Fracasso E Transferência: Entre A Cura E O Tratamento
GUSTAVO RODRIGUES BORGES DE ARAÚJO
Observa-se que, atualmente, o tema do fracasso está em voga. Fala-se sobre o fracasso das instituições, fracasso escolar, do ensino, do pai, etc. Trata-se de uma nomeação proveniente do Outro para um conjunto de falhas que, sob o nome de fracasso, se alastrou, substantivando tudo aquilo de que não se dá conta. A partir disso, encontram-se inúmeras demandas de cura — em seu mais estrito sentido, ou seja, eliminar a causa da enfermidade — do fracasso, feitas aos mais diversos profissionais. No âmbito escolar, vê-se, com frequência, o recurso à medicação, para curar o aluno de seu fracasso, no caso, com o uso desenfreado da Ritalina, por exemplo. Não é esse o caso da psicanálise, pois, com ela, aposta-se na hipótese do inconsciente. A suposição do inconsciente muda tudo, principalmente pelo fato de que não há cura [Heilung] do inconsciente, não se cura do gozo ou da singularidade, mas se pode arriscar um possível tratamento [Behandlung]. Em se tratando dessa cura, estaríamos já fadados ao fracasso. É nesse sentido que fomos instigados a perguntar se o fracasso não é uma referência própria à prática psicanalítica ou, mais ainda, a condição pela qual se dá a possibilidade de analisar, uma vez que precede a relação transferencial que toma lugar na clínica. Sendo assim, não seria o fracasso uma condição para a psicanálise?
Como se sabe, o nascimento da psicanálise se deu em virtude do fracasso do saber médico. Os sintomas histéricos do século XIX, os quais demandavam ao saber vigente da medicina uma cura, foram os objetos iniciais de interesse psicanalítico que possibilitaram a Sigmund Freud desenvolver aquilo que seria seu legado científico (uma prática, uma técnica e uma teoria), cujo referencial não era um saber profissionalizado (técnico), direcionado à simples proscrição dos sofrimentos dos pacientes, mas o próprio não-saber (impossível de se profissionalizar), que viabiliza a emergência do inconsciente. O comportamento singular dos neuróticos, Freud (1911-1913/2010, p.190) irá dizer, se constitui na vinculação do saber consciente com o não saber, efeito do inconsciente. Constata-se, então, que a psicanálise opera, desde o início do seu desenvolvimento, a partir do fracasso existente em outros campos do saber e aproveitando-se disso para firmar seu discurso em torno do objeto a. A isso se inclui o que bem apontou Jacques Lacan, sobre a “escroqueria psicanalítica”, em seu Seminário 24: “A psicanálise é talvez uma escroqueria, mas não qualquer uma — é uma escroqueria que incide justamente em relação ao que é o significante, ou seja, alguma coisa bem especial que tem efeitos de sentido” (LACAN, 1977, inédito). Acrescenta-se a isso que a especificidade da psicanálise, em certo sentido, é, como também diz Lacan (1967/2003), a razão de um fracasso.
O retorno às histéricas clássicas permite constatar que elas instalaram uma incógnita no processo de cura delimitado pelo saber médico. Pela medicina, encontra-se a sintomatologia correlacionada à etiologia orgânica e, consequentemente, uma técnica para eliminar a causa da enfermidade. Percebe-se que todo esse caminho visa à cura, que, por sua vez, encontra-se no final desse processo clínico. E foi, justamente, nesse final, que o enigma histérico sabotou o saber médico, pois, no meio do caminho, não se encontrou a causa da moléstia. Para Freud (1914/2004, p.106), “precisamos amar para não adoecer, e iremos adoecer se, em conseqüência de impedimentos, não pudermos amar”, isto é, a enfermidade se instala no campo do amor. É exatamente nesse espaço que devemos ser amadores, como diz Célio Garcia, “nas coisas do amor, tem-se que ser amador… é o único campo onde não se pode ser profissional” (GARCIA, 1982, p.67).
