empreende. Éric Metayer escreveu e dirigiu peça e filme juntamente com Andréa Bescond, de quem também é marido.

Difícil de assistir, difícil também de comentar, por abrir múltiplas vias que poderiam nos interessar e nos extraviar do tema proposto para nossa investigação, como a relação da menina com a mãe. Não me deterei nela, apenas registro sua relevância, bem como o impacto que nos provoca uma reação de indignação e incredulidade, mesmo advertidos da devastação estrutural presente nessa relação. Sem dúvida joga sua importância na forma como a criança não encontra recursos nem defesa em relação ao que lhe acontece.

No tocante ao nosso tema trabalho “A interpretação: da escuta do sentido à leitura do fora de sentido”, a narrativa, grosso modo, aborda a interpretação do próprio sujeito através da dança — e de muitas atuações perigosas que colocam seu corpo em risco —, seguida pela interpretação da psicóloga, que investe no restabelecimento da verdade e na busca de reparação, e conduz ao final, à interpretação da justiça, passando pelo aparelho policial (queixa) e judiciário (julgamento e condenação). Aparentemente, essa última interpretação faz um ponto de basta e o sujeito se reconcilia com seu passado.

Em psicanálise, a partir do momento em que se formula uma demanda, não se pode deixar de interrogar a interpretação que ela veicula e não se pode tomá-la em sua literalidade. Tomando o filme sob a ótica da psicanálise, caberia então perguntar: de que forma a psicanálise poderia interpretar e responder sem transigir de seus princípios? Pode-se assinalar, no percurso apresentado pelo filme, o que teria enganchado o sujeito e lhe permitido avançar? Tratar-se-ia do alívio de falar? Ou da reparação da condenação? Que gozo se confessa ou se recusa? O sujeito, mesmo inocente, pode fazer-se responsável? Pelo menos daquilo que diz ou cala?

Les chatouilles, “as cócegas”, esse é o título original e remete à “brincadeira” proposta pelo abusador. Logo de cara, pareceu-me infeliz a versão do título para o português. Inocência roubada coloca um acento sobre a posição de vítima que, mesmo sendo um viés presente no filme, não será a nossa via para abordá-lo. A tradução literal, no caso, As cócegas, parece-me oferecer a possibilidade de se interrogar a ressonância desse significante sobre o corpo como marca do encontro traumático do sujeito com o sexual.

Resenha do filme, publicada em Lacan Quotidien 867, vai ao encontro dessa hipótese. Cito: “Quem não sucumbiu às cócegas (aux chatouilles) que lhe fez seu papai, seu titio, seu primo? É uma palavrinha da linguagem da infância, tal como “cosquinhas” (papouilles), ainda mais próxima de lalíngua, tão corrente e tão sugestiva”[3]. (LECLERC-RAZAVET, 2020). Também em português essa aproximação é possível, pois a lalíngua igualmente se serve da forma diminutiva, que, em geral, é utilizada para transmitir carinho ou intimidade. Algo do dizer que toca e ressoa no corpo, um dizer que faz acontecimento (MILLER, 2016, p. 28). Como afirma Miller em seu curso O ser e o Um (2011), o acontecimento de corpo é a “percussão” da língua sobre o corpo, é o traumatismo da língua e é da ordem de um real sem lei. Real sem sentido que surge do impacto das palavras sobre o corpo, que está na raiz do sintoma.

 

O filme

Diferentemente da fórmula das narrativas de histórias infantis “entrou por uma porta e saiu por outra”, vemos, no início do filme, a menina Odette entrando por uma porta (reencontraremos essa porta no final do filme) pela qual não a vemos sair. Do lado de fora, já adulta, apresenta-se seu primeiro encontro com a terapeuta e a primeira vez que fala sobre o abuso que sofrera na infância, dos oito aos doze anos, por parte de um amigo próximo de seus pais. Ela tem então por volta de trinta anos e, depois de vinte anos de silêncio, o trauma fez seu retorno ruidoso.

