FICÇÕES DE CRIANÇA
“Já aprendemos de numerosas observações incontestáveis a idade precoce em que as crianças sabem como utilizar-se de símbolos.”
(FREUD, 1920/1984, p. 319)
Daniel Roy[1]
Membro da École de la Cause Freudienne (ECF)
e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
E-mail: danielroy@wanadoo.fr
Você pode procurá-lo com dedal – e procurá-lo com cuidado;
Você pode caçá-lo com garfos e esperança;
Você pode ameaçar sua vida com uma ação de ferrovia;
Você pode encantá-lo com sorrisos e sabão.
(CARROLL, 1876/2017)
A ficção é hoje reconhecida por ser, por excelência, o modo discursivo sob o qual se inscrevem os filhotes de homem assim que eles se põem a parlêtrer[2] o melhor possível. Durante muito tempo, esse traço serviu para segregá-los em um mundo da infância celebrado como mundo no qual o imaginário reina como mestre, desprezando realidades da vida. Mas há aqui um deal[3] que, sob aparências humanistas, esconde uma ordem de ferro que exige da criança que ela se identifique a uma criança e que, assim, dê consistência a um Outro que se preza por lhe garantir proteção.
A infância: território ou litoral?
Lá onde a infância é considerada como zona de proteção da criança, estaremos lidando com ficções de fronteira e de território, de ataque e de defesa, de polícia e de ladrão. Será lícito caçar aí os estereótipos, denominação em voga para designar as identificações ideais que o discurso oferece às crianças do tempo para lhes confeccionar uniformes prêt-à-porter ou lhes oferecer “fantasias excêntricas”, com as quais elas podem se vestir para suportar ou enganar a demanda do Outro. Diante da Mini Miss de sete anos e do jihadista de quatorze, quem pode ainda pensar a infância fora do alcance dos significantes-mestres? O paradoxo é maciço: quanto mais a criança é designada pelo seu eu-sou-uma-criança, mais as identificações que ela colhe ameaçam entrar em funcionamento como verdade de seu ser.
Há um outro modo de considerar a infância. Nós o obtivemos primeiramente de Freud, que situou, no limiar da infância, um abismo que ele nomeou “amnésia infantil”, uma zona de esquecimento, portanto, ou mesmo de não reconhecimento fundamental, Unerkannt (MILLER, 2007, p. 237, Nota 7). Em seguida, Lacan faz aparecer, como luz rasante, essa zona litoral, onde não falamos ainda e onde somos falados, de onde se deduz que a criança é por excelência o falasser, por ser o primeiro a habitar essa zona litoral que é a infância, com a carga para ele de ser também o primeiro a poder tomar literalmente esse real – de ser ao mesmo tempo falado e falante. À sua disposição, entre função da linguagem e campo da palavra, lalíngua se oferece a ele para infiltrar cada ficção com seus fluxos e refluxos, para criar aí erosões e depósitos aluviais, para povoá-los com quimeras diversas, Pocket Monsters menos enquadrados do que os ditos Pokémons,[4] que não hesitam em reciclar as significações mais uniformizantes. Nessa zona litoral, o estatuto do sujeito muda, pelo “fato de ele se apoiar num céu constelado, e não apenas no traço unário, para sua identificação fundamental” (LACAN, 1971/2003, p. 24) – constelação que constituem as configurações significantes, singulares e contingentes, que se realizam na lalíngua. O uso das ficções não se mede aí pelas verdades que elas conteriam, mas pelo fato de que nelas se declina uma varité do gozo (LACAN, 1977/1998), tal como ela se repete e, portanto, se perde ao longo de seus relatos.
P’titom[5]: um nome novo para a criança
Tiramos proveito do último ensino de Lacan para liberar a criança dos ideais da infância e, para marcar essa ruptura, podemos nos aproveitar de um nome – p’titom – que vem sob a pena de Lacan, durante sua conferência sobre Joyce de junho de 1975, e que nos permite correlacionar a criança e suas ficções não mais ao verde paraíso dos amores infantis, mas ao sintoma. A frase é a seguinte: “Ptom, Pt’homenzim, Pt’homendebem ainda vive, na língua que se crê obrigada, entre outras línguas, a ptomar a coisa coincidente” (LACAN, 1975-76/2007, p. 158).[6] Graças a essa frase, Lacan pode definir o sintoma estritamente como “coincidência” – “pois é o que isso quer dizer” – e ao mesmo tempo fazer ressoar a coincidência fonética do ptom com o p’titom, a criança, que se revela então ela mesma como “coisa coincidente”, como sintoma portanto, junta e disjunta do símbolo que ela é na civilização.
