O CORPO: DO CLÍNICO AO POLÍTICO[1] 

 

ELAINE ROCHA MACIEL
Psicanalista, mestre em Educação pela UFMG
elainermaciel@yahoo.com.br

Resumo: A noção de corpo na psicanálise passou por redefinições ao longo da obra de Freud e do ensino de Lacan. Focaremos no último ensino de Lacan, em que o corpo é afetado por lalíngua. Um encontro traumático, derivado do choque entre língua e corpo, tendo como resultado um acontecimento de corpo e produção de efeitos de gozo. Um gozo fora do sentido, que se apresenta enquanto excesso e que deixa marcas no corpo, acontecimentos que são os sintomas. Esses sintomas manifestam-se de diversas maneiras na contemporaneidade. Trata-se de uma dimensão clínica articulada a uma dimensão política.

Palavras-chave: corpo; lalíngua; acontecimento de corpo; sintoma; política.

The body: from the clinician to the political

Abstract: The notion of body in psychoanalysis underwent redefinitions throughout Freud’s work and Lacan’s teaching. We will focus on Lacan’s last teaching, in which the body is affected by lalangue. A traumatic encounter, derived from the clash between language and body, resulting in a body event and producing effects of jouissance. A jouissance outside of meaning, which presents itself as an excess and which leaves marks on the body, events that are the symptoms. These symptoms manifest themselves in different ways in contemporary times. It is a matter of a clinical dimension articulated to a political dimension.

Keywords: body; lalangue; body event; symptom; policy

 

 

Desde o início da psicanálise, Freud se dedicou à difícil relação entre o sujeito e o seu corpo, quando do seu encontro com os sintomas corporais presentes na clínica da histeria. As conversões histéricas se referiam ao recalque, que, num primeiro momento, apoiava-se somente nas representações. Posteriormente, Freud percebeu que havia algo para além das representações, passando a considerar essas perturbações conversivas a partir da pulsão. Tratava-se de um corpo atravessado pelo real. Esse atravessamento indicava uma outra causalidade, referindo-se à existência de um corpo libidinal. Quer dizer, não se tratava tão somente de que as histéricas endereçassem sua fala ao Outro para ser decifrada, em busca de uma verdade que o recalque recobria, mas sim de um falar com seu corpo, advindo da marca nesse corpo (MILLER, 2004, p. 51).

Passa-se de uma lógica da representação para uma lógica da pulsão, fazendo surgir uma outra concepção de sintoma e uma nova noção de corpo. Miller (2004), em Biologia lacaniana e acontecimento de corpo, destaca em Freud uma articulação entre essas duas lógicas: “atrás das representações, há as pulsões. As pulsões se exprimem pelas representações. É a sua maneira de nos apresentar uma conexão do significante e do gozo. Em sentido próprio, o recalque recai sobre as representações, mas também sobre as pulsões” (MILLER, 2004, p. 55).

As investigações de Freud sobre a sexualidade infantil também corroboraram com a ruptura da concepção restrita de corpo biológico. Ela trouxe à tona o corpo pulsional e evidenciou que há algo que escapa ao domínio do saber, saber esse inerente ao corpo biológico. Seguindo nas suas construções, Freud se deparou com a fragmentação do corpo nas psicoses e com os fenômenos, derivados dessa fragmentação, que afetam o corpo. Essas construções fundamentaram a sua teoria do narcisismo e da constituição do eu.

A noção de corpo na psicanálise passou por redefinições ao longo da obra de Freud, bem como do ensino de Lacan, considerando a subjetividade de cada época. Em Lacan, primeiramente, tínhamos o corpo relacionado à sua forma, ou seja, encontrava-se ligado à imagem, sendo sua referência o estágio do espelho. Com isso, o gozo era da ordem imaginária, sendo governado pela articulação simbólica. Sobre esse momento, Miller diz que “O eixo do interesse de Lacan não é o acontecimento de corpo, é a irrupção do símbolo no real. Sua questão é saber como o significante vem a se desencadear no real. É uma questão que é, essencialmente, da parte do sujeito do significante” (MILLER, 2004, p. 56). A lógica em questão era a das estruturas significantes que decorrem do Outro, sendo o inconsciente estruturado como uma linguagem.

 

O sintoma como acontecimento de corpo

No último ensino de Lacan, o corpo ganha um novo e significativo estatuto na sua relação com o gozo, o que acarreta uma orientação da clínica em direção ao real. Trata-se de um corpo afetado por lalíngua, ou seja, uma língua que precede à linguagem e que impacta o corpo. Segundo Miquel Bassols, lalíngua é “definida pela substância gozante veiculada pelo significante, uma substância que toca o real do corpo. O real de lalíngua dá corpo à imagem” (BASSOLS, 2016, p. 13).

