Lembrar, repetir, perlaborar[1]
Lucia Maria de Lima Mello
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
delimaebp@gmail.com
Resumo: A autora comenta o texto de Freud “Lembrar, repetir, perlaborar”, de 1914, à luz das modificações apresentadas pelo diálogo com Lacan em 1964 como um suporte para uma releitura a partir do Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Alguns fragmentos clínicos ilustram aspectos da contribuição lacaniana para a pesquisa.
Palavras-chave: lembrar; repetir; pulsão; inconsciente; transferência.
REMEMBERING, REPEATING AND WORKING-THROUGH
Abstract: The author comments on Freud’s 1914 text, Remember, repeat, work through, in the light of the modifications presented by the dialogue with Lacan in 1964 as a support for a rereading based on the Seminar The four fundamental concepts of psychoanalysis. Some clinical fragments illustrate aspects of Lacan´s contribution to research.
Keywords: remembering; repeating; drive; unconscious; transfer.
Dentre os princípios gerais dos fundamentos da prática psicanalítica, o texto “Lembrar, repetir, perlaborar” (FREUD, 1914/2022) inicia com uma lembrança, uma advertência, sobre as profundas transformações sofridas pela técnica psicanalítica desde seus primórdios, não apenas incidindo sobre os três verbos, mas no contexto mais amplo dos conceitos que constituem a experiência psicanalítica. As transformações alcançam os conceitos fundamentais em 1964, no Seminário 11 de Lacan, e prosseguem até seu último ensino. Elucidadas por Miller nos cursos psicanalíticos, dentre outros, encontra-se orientação precisa para diferenciar leitura em três consistências, Simbólico, Imaginário, Real, outra lógica antecipatória das surpreendentes mudanças operadas pelo mal-estar na civilização.
Contarei com algum desses textos, dentre outros, na expectativa de seguir uma vereda já traçada, mas indicativa da pesquisa contínua orientada por um método renovado através das mudanças clínicas, subjetivas, políticas, sociais, ao mesmo tempo em que extrai consequências da parceria com o estranho, sem sentido, do silêncio das pulsões.
O lembrar, desde o início da descoberta freudiana, incide nas repetições, o recalcado, os sintomas, as fantasias, sonhos, os atos falhos, vivências incompreensíveis. Incidência esta que implica tanto o inconsciente, como linguagem, quanto a dimensão silenciosa da pulsão, as chamadas moções pulsionais, os destinos da vida e morte traços nos corpos resultando atos estranhos em sua vasta extensão.
A ab-reação servira inicialmente para demonstrar a dissimetria entre o afeto e a representação. Freud encontra o desafio de traduzir e recompor um sofrimento histórico de fazer cessar a compulsão para repetir que, contrariamente ao sintoma que se deslocava rebelde sobre um corpo, mostrava sua consistência e coesão. Antes de 1914, anunciara um vasto conjunto de experiências clínicas, que alcançavam a sexualidade, a paranoia, a histeria, a fobia, a obsessão. O relativo fracasso da palavra para preencher as lacunas históricas ou traumáticas exigia “fazer as pazes com o recalcado que surge nos sintomas” (FREUD, 1914/2022, p.157)
Fazer as pazes com o recalcado implica o paciente em uma nova relação com a doença, outra posição subjetiva para além da queixa inicial, o que exige sua demanda e autorização. Por seu turno, a nova relação com a doença dependia do estabelecimento da neurose de transferência mais colaborativa, porque vem em substituição à neurose comum. As substituições conhecidas por Freud na esfera sintomática foram recurso tático no manejo da transferência, com a proposta da neurose de transferência substituindo a neurose comum, durante uma análise, além da expectativa de certa regulagem das “pulsões selvagens” pelo uso da transferência.
Quando lemos Miller (1997) no “Discurso do método psicanalítico”, de 1987, encontramos em outros termos a importância das entrevistas preliminares para a localização subjetiva e as coordenadas da verificação de mudança possível, posição suportada pelo ato ético do psicanalista.
Freud verificou que a simples nomeação das resistências por seu turno não alcançava superação imediaa, porque as moções pulsionais alimentavam as resistências. O difícil trabalho conjunto de analista e do analisante, portanto, visaria localizar e superar a incidência da pulsão.
