O ANALISTA ESSENCIAL[1]

IRENE ACCARINI
Psicanalista. Membro da Escola de Orientação Lacaniana-EOL/AMP | iairenela8@gmail.com

 

Resumo: Neste artigo, a partir de uma reflexão sobre as sessões analíticas a distância, a autora relaciona as noções da presença do analista e do objeto voz considerando que a experiência do inconsciente, desde Freud, é marcada pela forma com que a palavra afeta o corpo. Tendo em conta as mudanças impostas na rotina de todos pela pandemia do coronavírus, a autora relata efeitos subjetivos no que diz respeito à forma com que atos anódinos tornam-se atos de consciência constante e reflete sobre a prática da psicanálise enquanto restituidora da dimensão do inconsciente neste contexto de consciência exacerbada.

Palavras-chave: presença do analista; palavra; objeto voz; corpo falante; inconsciente.

Abstract: In this article, through a reflection about remote analytical sessions, the author relates the notions of presence of the analyst and the object voice, considering that the experience of the unconscious, since Freud, is marked by the way in which the word affects the body. Taking into account the changes imposed on everyone’s routine by the coronavirus pandemic, the author reports subjective effects in regard to the way in which anodyne acts become acts of constant consciousness and reflects on the practice of psychoanalysis as a way to restore the dimension of the unconscious, in this context of heightened consciousness.

Keywords: presence of the analyst; word; voice object; speaking body; unconscious.

 

Imagem: Jayme Reis

 

 

Oh, matemáticos, esclareçam seu erro!
O espírito não tem voz, porque onde
há voz, há corpo
Leonardo da Vinci

 

Tomando o fio condutor de algumas questões propostas nos números anteriores do boletim Discontinuidad, que colocam em jogo a voz do analista e a sua presença, é a experiência analítica e seu vínculo particular com o inconsciente o que me detém em minha reflexão — não há outra experiência como tal. Como faz Carmen González Táboas (2020) no Boletim XV, em que indaga: “a comunicação telefônica se sustenta na voz do analista; se, esvaziado do fantasma, ela opera palavra e silêncio, não seria este um lugar onde pode acontecer a presença real do analista?”.

Freud inicia sua experiência analítica desvendando cenas e histórias da vida cotidiana; é a vida cotidiana e seus acontecimentos de palavra que revelam a natureza do inconsciente e fundam a experiência analítica possibilitando, ali, um encontro inédito. É com o trabalho da palavra, como é falada e situada na escuta analítica, que a experiência do inconsciente se realiza. Poderá o psicanalista, como matemático, em seu cálculo transferencial, esclarecer o erro apontado pelo grande Leonardo? O parlêtre, o corpo falante, lhe dá razão, sem dúvidas. E faz do inconsciente uma voz não espiritual, mas substancial, carregada de substância gozante que, até mesmo nas sessões a distância, encontra seu lugar. Porque falar e pensar também são efeitos de corpo e afetam o corpo. “O pensamento, inclusive aquele tipo de pensamento que Freud chamou de inconsciente, sempre tem a ver com o corpo e, portanto, com sua sexuação”[2], reflete Miller (2013, p. 44) em Piezas Sueltas.

Claudia Pollak (2020), em seu texto publicado no boletim Discontinuidad XI, propõe pensar a sessão analítica na modalidade telefônica como um “campo sonoro” e nos lembra que a voz é como uma impressão digital, única para cada pessoa, e um reservatório libidinal.

Portanto, nestes tempos de análise a distância, as diversas tecnologias trazem-nos as vozes dos corpos falantes e levam nossa voz e nossa escuta discricionária ao encontro daquele que continua sintomatizando e sinthomatizante.

Além disso, na minha prática, posso encontrar angústias, fobias, insônias e ansiedades que os analisandos trazem como “nunca vividos”, algo singular que se instala após o confinamento pela perda dos hábitos cotidianos de cada um, e, para além dos modos singulares, pela fuga do sentido e impedimento de acesso às camadas exteriores do âmbito social, uma consciência rigorosa é instalada em seu lugar. Assim, as crianças que acompanham suas aulas pelo Zoom não têm um colega ao seu lado para distrair a sua atenção ou conseguir escapar imaginariamente para outro cenário fora do discurso escolar; os teletrabalhadores não têm um olhar oblíquo para fazer sua piada ou fugir do cotidiano, e tudo mais o que não estava investido de pensamento e era vazio de forma, hoje adquire o formato e a formulação de um estrito procedimento de assepsia tipo operatório — lavar escrupulosamente as mãos, não tocar no rosto, usar máscaras, limpar sapatos, tomar banho toda vez que volta da rua, etc. — tornando os atos anódinos um ato de consciência permanente. Essa consciência que, como bem disse Lacan, é algo que “se produz toda vez que é dada (…) uma superfície tal que possa produzir o que se denomina uma imagem” (LACAN, 1995, p. 68), ou seja, não é um lugar privilegiado na experiência humana nem mesmo é um fenômeno constante, mas contingente, reflexivo e ambíguo. E, pelo contrário, aqui e agora, adquire um relevo denso enchendo a vida de detalhes e causando um intenso apagamento subjetivo, difícil de suportar.