Esse encontro traumático, derivado do choque entre língua e corpo, tem como resultado um acontecimento de corpo. O acontecimento de corpo é o impacto do significante, que opera fora do sentido, sobre o corpo, marcando-o e produzindo efeitos de gozo. “Trata-se de um acontecimento produzido por um encontro que não responde a nenhuma lei prévia, impossível de ser abolido, um gozo silencioso e fixado de uma vez por todas, que não cessa e que também não tem por que, mas que se reitera” (MANDIL, 2014, p. 01).

Essa presença significativa da dimensão do real do corpo muda o estatuto do inconsciente e leva Lacan a propor a substituição do termo “inconsciente freudiano” por “falasser. Sobre essa substituição, Miller (2016), em O inconsciente e o corpo falante, propõe “tomá-la como índice do que muda na psicanálise no século XXI, quando ela deve levar em conta outra ordem simbólica e outro real diferentes daqueles sobre os quais ela se estabelecera” (MILLER, 2016, p. 06).

Enquanto o inconsciente freudiano tem relação com a consciência e está articulado ao sentido, o falasser se refere ao acontecimento de corpo, o que leva Miller a dizer que falar com seu corpo caracteriza o falasser (MILLER, 2004, p. 51). O falasser não é o corpo que fala, pois a fala não tem relação com a função cognitiva do corpo, uma vez que a língua não está ligada ao aprendizado. Se assim o fosse, existiria, a princípio, um ser, e, posteriormente, esse ser adquiriria a capacidade de falar. De outra maneira, a estrutura de linguagem antecede ao sujeito, enquanto corpo e enquanto ser. Ela é a condição do corpo falante. Por isso, a língua não se aprende, mas se transmite, a partir de uma experiência de gozo que atravessa o corpo.

Isso tem como efeito a separação entre o corpo e o ser. É justamente por não se reduzir ao seu corpo que o humano se distingue do animal. O animal identifica o ser e o corpo, ele é um corpo, fazendo com que o seu saber esteja nesse corpo. Diferente disso, o humano não é o corpo, ele o tem. Não se trata somente de uma imagem especular do corpo, mas, como nos afirma Bassols, “principalmente uma experiência de ter um corpo como unidade na qual se localiza uma satisfação pulsional, uma experiência de gozo” (BASSOLS, 2016, p. 13).

Um gozo opaco, por ser fora do sentido, e que se apresenta no corpo enquanto excesso. Ele deixa marcas no corpo, acontecimentos que são os sintomas. Trata-se de um sintoma que se diferencia do sintoma entendido como formação do inconsciente estruturado como uma linguagem. Ele não se refere à metáfora, ou seja, a um efeito de sentido passível de ser decifrável e que revela um desejo inconsciente. Diferente disso, o sintoma de um falasser é um acontecimento de corpo. Éric Laurent descreve o acontecimento de corpo como sendo “‘tudo o que chega’, com uma dimensão de surpresa ou de contingência, antes que se possa estabelecer o sentido desse encontro. Apresentar assim o sintoma é acentuar sua dimensão fora do sentido” (LAURENT, 2016, p. 50). Trata-se do sintoma enquanto efeito de lalíngua diretamente sobre o corpo, produzindo efeitos de gozo. O fora de sentido do sintoma decorre da sua dimensão corporal, sendo que, mesmo separado, o corpo sofre efeitos do discurso.

Concomitantemente ao gozo do corpo, que se refere a um gozar de si mesmo, o falasser comporta também o gozo da fala. Sobre isso, Miller afirma que “O falasser tem que se haver com seu corpo como imaginário, assim como tem que se haver com o simbólico. O terceiro termo, o real, é o complexo ou o implexo dos dois outros” (MILLER, 2016, p. 09).

Assim como o ser só existe enquanto tal na medida em que fala, o ser também só tem um corpo na medida em que fala ou é falado pelo Outro. Ter um corpo, como vimos, implica em uma experiência de gozo, sendo que esse atravessamento do corpo pela linguagem produz uma operação de extração do que Lacan chamou de objeto a. Isso marca um gozo interdito, que perde seu caráter ilimitado e inaugura a cadeia de significantes (S1 – S2), possibilitando uma conexão entre o objeto e a função fálica.