Eis que, na psicanálise, encontra-se, contudo, a cura desalojada de sua finalidade clínica orgânica e reinserida no início do tratamento [Behandlung] como uma demanda decisiva para a entrada em análise, pois daí se constitui um desejo de cura. Assinala-se que a diferença entre cura e tratamento é um tema central dos Artigos sobre a técnica:
O primeiro móvel da terapia é o sofrimento do paciente, e o desejo de cura [Heilungswunsch] daí resultante. […] mas a força motriz mesma deve se conservar até o fim do tratamento [Behandlung]; cada melhora produz uma diminuição dela. Por si só, no entanto, ela é incapaz de eliminar a doença (FREUD, 1913/2010, p.191).
Conclui-se disso não só que a cura se encontra fora do objetivo final de um tratamento psicanalítico, mas também que é necessário a presença do desejo de se curar para que haja tratamento. De certa forma, a regressão dessa força motriz — que é o desejo de cura — é equivalente a isso que Freud nomeia de Behandlung. O que se tem, então, em psicanálise, é que a diminuição do desejo de cura apresenta-se como o próprio processo analítico, que, ao invés de promover a cura do inconsciente, apresenta uma forma de tratá-lo[1].
Freud (1938/1996) havia, há muito, identificado a cura [Heilung] a algo tão impossível quanto educar ou governar. Ele destacou, quanto a isso, que o analista deve estar advertido de que chegará a resultados insatisfatórios. Podemos pensar que esses três impossíveis — curar, educar e governar — são designados como tais por se constituírem como um ideal de igualdade que procura eclipsar a singularidade, lá onde se pode localizar a noção de fracasso.
O fracasso é introduzido, na vida sexual infantil, pelo Outro, que representa a lei. A respeito da sexualidade infantil, mais especificamente, quanto aos amores incestuosos, Freud diz, em “Batem numa criança” algo interessante:
O mais provável é que desapareçam [os amores incestuosos] porque seu tempo acabou, porque as crianças entram em nova fase de desenvolvimento, na qual são obrigadas a repetir a repressão da escolha incestuosa de objeto que houve na história da humanidade, como anteriormente haviam sido levadas a empreender tal escolha de objeto (FREUD, 1919/2010, p.306-307).
Levando-se em conta o que se sabe sobre o inconsciente, como lugar do saber, do discurso do mestre, e o que atesta Freud nessa afirmação, pode-se supor que o fracasso da escolha incestuosa esteja diretamente relacionado à intervenção do Outro e do próprio real (que está aí para todos), que, de diversas maneiras, se faz como uma marca recoberta de significantes insuficientes para o sujeito. Uma ferida narcísica se inscreve a partir daí. A perda desse amor infantil, essa perda primordial, será o ponto-chave para que se desenvolva a relação psicanalítica, pois se abre a possibilidade da própria transferência.
Para o sujeito que, em virtude de seu sofrimento, busca uma análise, o saber alojado no inconsciente é o lugar de onde se fala, e a transferência é o meio de acesso a isso. Nessa relação, os amores fracassados podem ser revisitados em sua representação, a partir da presença do analista. Assim, lembra Michel Silvestre, “a transferência opera o milagre de fazê-lo crer que se trata de algo novo” (SILVESTRE, 1989, p.16). É exatamente essa a aposta da psicanálise, uma nova repetição que exponha o fracasso. Em função de uma suposição de saber localizado no analista, o desejo de cura do analisante encontra seu enlace propício ao tratamento. Espera-se que a transferência seja o meio de mudar essa posição do analisante, de se curar e de situá-lo na vertente do tratamento, que se constitui, em outras palavras, como uma mudança subjetiva de lugar.