A dança é a paixão de Odette, para o melhor e para o pior. Percorre e costura a trama alternando-se com flashbacks de abuso, narrados em sessão, entre literalidade e fantasia. Em dado momento, em uma situação de trabalho degradada, sofre uma queda e um entorse no tornozelo. Desse acidente de trabalho, decorre um bom encontro com um osteopata, o amor se instala e, com ele, um apaziguamento provisório. Surgem melhores oportunidades de trabalho e o projeto de viverem juntos. Um desentendimento violento sobrevém ao encontro do casal com os pais de Odette e o sujeito cai, abandonado. Pela mãe, sempre excessivamente exigente, e pelo companheiro, desgastado pela sombra de um meio-dizer da parte de Odette: “escondendo as coisas de mim, você pode me perder. Estou sempre te esperando, sem saber se vai chegar e como. Não quero mais isso”, ele diz. A terapeuta a encoraja a falar com ele e também com os pais, revelar-lhes seu segredo e seu sofrimento, ao que ela se recusa inicialmente. Quando finalmente se decide a conversar com os pais, a mãe acusa a filha de mentir, coloca a atenção na gravidade da acusação e desconsidera a gravidade do fato. O pai se revolta, se culpa e pede perdão. É o que permite a Odette prestar queixa. Já a recusa da mãe em responder à sua demanda de amor precipita a demanda ao parceiro, que a acolhe. O abusador é levado ao tribunal e é condenado.

Na cena final, na última sessão, Odette enuncia seu desejo de ouvir da mãe uma palavra de acolhimento, um “eu sinto muito”. Entra novamente pela mesma porta do início e se “reencontra” com Odette menina, desenhando. Ela diz ter abandonado a menina que foi e a convida a seguir consigo resgatando o fio da vida: “Não sou uma morta-viva”. Se não pôde contar com a mãe, poderá contar consigo mesma.

 

Sair do nevoeiro: “Já falou com alguém?”

Ao final da primeira entrevista, a psicóloga diz que vai encaminhar Odette a um colega especializado: “a pessoa certa para ajudá-la”. Odette responde que é a primeira vez que falou sobre o que lhe aconteceu e que não vai falar com mais ninguém: “não sou de falar muito, eu danço”. Diante da terapeuta que quer encaminhá-la a um “especialista”, o sujeito recusa decididamente e a chama à responsabilidade pela escuta: “nunca falei antes com ninguém! Não vou falar com mais ninguém!”. A psicóloga também insiste no tratamento formal “para manter a distância”. Odette quer ser chamada pelo seu nome próprio. A psicóloga consente com a decisão do sujeito e assim se inicia o desenrolar das sessões, nas quais ela não conseguirá “se manter a distância”; pelo contrário, se faz presente, testemunha das rememorações, fantasias (no sentido de sonhos diurnos), construções, como também faz oposição ao risco em que Odette se coloca reiteradamente. Sua presença, fora de lugar e atrapalhada, ainda assim faz limite, o que permite ao sujeito dar contornos ao trauma. De certa forma dócil a se deixar ensinar pelo saber do sujeito, aceitando abandonar todo saber prévio, ela aposta na fala como terapêutica: “falar é o princípio da aceitação, do alívio da dor”.

Entendo que não se trata de se aferrar a esse efeito terapêutico da fala nem a seu oposto, de considerar que as palavras não são necessárias. Encontrei as duas vertentes nas críticas sobre o filme. Se há aquela que considera que a “narrativa inteira serve de preparação para a hora em que Andréa terá palavras para falar” (CARMELO,2018) e se decepciona com o recurso de encobrir a fala pela música e, ainda uma vez, pela dança, há, por outro lado, o elogio às

“escolhas artísticas das cenas do desfecho, pois opta por sensibilidade, pelo não dizer com palavras — estas não são necessárias. Odette não fala, Odette dança. Em cada movimento vemos sua história sendo expelida, as palavras que lhe foram roubadas, reprimidas, traduzidas na intensidade da sua arte” (TEISTER, 2019).

No que se refere ao “falar faz bem”, a prática da psicanálise esclarece que não se trata de qualquer palavra nem de qualquer jeito, pois, se as palavras parecem desnecessárias, isso se deve a que, do que se trata no trauma, estas são sempre inadequadas e insuficientes para dizer. As palavras faltam para dizer o real. Sabemos, com Freud e Lacan, que o encontro do sujeito com o sexo é traumático, é antes um desencontro, pois o fracasso é a regra. O silêncio é a marca do encontro com o real, Troumatisme, e não pode ser interpretado muito rapidamente.