Coloquemos então que, para o p’titom do século XXI, filha ou filho de lom,[7] as ficções são o modo mesmo graças ao qual se enodam gozo e significante, sintoma e símbolo: desse encontro, desse choque, elas são o cristal. Elas são “manipulações linguageiras”, jogo da criança com a linguagem, assim como jogo da língua com “o vivente que fala” e que ela “traumatiza” desde antes de sua vinda ao mundo. Isso já se lê sob a pena de Freud, com a leitura que Lacan propõe a respeito do sonho de sua filha Anna e do jogo de seu neto, o jogo do Fort-Da.
Assim, o sonho da pequena Anna,[8] com a idade de dezoito meses, já tem estrutura de ficção, recolhendo significantes – “Anna Freud, molangos, molangos silvestes, omelete pudim!” (FREUD, 1900/1996, p. 164)[9] – ao mesmo tempo furados pela demanda do Outro (pois estão sustentados por uma proibição enunciada na véspera pelas pessoas que estavam com ela) e carregados de gozo. Quanto ao jogo do Fort-Da, ele permite à criança, aparelhada com um simples carretel, material que é “alguma coisinha do sujeito que se destaca embora ainda sendo bem dele”, saltar “as fronteiras de seu domínio” e começar “a encantação” (LACAN, 1964/1988, p. 63). Um passo a mais e é com a mesma encantação – Fort-Da – que a criança se fará desaparecer, dando aqui testemunho daquilo que está em jogo nessa primeira manipulação linguageira: esse objeto, o carretel, “é aí que devemos designar o sujeito” (LACAN, 1964/1988, p. 63).
Mas a prática dos jogos eletrônicos pelas crianças de hoje, prática que ocasionalmente preocupa pais e especialistas da infância, não tem a mesma estrutura disso que reconhecemos como primeiras ficções: é uma conexão aparelhada e repetitiva a um dispositivo que se revela especialmente contaminado pelos significantes do Outro (níveis, combates contra os boss[10], pontos de vista[11], etc.) – um flerte permanente com diversas zonas proibidas? Associá-los não é abolir suas diferenças: o sonho é recolhido por Freud como algo já escrito pela jovem sonhadora; o jogo do Fort-Da é uma invenção do menininho diante de uma situação complexa, a saída de sua mãe. Por outro lado, um jogo eletrônico é uma ficção pré-fabricada com significantes do discurso corrente e com imagens que formam uma casca, ou um bando[12]: um bando de imagens que faz agalma, ou o bando das imagens que raptam os significantes para fazê-los servir a diversos usos traficados. Mas não é esse o duplo uso das imagens no falasser? Há aqui um vasto mercado de ficções à disposição do p’titom, mercado que se apresenta sob o modo do “pacote ilimitado”, que é o Graal da juventude moderna. Questões surgem: como incluir aí o “eu”? Não é aí onde a máquina me aparelha que o “eu” está? Não sou “eu” o servo do gozo da máquina, máquina que exige meu apetite, meu olhar, minhas trocas, e exige que eu abandone minha voz para obedecer à sua voz? De certa forma, é cada criança de hoje que deve responder a essas questões, e cabe aos analistas garantir que não seja em vão acompanhá-las diante dessas questões. São, portanto, das crianças em análise que podemos esperar que nos conduzam ao centro desse “grande mercado de ficções”, para verificar com elas se encontram aí algum recurso de semblante e/ou se elas ficam à deriva ao querer ganhar vidas ilimitadas onde nada se perde.
P’titom em análise
Nos propomos a examinar essas duas modalidades de funcionamento das ficções para uma criança em análise: as ficções como produções que seguem o deslocamento do desejo, posto em movimento pelo encontro do sujeito com as diversas modalidades de falta; as ficções como fixações, “fixões”, de um gozar em excesso que promove eclosão, trauma, fora de sentido e que trazem as marcas dessa ruptura. “Ilustração e prova”, portanto: ilustração de que há “sujeito enfim em questão” nos ditos da criança, ilustração que pode valer ocasionalmente para seus próximos, mas, em primeiro lugar, para ele mesmo; e prova da presença de um real ineliminável, inassimilável, do qual a criança não se protege, ao contrário do que desejam os adultos.