A clínica o ensinava e um dos grandes méritos freudianos foi não se deter diante dos obstáculos, prosseguir suas indagações e pesquisas através de vários enigmas e paradoxos. Descobre que o esquecimento podia ser o não reconhecimento de algo vivido, a denegação, marca neurótica em relação ao desejo, assinalando o mecanismo defensivo que indica e nega a responsabilidade do paciente. Que as lembranças encobridoras podem compensar a amnésia infantil, além de surgirem isoladas, sem qualquer conexão. Podem ocorrer conexões a posteriori de afetos precoces e sem sentido. O paciente se lembra de imagem nunca vista ou não se lembra do que ocorreu anteriormente. Os pensamentos podem não retornar como representações, mas como atuações, portanto, o paciente repete sem saber que repete e experimenta a lembrança como alheia ou permutada pelas defesas.
Um fragmento clínico ilustra bem um dos impasses apresentados pelo início do tratamento localizados por Freud nessa época e que se reencontra ainda segundo alguns depoimentos dos psicanalistas nas práticas clínicas atuais:
Uma senhora, de idade mais avançada, repetidas vezes abandonava a casa e o marido, em estados confusionais, fugindo para um lugar qualquer, sem ter consciência do motivo de tal “escapada”. Ela veio ao meu tratamento com uma transferência carinhosa bem formada, aumentando-a de forma espantosamente rápida nos primeiros dias, e, ao fim de uma semana, também “escapou” de mim antes que eu tivesse tempo de lhe dizer algo que pudesse impedi-la de incorrer nessa repetição. (FREUD, 1914/2022, p. 159)
É muito interessante nesse pequeno relato de 1914 Freud situar no significante que reitera, a “escapada” da paciente, considerando a possibilidade de contenção como manobra clínica. Faz lembrar a importante pergunta de Lacan, muitos anos depois: “Mas se o ato está na leitura do ato, isto quer dizer que esta leitura é simplesmente superposta, e que é do ato reduzido a posteriori que ela toma seu valor?” (LACAN, 1967-68, p. 26). O significado não pertence ao mesmo campo do significante. Essa importante questão surge tanto em Freud quanto em Lacan. O ato da leitura a posteriori marca a distância entre a compreensão e a significação vazia de sentido. É preciso considerar um gozo que se imiscui tanto na palavra falada quanto nas atuações e guarda sua deriva e o enigma para o Outro.
Os sintomas na forma de repetições apresentam-se muito variados como que por acaso, um tropeção, uma falha, mas que insistem, vão dos pequenos fisgamentos cotidianos até esquecimentos que levam à morte, como os que resultam em acidentes. O que está fora da palavra mostra sua insistência e requer um trabalho em outro circuito, labor que mereceu, da parte de Freud, o nome de perlaboração, indicando uma travessia, um percurso através de uma experiência, longamente investigada na “Psicopatologia da Vida cotidiana” (FREUD, 1901/1980), que se desdobra, no próprio Freud em 1937, nas construções em análise, que, por analogia à metáfora arqueológica, ressalta a importância do trabalho com os restos. O curioso é que essas repetições, embora reiteradas, não possuem registros, o inconsciente não toma nota, o sujeito traz a notícia de que ocorrem sempre mais uma vez, uma primeira vez.
Freud, a partir dos trabalhos com a pulsão, sobretudo com a libido, a satisfação, leva em conta dois tipos de repetição. Embora fora da linguagem, é possível traduzir num tempo posterior, ou seja, introduzir condições de legibilidade do ato falho que ele citou mais de uma vez, quando o presidente de uma sessão, ao abrir os trabalhos, levanta-se triunfante e diz: “a sessão está encerrada”. Mesmo aparentemente fora da linguagem, a frase está dentro do contexto significante, portanto pode ser traduzida, mas nem sempre compreendida.
A grande surpresa em 1964 foi a retomada por Lacan, no Seminário 11, do que formalizou nessa época como Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: inconsciente, repetição, transferência e pulsão. O diálogo com Freud se apoiou inicialmente no texto “Lembrar, repetir, perlaborar” para extrair elementos essenciais visando fundamentar outra modalidade da repetição, pesquisa seguidamente renovada conduzida até seu último ensino.