Na psicanálise, o encontro entre o psicanalista e o psicanalisando é singular, pois se compõe de singularidades. É imprescindível, para a direção de um tratamento, a sugestão de Jacques Lacan, introduzida na suposta intersubjetividade da relação analítica, de que a transferência é constituída de uma imparidade, a qual nomeou com uma palavra que teríamos de buscar na língua inglesa, Odd[2]. O termo ainda remete a uma certa estranheza, que poderia ser relacionada ao próprio Unheimlich, o familiar, e ao estranhamento com que se vive o gozo. Mas Lacan caracteriza a psicanálise dessa maneira para dizer que não é na intersubjetividade que o fenômeno da transferência se inscreve. É, antes de tudo, na própria disparidade e estranheza existentes entre os sujeitos em jogo em uma relação psicanalítica, que, de forma sempre inesperada, estarão sob o fenômeno da transferência.
Pensa-se, portanto, como deveria ser a direção de um tratamento psicanalítico. Curar-se dessa singularidade é um imperativo de igualdade e constitui um ponto de impossibilidade. Acredita-se que a psicanálise seja uma possibilidade de que essa singularidade seja escutada e perdure ao longo do tratamento analítico, ao final do qual se produz um saber. Sendo assim, seria um tratamento cuja cura não é seu centro, mas sim o contágio (sua proliferação e continuação) do fracasso dos amores infantis, da perda de objetos em virtude do real. O efeito do procedimento freudiano da transferência é a prevalência da singularidade que envolve o inconsciente, para o qual não há cura.
Em relação ao desejo de cura, a psicanálise fracassa, pois não há como oferecer a essa demanda o objeto capaz de supri-la, que, em última instância, seria a Coisa freudiana [Das Ding]. “Mais do que ao médico, a cura [Heilung] cabe ao destino, que pode arranjar um substituto para a perdida possibilidade de satisfação” (FREUD, 1912/2010, p.230), já dizia Freud. Estamos, pois, diante do real. A probabilidade mais acessível ao analista, para lidar com o real, na clínica, é pela via da transferência e de seu manejo, pois, nesse procedimento, conduz-se o sujeito ao tratamento capaz de suscitar a repetição ante a insistência do real. Isso é o que Lacan propõe ao dizer que:
Por conseguinte, tudo depende de se o real insiste. Para ele, é necessário que a psicanálise fracasse. Há que se reconhecer que se vá por esse caminho e que, portanto, tenha grandes probabilidades de seguir sendo um sintoma, de crescer e multiplicar-se (LACAN, 1974/1980, p.169, tradução do autor).
Essa frase parece ecoar o dito de Freud – citado por Lacan em “A coisa freudiana” – que declara, ao avistar a costa americana, na viagem que o levaria a proferir as conferências, “eles não sabem que lhe estamos trazendo a peste” (LACAN, 1955/1998, p.404). Essa frase deveria ser interpretada, a partir da transferência claramente existente entre os acadêmicos da Universidade Clark e Freud. O intuito deste era, sem dúvida, apostar em um outro caminho, para o tratamento das doenças nervosas, que não descartasse o fracasso frente ao saber terapêutico da época — cuja cura se apoiava na eliminação dos sintomas. Assim, para a psicanálise, o sintoma deve subsistir ao tratamento.
Se o fracasso já está dado desde a dissipação dos amores incestuosos, logo, é possível pensar que a transferência seja da ordem da peste, quando correlacionada ao fracasso. Afinal, é por meio dela que o inconsciente pode ser escutado, e o sintoma, como diz Lacan, pode “crescer e multiplicar-se”.
A psicanálise não existe somente em razão do fracasso de outros saberes, mas também do próprio fracasso da vida sexual infantil, que é condição para que exista transferência e, portanto, o tratamento analítico. Mas, diferentemente da medicina, a psicanálise não visa a curar o paciente, mas sim a tratá-lo em sua relação com o inconsciente. Assim, mesmo após uma análise, o fracasso continua a existir, e existirá enquanto o real insistir. Não se encontra, no analista, esse objeto perdido primordialmente, ou, em outras palavras, o analista não é a coisa [Das Ding]. Isso constitui o ponto essencial da análise — fazer perdurar o fracasso e produzir um saber a partir dele. Pergunta-se, finalmente: o fracasso poderia ser tomado como ponto constituinte do aparelho psíquico?