Tomando o belo conceito de “hospitalidade”, que Ramiro Trejo (2020) aponta em seu texto, hospedar o inconsciente é uma tarefa que não pode cessar nem ceder a nenhum vírus oportunista, mas sim encontrar a forma mais viva de presença, como também discorre Angélica Marchesini (2020) distinguindo o lugar do analista de sua presença enigmática. Entendo que é o próprio inconsciente, transferencial e real, que tece essa presença do analista, se este se serve de sua voz no novo campo sonoro da sessão… Tal como testemunha o sonho atual de uma analisante, que sonha que sua analista aparece no jardim de sua casa, a quem ela avista pela janela do quarto onde está dormindo. Despertar do Inconsciente para o inquietante da estranha familiaridade transferencial.

O “inconsciente depositado” mostra-se como saber indelével, do qual nos falou Éric Laurent (2019) nos comentários dos testemunhos de passe nas Jornadas “El Inconsciente aún” do ano passado. É escandaloso, afirmou Laurent, que o inconsciente não seja fugaz, mas tenha esse caráter de depositado” na Lalangue. E lá deve encontrar seu analista hospedeiro para fazer furo na Lalangue. O inconsciente é furado no ato analítico e não se esvazia, o que não é a mesma coisa.

Nós, analistas, e o discurso do qual nos valemos, portamos os meios essenciais para restituir o inconsciente ao mundo atual, atormentado por esses fenômenos de proliferação de atos de consciência para fazer ressoar a voz que resguarde os corpos falantes.
 

Tradução: Maria Amélia Tostes
Revisão: Ernesto Anzalone

Referências
TÁBOAS, C, G. (2020). Una elección forzada. Discontinuidad Nueva serie Nro. XV. Agosto 2020. Disponível em: https://es-la.facebook.com/EOLSeccionLaPlata/posts/compartimos-discontinuidad-nueva-serie-nxv/1398477443688683/ Acesso em: 09 jan. 2020.
LACAN, J. (1954-55). O seminário, livro 2: o Eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
LAURENT, E. Notas sobre su intervención al testimonio de Irene Kuperwajcs em Jornadas anuales de la Eol “El inconsciente aún”. Inédito. 2019.
MARCHESINI, A. (2020) Presencias. Discontinuidad Nueva serie Nro. IV. jul. 2020. Disponível em: https://es-la.facebook.com/EscuelaDeLaOrientacionLacanianaEol/posts/discontinuidad-nueva-serie-n-ivhttpwwweolorgarpublicacioneson_linediscontinuidad/3597576986938676/.  Acesso em: jan. 2020.
MILLER, J-A. (2004-2005). Piezas sueltas. Buenos Aires: Paidós, 2013.
POLLAK, C. (2020) Entonces… ¡A inventar! Discontinuidad Nueva serie, nº XI. Julio 2020.  Disponível em:  https://www.facebook.com/EOLSeccionLaPlata/posts/compartimos-discontinuidad-nueva-serie-n-xihttpwwweolorgarpublicacioneson_linedi/1387954574740970/ Acesso em: jan. 2020.
TREJO, R. (2020) Hacer con lo irremediable. Discontinuidad Nueva serie nº. XVI. Agosto 2020.  Disponível em: https://www.facebook.com/EscuelaDeLaOrientacionLacanianaEol/posts/3693626534000387  Acesso em: jan. 2020.
[1] Artigo originalmente publicado no Boletim Discontinuidad-Nueva Serie No. XXI, setembro de 2020. Disponível em: http://www.eol.org.ar/publicaciones/on_line/discontinuidad/images/ns_021.jpg?fbclid=IwAR3pqx5miheS4M_b1qu3dHBTZUSs0ZjJmT2VBCuFYQc5478uh8zkzLio6nQ Acesso em: 09 de jan. de 2020.
[2] Tradução nossa.