É para nós a ocasião de nos liberarmos de preconceitos que manteriam a criança afastada do “dado” sexual com o qual os adultos lidam. De certa forma, as crianças não teriam as cartas nas mãos, devido à sua imaturidade sexual, imaturidade que se ergueria com a vinda da puberdade, desencadeando a dita crise da adolescência. Mas seria esse realmente o caso? Não seria necessário considerar, ao contrário, que a menor ficção da criança é uma teoria sexual, uma teoria que se edifica sobre o “impasse sexual” e traz sua marca? Numerosas indicações de Freud e de Lacan nos colocam nessa via, desde os chistes ditos ingênuos levantados por Freud até a análise desenvolvida que Lacan faz da observação da fobia do pequeno Hans em seu Seminário 4, A relação de objeto.
Há aqui dois aspectos distintos. Por um lado, há a inclusão do encontro possível, ou mesmo provável, da criança com “um primeiro gozar”, com uma Coisa que não se inscreve nas coordenadas simbólicas ou imaginárias prévias ou em vias de se elaborar, alguma Coisa que acontece, mas perante a qual nem o sujeito, nem o Outro, podem responder “presente”. Por outro lado, há o fato de que a criança recebe do Outro o saber, que é com os significantes do Outro – “de um certo tipo de mãe e de um certo tipo de pai”[13] – que ela entra no universo dos semblantes. Assim, por um lado, esses significantes trazem a marca do desejo do Outro, mas igualmente o traço de que eles foram forjados em um mundo onde os semblantes do sexo estão de alguma forma “em atividade”. É o que demonstra Lacan em seu Seminário, …ou pior, quando precisa que os significantes “menino” e “menina”, com os quais as crianças se distinguem, lhes vêm da distinção homem-mulher, que se edifica no encontro entre os sexos, com os impasses de gozo que esse encontro comporta. Os significantes se revelam, então, como que contaminados pelo gozo, tornando vã toda tentativa de manter as crianças em estado de inferioridade, seja ela cognitiva, seja psicológica ou biológica.
Digamos então que, se elas têm as cartas na mão, elas têm tempo livre para estabelecer as regras do jogo, para tentar as diversas permutações possíveis e para deixar as próprias cartas jogarem entre si. São essas as ficções da infância, essas duas modalidades reunidas em uma dupla hélice a cada vez singular, duas modalidades que vamos examinar de modo artificialmente distinto sob os nomes de “ficções de tipo Hans” e “ficções de tipo Alice”.
Mas, antes, vamos esclarecer que elas só podem se distinguir assim a partir da experiência analítica, onde encontram sua lógica na intervenção do psicanalista e na direção do tratamento que ele escolhe. Vemos assim Lacan, durante sua elaboração a respeito do pequeno Hans, lembrar por várias vezes que o pai intervém demais, com muita frequência, e que conviria deixar a palavra do menino ir até seu fim. Há por trás dessa observação toda a concepção da transferência como elaboração do sujeito-suposto-saber, concepção que Jacques-Alain Miller recolheu em sua fórmula “o inconsciente intérprete”, e encontramos frequentemente, no relato dos tratamentos de crianças, essa atmosfera interpretativa particular que é acompanhada de uma proliferação ficcional, onde podemos certamente situar o sujeito-suposto-saber na figura de um Outro “bom ouvinte” que traria assim sua garantia de verdade subjetiva às construções da criança. Ora, não é disso que se trata, mas, como indica Freud, de uma parte de verdade pulsional contida no que ele nomeia “teorias sexuais infantis”, e é como impostor que aparecerá toda figura que pretenderia ter autoridade, mesmo que simbólica, sobre a parte de gozo obscuro que aflige todo falasser. Há uma dificuldade que não é específica do tratamento com crianças, mas que aí se instala ainda mais insidiosamente quando o praticante permanece preso a uma dimensão oracular da fala da criança. A partir disso, a decifração das formações do inconsciente isola os nós de significação de onde o sentido se esquiva, como demonstra o comentário de Lacan sobre o pequeno Hans.
É, portanto, sob outra perspectiva que essa fuga do sentido pode ser acolhida, uma perspectiva “ao avesso”, onde ela é definida positivamente como fora de sentido, joui-sens,[14] perspectiva com a qual o analista se autoriza para cortar no vivo do discurso e fazer sobressair o osso de gozo que aí se corrói: para dar conta disso, contaremos com as múltiplas rupturas com as quais Alice é confrontada no País da Maravilhas, por onde ela se aventurou, e isso graças à “Homenagem a Lewis Carroll” pronunciada por Lacan (1966/2015) em 1966.