“A prática da psicanálise ensina que não se trata de buscar o real como a verdade. A prática e a análise ensinam que é o real que nos encontra” (TARRAB, 2021) é o que Maurício Tarrab nos lembra perguntando “O que o sujeito encontra que há que fazer notar? O ponto de gozo da repetição”. Observa ainda que “fazer-se de buscadores da verdade, detetives do mistério do sofrimento sintomático”, diante do encontro com um impossível de curar, constitui uma nova ferocidade que “muitas vezes vem tomar o lugar da ferocidade curativa”. Também sabemos, com Lacan, que o sujeito não falará o trauma que é falado no sintoma. Do real, não se diz que é ininterpretável, indizível? Se o trauma se cala, o sintoma o repete e faz barulho. O que se pode, no après-coup, tentar apreender pela fala?

“Para o analista, não se trata de forçar que se diga tudo, tampouco de fazer uma promessa sobre o porvir. Trata-se de se oferecer como interlocutor, sustentando o que o sujeito possa dizer para circunscrever o acontecimento traumático na cena analítica” (URRIOLAGOITIA, 2020, p. 156).

Apesar de não esclarecida, algo da presença da psicóloga e pelo menos uma intervenção bastante precisa parecem ter operado e permitido ao sujeito circunscrever aquilo que toca o seu corpo. Recorto a cena em que a psicóloga vibra “porque está ficando mais concreto” (trata-se da narrativa não fantasiada de uma cena de abuso). Na sequência, Odette pergunta: “Por que ele continuava se estava claro que eu não gostava?”. A resposta é direta: “Porque é um estupro, vamos sair daqui”.

É uma forma de nomear que faz borda ao real, ainda que a orientação dada pela psicóloga seja de restabelecer a verdade e a fantasia seja tratada como uma fuga, como nas intervenções: “nos desviamos, vamos voltar” ou “vá devagar com o mundo da fantasia”. Em outro momento, ela admite que “contar na fantasia é um primeiro passo para contar na realidade”, mas sua referência segue sendo a verdade.

Vemos que o recurso à fantasia é decisivo para Odette. Na fantasia diz a seu amigo Manu: “Não consigo tirar isso da cabeça”. Ao que ele responde: “Então não tente! Conviva com isso (fais avec)! Uma lembrança não pode te comer viva! (em lugar de conviva com isso, podemos escutar: se arranje, se vire, faça alguma coisa com isso).

Questionando-me o que teria operado para que Odette saísse do silêncio que a mortificava, deparei-me com essa “autointerpretação”. Pensei que poderíamos aproximá-la do célebre aforisma “pode-se prescindir com a condição de servir-se (do Nome-do-Pai)”. Quanto a servir-se do pai, também em uma “lembrança fantasiada”, a menina apela ao pai para ensaiar um primeiro não ao abusador: “Meu pai vai chegar”.

Como fazer dessa lembrança que a assombra algo que vivifique seu corpo? Esse corpo agitado pela raiva (colère). Num workshop de dança, o professor diz que ela dança “sem técnica, mas com emoção. É o corpo de uma criança que sofre”, interpreta. “Sua dança é intensa, muito poderosa, mas você precisa sair do nevoeiro. Já falou com alguém? Não quer falar com alguém?”.

 

O que se confessa?

Para Serge Cottet (2014), há dificuldade na atualidade para defender a vigência da teoria freudiana do trauma, para a qual é necessário considerar a importância da presença do sexual na criança e que não haveria traumatizados se não houvesse satisfação associada. A criança a experimenta sem poder traduzi-la. O trauma é a marca indelével que fica, como um “eco na vida de uma primeira vez” (COTTET, 2014, p. 33). O fato de que a sociedade atual vê a criança como vítima potencial do adulto perverso não deixa espaço para incluir a satisfação própria da sexualidade infantil, reatualizada no segundo tempo do trauma.

A esse respeito, outra cena do filme é esclarecedora. Odette retorna de uma turnê — que lhe serviria para manter, segundo suas palavras, distância do passado ou para que o passado a esquecesse — devastada pelas drogas, pelas relações múltiplas e ocasionais e pela solidão. Na sessão, a psicóloga insiste: “faz bem falar sobre o que houve, confessar”. Ao que Odette responde: “confessar o quê, eu sou inocente!”. “Confessar não foi uma boa palavra. Revelar, contar a alguém”, corrige a psicóloga. Nesse diálogo temos mais uma “confusão de línguas”: a legenda traduz avouer (confessar) por contar, o que torna sem sentido a resposta “eu sou inocente”.

Para Odette, contar aos pais seria destruir a vida deles. Também não podia contar para o homem que ama que foi abusada quando criança, pois ele fugiria. “Já passou o tempo”, ela diz (de que tempo se trata? da sessão? da denúncia? da fala?).