A pergunta de Lacan (1964/1988) situa o inassimilável na forma do trauma que comparece desvelado fora do sonho, não como portador do desejo, mas o trauma mostrando na face despida de semblantes, o impacto do real. Para além do traumatismo das situações de violência, de guerra, que se repetem e buscam o tratamento pelo sentido, há o trauma do real, que acompanha o sujeito para sempre na esfera do fora do sentido.
A repetição não é o retorno dos signos nem a simples reprodução, não é apenas a rememoração agida, não é um comportamento. A descoberta freudiana do inconsciente encontra nos fundamentos da clínica a experiência de uma memória falha, sempre aberta, repleta de contradições. A pesquisa lacaniana localiza algo mais que uma memória, como programas que se desenvolvem sem que o sujeito saiba, um saber paradoxal que não é um conhecimento, mas localizado inicialmente apenas pelos seus efeitos, acontecimentos imprevistos, que indicam a relação não evidente entre o pensamento e seu limite, fora do conhecimento do sujeito, ou seja, o real inferido através de seus efeitos que foi verificado inicialmente por Lacan, como o que retorna sempre ao mesmo lugar.
Na repetição, portanto, comparecem dois níveis: o primeiro na rede de significantes, atualizada, insistentemente, nas diversas formas de automatismo da repetição, no automaton, das biografias, nas histórias, narrativas; e, no segundo, temos a tiquê, o acontecimento imprevisto, o inassimilável, o trauma, acontecimento que ressoa diretamente sobre um corpo. Esses dois níveis foram revisitados sob nova leitura a partir da clínica freudiana, precisamente no caso do “Homem dos lobos”, numa cena infantil comparando duas realidades sucessivas e antagônicas ocorridas na infância do paciente no terreno da percepção. A realidade de uma cena que pode ser posta em palavras, e a perplexidade, demarcada pela surpresa, por um instante sem palavras, enigma, alheio ao sujeito do inconsciente como linguagem. Nessa clínica, as particularidades do estatuto desse inconsciente respondem por realidades surgidas através de fenômenos situados em lugares diversos, como rememoração e reminiscência, o que franqueou a elaboração e construção de hipóteses diagnósticas diversas através da minuciosa leitura a posteriori do caso.
Quando Lacan indaga insistentemente, por vários anos, sobre o estatuto do inconsciente freudiano, formaliza progressivamente algo além da atualização por substituição dos sonhos, atos falhos, chiste, fantasia, sintoma. Algo que desloca para o primeiro plano a Outra realidade, a outra cena. Essa outra cena, entretanto, foge ao enquadre fornecido pela fantasia, não é uma lacuna a ser preenchida, que retorna a um momento prefixado. É um fenômeno inédito, fugidio, alheio a qualquer interpretação.
O relato seguido do comentário de uma experiência pessoal de Lacan sobre a Outra realidade, a outra cena, é colhida em recorte marcante trazido por ele no campo do sonho, quando foi despertado do curto sono através do qual procurava repouso. Despertado, ele diz, “por alguma coisa que batia à minha porta desde antes que eu não me despertasse” (LACAN, 1964/1988, p. 58), é a partir dessas batidas apressadas que ele iniciava a construção de um sonho, que manifestava conteúdo diverso das batidas, mas em torno delas, e que reconstitui todo um conjunto de representações:
sei que estou ali, a que horas dormi, e o que buscava com aquele sono. Quando o barulho da batida acontece, não ainda para minha percepção, mas para minha consciência, é que minha consciência se reconstitui em torno dessa representação – de que eu sei que estou sob a batida do despertar, que estou knocked, em choque. (LACAN, 1964/1988, p. 51)
Com esse fenômeno, Lacan destaca o barulhinho, o pequeno ruído, e, através do instante experimentado sobre o choque do despertar, aponta a hiância, o estranho, que evidencia a oposição entre realidades diferentes. Algo muito diverso do que pode ocorrer na esfera dos sintomas e das fantasias ainda no circuito das repetições que surpreendem o sujeito.