Ficções de tipo Hans
Lacan dá as coordenadas dessas ficções, enquanto elas são “pequenos mitos” elaborados por Hans a partir de um certo número limitado de elementos significantes, que se permutam à medida que se estabelece uma conversação contínua entre ele e seu pai a respeito de “sua bobagem”,[15] uma fobia de cavalos que se desencadeia aos quatro anos e nove meses de idade. Lacan extrai desse sintoma as duas significações polarizantes, “morder” e “cair”, que se enodam em um primeiro tempo no significante fóbico cavalo e se cristalizam no sintoma fóbico, e que posteriormente vão ser suportados pelas ficções e fantasmas sucessivos. Essas duas significações são, no fundo, os pontos de apoio encontrados por Hans no momento em que um abismo se abre sob seus passos, abismo duplo, Cila e Caríbdis: o nascimento de sua irmãzinha introduziu um elemento difícil de se encaixar no jogo de engodo fálico entre ele e sua mãe; a entrada em jogo do pênis real também não consegue se inscrever na lógica imaginária precedente. Lacan (1956-57/1995, p. 300) insiste em situar essa elaboração ficcional como “tentativa de articular a solução de um problema”, a passagem “de um certo modo de explicação da relação-com-o mundo do sujeito […] para outro modo” necessitado “pela aparição de elementos diferentes, novos, que vêm contradizer a primeira formulação”. E precisa que essa novidade exige “uma passagem que é, como tal, impossível, que é um impasse. Isso é o que dá sua estrutura ao mito” (LACAN, 1956-57/1995, p. 300).
A função desse tipo de ficção é assim claramente definida por Lacan (1957/1998, p. 524): elas permitem explorar “todas as formas possíveis de impossibilidades encontradas no equacionamento significante da solução”… até encontrar a saída singular. Para Hans, ela é localizada por Jacques-Alain Miller (1994, p. 16, tradução nossa) como a transformação “iluminante, […] que preside à conversação da mordida em desmontagem da banheira”. Ela permite ao jovem menino se extrair da angústia central de ser levado com ela, graças à operação do serralheiro que desenrosca a banheira para fazer dela um lugar do seu tamanho.
Notemos com Lacan que a eficácia dessa saída, que está bem distante de uma resolução ideal do complexo de Édipo, repousa em duas manipulações linguageiras que estão em ação nessa “lógica de borracha”.[16] Em primeiro lugar o chiste, que dá também a essa grande conversação sua tonalidade alegre, e isso por causa do próprio Hans, de seu estilo, dirá Lacan (1956-57/1995, p. 301): “jogar com o non-sens fundamental de todo uso do sentido”, eis a possibilidade da qual não se priva Hans diante das perguntas ou sugestões um pouco insistentes demais do pai.
Mas, por outro lado, há, de modo muito preciso, um jogo das palavras tomado ao pé da letra, que vai se revelar incluído ao mesmo tempo na fobia e em sua solução. Hans se apoia aqui, e isso não é insignificante, em seu livro de imagens, no momento em que expõe a seu pai uma de suas teorias sobre a presença de sua irmã Anna. Na página da esquerda, uma cegonha sobre uma chaminé, representada por um paralelepípedo vermelho: eis aí a caixa de bebês, onde a cegonha os esconde, e que Hans faz equivaler a outras caixas, aos carros de entrega; na outra página, ao lado, um cavalo que está sendo ferrado. Vai-se demonstrar que essas duas páginas operaram para Hans como dois quadros de uma mini história em quadrinhos, na qual estariam condensadas as matrizes significantes de onde partem as séries associativas que informam as ficções da criança: a caixa onde nascem – geboren – as crianças se liga, assim, à banheira na qual intervém o serralheiro que fura a barriga de Hans com sua furadeira – Bohrer.[17] O cavalo que é ferrado – beschlagen – será o mesmo cavalo que será chicoteado – geschlagen – em uma das pequenas fantasias da criança.
Aqui já é uma ficção “tipo Alice” que entra em função: jogo de palavras e jogo de letras dão as mãos e vêm perfurar as fantasias da criança, nutridas pela busca de sentido do pai.