Cabe perguntar, finalmente, a função e o efeito da apresentação da queixa e do julgamento (resposta do judiciário). Segundo Leclerc-Razavet (2020), a denúncia seria a chave do filme e tornar público possibilitou ao sujeito “sair da omertá, da vergonha, de uma posição de vítima, com a necessidade de elaborar sua própria resposta face a esse real que pode sempre ressurgir”.

Não se trata de esperar que a resolução do trauma seja a reparação outorgada pela justiça, mas de abrir o campo da responsabilidade através dela. O filme é fiel a seu tempo e se engaja na esteira do #metoo. O acusado é reincidente e é de outra vítima que se mostra o depoimento na cena do julgamento. No entanto, como nos lembra Clotilde Leguil (2017), “o sintoma não é formulado através de um (…) ‘nós, as vítimas’ (…). Ele se formula a partir de um eu remetido à própria opacidade (…) que escapa ao sentido comum”. O sujeito responde sozinho por ele.

É nesse sentido que Leclerc-Razavet (2020) conclui:

“Essa marca traumática de gozo deve ser ‘carregada’ pelo sujeito, uma vez reconhecida sua posição de vítima — um momento lógico inevitável. O que ele fará com isso? Isso é o que lhe pertence, para se afastar dessa posição de vítima, e assim recuperar seu desejo e seu orgulho”.

No julgamento, o abusador ainda declara: “Ela consentiu. Gostava, se oferecia. Eu deveria recusar? Não faz sentido”.

Se se poderia falar em consentimento nessa situação, seria de um consentimento, enfim, em dizer, em tornar público e sair do silêncio culpado de alguém que, em nome de preservar os pais, renovava a culpa, ainda que não tivesse, na ocasião dos abusos, os meios de dizer não. Leguil propõe o aforisma “ceder não é consentir”, que podemos parafrasear, em referência a um ditado bem conhecido, para sustentar que “calar não é consentir”, pois “o abuso é aqui o poder que faz calar o sujeito sem que ele o perceba” (LEGUIL, 2021).

O que se confessa, afinal? Hélène Bonnaud (2021) articula que

“Há, portanto, um gozo em calar-se que afeta a dominação do agressor, mas também a fala como segredo que mantém o pacto, tacitamente ou não. O segredo sela a relação do estuprador com a criança estuprada, uma condição ainda marcada pela culpa. Se então denunciar o segredo que protege o estuprador, permite não só liberar a palavra do segredo compartilhado, mas também da culpa ligada a ele. Sigilo e culpa formam uma parceria que aliena o sujeito ao Outro gozador, dando-lhe todo o poder e permitindo-lhe manter o vínculo perverso com seu objeto. (…) O segredo então traz muita depressão e culpa porque afeta a palavra que está aí, de fato, proibida e isso sob o pretexto de privacidade compartilhada”.

 

E o que diz a lei?[4]

A partir desses recortes, localizam-se os pontos de contato e os de separação entre psicanálise e direito. A interpretação jurídica, ao apontar para a responsabilidade do adulto, desresponsabiliza o sujeito (por seu gozo, ainda que de sua posição de vítima) sob o manto da incapacidade de discernimento, o que sinaliza a delicada posição em que a psicanálise se sustenta. Proponho que o que a justiça faz valer é a responsabilidade do sujeito por seu dizer, por sair do silêncio e confessar o segredo.

A reflexão sobre a sexuação das crianças, tema da recente Journée de l’enfant, na França, bem como a atualidade da questão trans, renova, para o direito, uma questão que gira em torno dos temas maioridade sexual, abuso de vulnerável, consentimento (referido à capacidade de discernimento) e prescrição. Temas que nos interessam diretamente em relação ao desfecho da ação judicial no filme que estamos comentando.

Deduz-se a maioridade sexual do limite de idade para a relação consentida com um menor de idade (os termos são da lei francesa): “com menos de quinze anos, o menor não está em condições de consentir em uma conduta sexual, ele será obrigatoriamente considerado como não consentindo” (FAYOL-NOIRETERRE, 2021). Considera-se a presunção de não-discernimento do estabelecimento desse limite. Cabia decisão do juiz sobre esse limite, que, para alguns, deveria ser obrigatório e não discutível. Essa modificação foi, de fato, incorporada à lei em abril de 2021.