A amplitude dos fenômenos na repetição entre realidades disjuntas foi evocada em Freud, no jogo do carretel no qual, ao lado da brincadeira da criança, surge o salto sobre o fosso que separa a borda do berço, salto que inscreve a falta no seio da representação simbólica diferenciadora da ausência – presença do Outro e localiza a angústia em outra dimensão. A repetição na brincadeira infantil, como os casos clínicos o demonstram, pode indicar uma lacuna a ser preenchida por uma palavra, mas o acontecimento imprevisto, sem sentido, na cena do sonho evocada por Lacan, tem ação de corte, surpresa, perplexidade, porque sem nome, indicativa do choque com o real.
As mudanças para os fundamentos da clínica decorrentes do “simples” exame do estatuto do inconsciente, a partir da outra modalidade de repetição, repercutem até a atualidade e ampliam a chance de trabalho com os difíceis casos clínicos atuais.
A importância do Seminário 11 de Lacan no diálogo com o texto “Lembrar, repetir, perlaborar” reside em reordenar os fundamentos da clínica psicanalítica a partir de nova perspectiva, considerando o real como experiência do inassimilável, tarefa que prosseguirá até seu último ensino.
Assim, demarca a diferença entre dois tipos de repetição propostas por Freud e Lacan: a que concerne à biografia, à história, ao que pode ser lembrado e associado aos modos diversos de satisfação, desconhecidos, mas passíveis de leitura a posteriori. Já o encontro com o acaso, o imprevisto, ou imprevisível, situará novamente a sessão analítica entre repetição e surpresa, em que o lapso convoca seu uso, e não sua interpretação; o acontecimento imprevisto repete como um raio que atinge um corpo, fora da apreensão pelas palavras. Esse outro tipo de repetição, também de dupla forma, separa o gozo incluído na cadeia de linguagem, como defesa, e o gozo fora da lei significante.
A sutileza de Lacan impressiona porque chama atenção para a radicalidade da repetição em situações cotidianas, aparentemente simples, que foram assinaladas anteriormente por Freud como a dimensão lúdica, ou seja, a repetição demanda o novo, mas a modulação é apenas deslizamento da alienação do seu sentido. O verdadeiro segredo do lúdico “é a diversidade mais radical que constitui a repetição em si mesma” (LACAN, 1964/1988, p. 62).
Um comentário de Zenoni (2022) ilumina essa radicalidade, ao lembrar a frase “o sujeito é sempre feliz”: todo acidente, acaso, reencontro, tudo é bom para a satisfação da pulsão porque ela se repete. O bom para a pulsão se justifica porque o gozo não conhece seu contrário, tal como ocorre com o desejo. A renúncia ao gozo é também um gozo enquanto um desejo realizado, é o oposto de um desejo não realizado. A marca de gozo, sempre a mesma, restará como irredutível, ineliminável. O interessante é o convite ao trabalho que pode tocar um falasser, advindo dos paradoxos da repetição.
Esse convite ao trabalho tem no depoimento de Marcos André Vieira (2019) esclarecimento fundamental sobre os efeitos de uma análise. O psicanalista se expôs ao risco da violência em evento no qual compareceu, acompanhado de seus filhos, à favela da Maré, local onde desenvolveu longo trabalho clínico que resultou em várias publicações de pesquisa. Na entrada foi interrogado, em cena que se repetiu, por dois adolescentes fortemente armados. Da cena, resta a sensação de estranheza. Após intervenção de seu analista, encontra a evidência, na repetição, do desejo inconsciente, que expõe, por seu turno, um gozo ligado ao perigo que carregava, um real acompanhado do afeto: “Quando alguém se depara com a estranheza de sua repetição, o gozo que a alimenta pode se deslocar” (VIEIRA, 2019, p. 32). Trata-se, nesse caso, do inconsciente como efeito de leitura do que se fala.
O trabalho clínico a partir do remanejamento de conceitos fundamentais não corresponde a uma elucubração de saber, mas opera como instrumento para “renovar nossa prática no mundo” (MILLER, 2014, p. 21), considerando a possibilidade de lidar com as contingências que atingem incessantemente um falasser e a responsabilidade implicada na extimidade da prática psicanalítica.