Ficções de tipo Alice
Certamente, Alice é uma criatura de ficção, não é ela que é a produtora de pequenos mitos como Hans. Mas, precisamente por isso, ela nos permite mais facilmente modificar nosso ângulo de visão. Vimos, de fato, como para Hans o jogo literal e sonoro das palavras se alojava no centro mesmo de seu sintoma, e depois de suas ficções-fantasmas. Nessa perspectiva, a exploração do sentido do sintoma esbarra na causa do sintoma, admiravelmente identificado por Freud no blábláblá de Hans: ele pegou a “bobagem” no dia em que as crianças não paravam de dizer wegen dem Pferd (“por causa do cavalo”) – expressão estritamente homófona a Wägen (dem Pferd, ou “veículos de tração animal”) em sua pronúncia vienense: “a pequena palavra wegen [‘por causa de’] foi o meio que favoreceu a fobia estender-se desde Wagen [‘veículos’], ou Wägen [que se pronuncia exatamente como ‘wegen’]” (FREUD, 1909/1996, p. 59, Nota 1). Nesse ponto preciso, Lacan (1956-57/1995, p. 324) indica que “A hiância da situação de Hans é inteiramente ligada a esta transferência de peso gramatical”. É esse método que Lewis Carroll vai usar desmedidamente em suas ficções “Alice”, método a respeito do qual Lacan (1966/2004, p. 8) observa esse “traço, a ressaltar que o jogo de palavras em Carroll é sempre inequívoco”. Essa salutar malícia com que ele qualifica o efeito produzido não se deve ao fato de que nada se acrescenta aos significantes além de sua dupla materialidade literal e sonora? Não é essa materialidade tomada na palavra que permite a Lacan (1966/2004, p. 8) ver nessa obra uma primeira amarração dos “três registros – o simbólico, o imaginário e o real – […] jogando em estado puro com sua relação mais simples”?
Essa relação é definida assim por Lacan em sua homenagem a Lewis Carroll[18]: há imagens com as quais o autor faz “puro jogo de combinações”, isto é, ele as faz entrar em uma combinatória de tipo simbólico, o que não deixa de produzir “efeito de vertigem”.
Esse efeito é obtido pelo procedimento que consiste em tomar todos os “corpos” presentes na sua dimensão de imagem em duas dimensões e, ao mesmo tempo, em sua dimensão física de três dimensões, permitindo assim introduzir “todos os tipos de dimensões virtuais” tornadas sensíveis pelas distorções produzidas por ações em 3D efetuadas por imagens em 2D, deslocamentos 2D sobre corpos 3D, encontros das imagens e dos corpos na dimensão virtual recém-criada. Seria necessário igualmente situar uma quarta dimensão, a do tempo, que vem aparecer no texto com as diversas acelerações, as desacelerações, e mais fundamentalmente nas rupturas de fase na narração, que parecem responder a uma lógica “catastrófica” ligada a nenhum sentido e a nenhuma causa. Enfim, são precisamente essas dimensões virtuais que perfuram a realidade sensível e “fornecem acesso à realidade […] a mais garantida, aquela do impossível que se torna de repente familiar”. Diremos que Lacan define aqui um real produto estrito de uma ficção, sem passar pelo mito – ficção que enoda então R, S e I, sem que um dos registros se destine a dominar os outros, a “gerenciá-los”, a “dominá-los”.
Nossos modernos jogos virtuais têm tudo para invejar as ficções de “tipo Alice”, que conseguem, com uma maior economia de meios, esses efeitos contrastantes que Lacan (1966/2004, p. 7) aponta: “sem que nos sirvamos de qualquer distúrbio, a obra de Carroll produz um mal-estar que decorre de um júbilo singular”. Certamente, esses jogos não se privam de se servir de certos transtornos, caroços de fantasmas, mas esse mal-estar do qual decorre um gozo bem singular, não é isso que os adultos, educadores e pais, têm tanta dificuldade em suportar no que nos arriscamos a nomear algumas vezes como “vício de jogos eletrônicos”. Os criadores de jogos eletrônicos não são Lewis Carroll, mas são artistas que fazem obras. Que elas estejam infiltradas pelos significantes-mestres do discurso corrente não contraria sua função de sublimação: toda a força do objeto de arte, em todas as épocas, está em se servir dos semblantes para capturar o espectador em sua errância e fazer sobressair seu valor de gozo.