Quanto à prescrição da punibilidade das infrações sexuais, contados a partir da maioridade da vítima, considerava-se o prazo de vinte anos para delitos e de trinta anos para crimes. O prazo é consideravelmente maior em relação aos demais crimes e ainda existe debate sobre a imprescritibilidade desses atos. Fayol-Noireterre considera que esse debate reflete uma sociedade “vitimária”, “onde as regras são definidas pelas supostas necessidades das vítimas de reconhecimento judicial, ou punição”. Esses prazos foram revistos e aumentados pela reforma de abril de 2021. E as punições, em sentido idêntico, tornaram-se mais duras[5].

Do filme, ecoa a questão: “a dor prescreve?”

 


Referências Bibliográficas:
BONNAUD, H. “Inceste et secrets de famille”. Lacan Quotidien, n. 910. 2021. Disponível em https://lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2021/01/LQ-910.pdf. Acesso em: 05 mai. 2021.
CARMELO, B. “A festa é minha, eu faço o que eu quiser”. 2018. Disponível em: https://www.adorocinema.com/filmes/filme-256702/criticas-adorocinema/. Acesso em: 05 mai. 2021.
COTTET, S. “Freud et l’actualité du trauma”. La Cause du désir. Paris: ECF, n° 86, 2014, pp. 27-33.
FAYOL-NOIRETERRE, J.-M. “Majorité sexuelle, consentement, prescription”. 2021. Disponível em: https://institut-enfant.fr/zappeur-jie6/majorite-sexuelle-consentement-prescription/. Acesso em: 03 mai. 2021.
INOCÊNCIA roubada. Dir. Andréa Bescond e Éric Metayer. França. 103 min. Cor. Les Films du kiosque. 2018.
LACAN, J. (1969-70) O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
LECLERC-RAZAVET, E. “Les chatouilles ou la danse de la colère”. Lacan Quotidien 867. 2020. Disponível em: https://lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2020/02/LQ-867.pdf. Acesso em: 03 mai. 2021.
LEGUIL, C. “Ilusão do nós, verdade do Eu (Je): abordagem lacaniana da identidade”. Opção lacaniana online n. 22. 2017. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_22/Ilusao_do_nos_verdade_do_eu_(je).pdf. Acesso em: 05 mai. 2021.
LEGUIL, C. “Le consentement au nom de La familia grande.” In: Lacan Quotidien 910. 2021. Disponível em: https://lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2021/01/LQ-910.pdf. Acesso em: 05 mai. 2021.
MILLER, J.-A. O ser e o Um. Curso de Orientação Lacaniana, 2011. Inédito.
MILLER, J.-A. “O inconsciente e o corpo falante”. ScilicetO Corpo Falante – Sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: EBP, 2016, p. 19-32.
TARRAB, M. “Comentário sobre ‘A psicose e a máquina de interpretar’ em Belo Horizonte”. Almanaque online, Belo Horizonte, IPSMMG, n. 27, 2021.
TEISTER, T. “Inocência roubada: viagem dentro do trauma e da dor”. 2019. Disponível em: https://cinemacomrapadura.com.br/criticas/561915/critica-inocencia-roubada-2018-viagem-dentro-do-trauma-e-da-dor/Acesso em: 05 mai. 2021.
URRIOLAGOITIA, G. “O sonho traumático e a tiquêScilicet: O Sonho – sua interpretação e seu uso no tratamento lacaniano. São Paulo: EBP, 2020, p. 155-156.

[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Direito do IPSMMG, em 14/05/2021.
[2] Agradeço a Ludmilla Féres Faria a lembrança dessa citação de Lacan.
[3] Essa tradução, como as demais de referências em francês, foi feita por mim.
[4] Recolhi algumas informações sobre a legislação francesa, no que se refere às infrações sexuais, no boletim eletrônico da jornada citada, publicado em 21 de janeiro, em artigo de autoria de Jean-Marie Fayol-Noireterre, magistrado. A lei francesa foi modificada em abril de 2021. Agradeço a José Xavier, advogado em Belo Horizonte, pela pesquisa sobre a legislação, bem como pela participação e esclarecimentos apresentados na discussão desse comentário na atividade do Núcleo de Psicanálise e Direito.
[5] O entendimento transmitido por José Xavier consoa com o comentário de J.-A. Miller quanto à docilidade do legislador ao clamor público. Se, por um lado, a extensão dos prazos de punibilidade é um avanço ao incluir a consideração do tempo subjetivo e ênfase na função reparadora da justiça, o endurecimento das penas responde mais a um anseio popular por vingança, acentuando, então, a função retributiva da justiça.