Com a obra de Lewis Carroll, Lacan (1966/2004, p. 12) dá a ideia de um registro épico esvaziado do idílio que nele se exprime, quando se acrescenta a ele a ideologia, de um registro épico a ser situado em correlação com “o épico da era científica”. Esse épico repousa em “uma dialética materializada”, tal como, precisa Lacan, “a técnica assegura sua prevalência”, se apoiando na história em quadrinho, anunciada pelos “desenhos com os quais Lewis Carroll estava tão empenhado”. E, portanto, esse tipo de ficção “épica” nos interessa especialmente, porque interessa às crianças de hoje, que encontram nela recursos outros para além dos “contos, mitos e lendas”, onde gostaríamos de localizar p’titom, e porque ela interessa aos artistas que encontram na técnica, muito mais prevalente hoje, novos meios para materializar dialeticamente a “rede mais pura de nossa condição de ser: o simbólico, o imaginário e o real”.
Inútil, aponta Lacan (1966/2004, p. 10), querer indexar esse poder das palavras com as quais Alice faz “ilustração e prova […] de uma suposta articulação infantil, ou mesmo primitiva”. O “coração da terra” que Alice explora “não abriga nenhuma caverna” e o país das maravilhas, o para-além do espelho, o casal angustiante de Sílvia e Bruno evadidos das terras de alhures que escaparam do país do além, não são nem mitos, nem mito […]. Nem o texto nem o enredo fazem apelo a nenhuma ressonância de significações que chamamos de profundas. Não evocamos aí nem gênese, nem tragédia, nem destino. (LACAN, 1966/2004, p. 10)
Não encontramos nessas afirmações o eco invertido das lamentações dos adultos sobre o empobrecimento das imaginações infantis na época dos jogos eletrônicos, esquecidos que estão de que seus assuntos cotidianos, tanto quanto os telejornais, saciam as mesmas crianças com tragédias sem nome, com destinos fulgurantes e com quedas irrevogáveis, com dialéticas de vida e de morte literalmente des-materializadas.
Bricolagens
Uma psicanálise pode permitir a uma criança – p’titom do século XXI – fazer de seu sintoma ficção, isto é, que ela se deixe morder por ele e que ela leve em conta o que cai dele. Como? Drenando o sentido que se liga a ele, para fazer surgir dele o osso da coincidência, do encontro contingente que veio bagunçar sua vida, seu corpo, seu pensamento, lá onde era esperada, aguardada, temida, a intervenção de algum símbolo que tornaria legítimo o desejo em sua lei. O pequeno Hans permanece aqui sempre como nosso guia, mas não sem Alice. Hans, convidado pela cegonha sobre sua caixa de bebês e pelo cavalo que é ferrado no país das maravilhas e do outro lado do espelho, descobre aí um mundo tão estranho quanto o colégio de Hogwarts, teatro das aventuras do jovem e ágil Harry Potter: uma mãe, fonte até então inesgotável de riquezas, que agora se afasta sempre que ele tenta se aproximar dela; um pai que não pode nem se aborrecer, nem se ferir – então que uso fazer dele?; um professor que fala com Deus e gosta de tudo o que ele diz, uma vez que está escrito; uma irmãzinha montada em um cordeiro; uma cegonha com chapéu e bengala; duas girafas, uma grita e a outra se encolhe; crianças imaginárias; calcinhas femininas; um serralheiro que muda a banheira e sua grande furadeira; um serralheiro que desparafusa e torna a parafusar, mas não tudo… Todo um “mobiliário instintual” (LACAN, 1956-57/1995, p. 409) que faz o que quer e com o qual p’titom tenta fazer bricolagens: por que então seria necessário que ele tivesse a última palavra?
Os sintomas são nossas ficções e é com essa lógica que um psicanalista pode se formar para permitir às crianças do século fazerem uso dela com a mesma destreza, com a mesma alegria que elas demonstram em seus jogos aparelhados com a modernidade técnica. Assim, elas poderão, explorando os territórios de seus mitos e o litoral de lalíngua, obter de passagem uma certa margem de liberdade, ou de manobra, junto aos objetos do século, pelo simples fato de dispor de objetos de maior valor, por terem sido isolados, estimados, apreciados, pela exaustão de suas ficções, e daqui em diante disponíveis para jogos de “dialética materializada” com seus parceiros no jogo da vida.
No meio desta palavra que ele tentava dizer,
No meio de sua alegria e de seu riso loucos,
De repente, muito devagar, ele tinha desaparecido,
Pois o Snark, veja você, era um Boojum.
(CARROLL, 1876/2017)