Portanto, “a extração do objeto é a condição para que o sujeito tenha acesso à dimensão do Outro, para a incorporação do corpo simbólico e para sua inscrição num discurso” (BARROSO, 2014, p. 134). Essa operação de extração faz com que o objeto a torne causa de desejo. Ser causa de desejo significa que houve a incidência da falta do objeto no campo do Outro, assegurando a função de castração. Vemos então que, com a operação de castração, há uma separação, no imaginário, do gozo. Temos aí um gozo que se lança para fora do corpo, que Lacan identificou como gozo fálico. Nesse contexto, a falta se presentifica enquanto vazio central da estrutura e da amarração dos registros: real, simbólico e imaginário. Isso significa que o objeto a se localiza na interseção desses três registros, ordenando a estrutura do ser falante. A psicanálise lacaniana aborda o corpo segundo esses três registros, que corroboram para que se tenha um corpo e dele se faça uso.

Por outro lado, quando não há a extração do objeto a, este é impedido de se alojar no campo do Outro, não se configurando como causa de desejo, mas permanecendo como puro gozo que irrompe no corpo. Nesse contexto, há a junção do significante e do gozo (S1 = a) ou (S1 sozinho). O objeto permanece enquanto substância gozante, uma vez que ele não foi negativizado, o que seria obtido pela operação de castração. Sem a inscrição do objeto no discurso, não há a sua articulação à função fálica. Sem a significação fálica, faz-se presente uma instabilidade radical e constante do ser.

A irrupção do gozo no corpo acarreta a manifestação de variados fenômenos corporais, bem como de sentimentos de horror e de perplexidade. É o que vemos na clínica das psicoses, em que se encontra em destaque a questão da fragmentação, da dispersão e da inconsistência do corpo. Um corpo que está sempre sob ameaça de se desprender, de não se sustentar como uma unidade. A ele falta uma significação que o possibilite dar uma resposta sobre o seu ser, o que o impede de constituir como quem tem um corpo. Daí decorre a dificuldade desses sujeitos em construir uma certa unidade do corpo, pois muitas vezes se encontram à mercê do real do gozo do corpo. Por isso, Miller afirma que “o sintoma como acontecimento de corpo é altamente suscetível de ser posto em evidência na psicose (MILLER, 2004, p. 55).

Entretanto, a problemática decorrente de um gozo que afeta o corpo está posta não somente na clínica da psicose, ela é independente da estrutura. Cada um sofre os efeitos desse retorno do gozo no real de forma particular e nenhuma construção, seja ela qual for, dá conta do sem sentido que lhe afeta.

 

Uma dimensão política

Mais além de um sujeito fruto da articulação significante, em que o ser é efeito de sentido, há o acontecimento de corpo. Isso nos faz deparar com uma variedade de novos sintomas que decorrem desse impacto da língua sobre o corpo. Esses sintomas manifestam-se de diversas maneiras na contemporaneidade. Trata-se de uma dimensão clínica articulada a uma dimensão política.

Lacan (1966-67), em seu Seminário Lógica da fantasia, afirma que o inconsciente é a política. Trata-se de uma construção de que o inconsciente não está articulado ao pai, mas que se apresenta como algo a ser definido. Essa construção provém de uma leitura da identificação, mecanismo político por excelência, a partir do acontecimento de corpo, ou seja, numa lógica do ilimitado do gozo. Um gozo sem lei, que se sobrepõe aos ideais. Por ser ilimitado, ele não se curva a nenhuma regulação, sendo soberano o imperativo ao gozo.

A partir da expressão “o inconsciente é a política”, Laurent extrai a concepção de inconsciente político, fazendo uma articulação ao acontecimento de corpo:

“A extensão da perspectiva do inconsciente político ao falasser nos leva aos limites do questionamento psicanalítico sobre a relação do sujeito com o discurso. Ao centrá-lo sobre o acontecimento de corpo e não sobre uma identificação, (…) o sujeito se mantém fora da garantia do ‘complexo de Édipo’. É preciso então confrontar o risco da identificação como delirante (…).  Com o acontecimento de corpo, retira-se a identificação ao Pai e se desnudam (…) os acontecimentos de gozo mais além da castração” (LAURENT, 2016, p. 219).

Sem a identificação paterna, não é mais pelos ideais que acontece o laço entre o corpo e o Outro, mas sim pelo acontecimento de corpo. Devido a essa conexão direta com o que afeta o corpo, Miller considera que o laço social na atualidade é o sintoma e, portanto, carrega em si o gozo. 

 


Referências 
BARROSO, S. F. As psicoses na infância: o corpo sem a ajuda de um discurso estabelecido. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2014.
BASSOLS, M. “Corpo da imagem e corpo falante”. In: Scilicet: o corpo falante, sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016, p. 12-15.
LACAN, J. (1966-67) Logica del fantasiaInédito
LACAN, J.  (1972-73) O seminário, Livro 20: mais, ainda, Rio de Janeiro: Jorge Zahar  Ed., 1985.
LACAN, J. (1975-1976) O seminário, Livro 23: o sinthoma, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
LAUREN, E. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016.
MANDIL, R. “Há um acontecimento de corpo”. Opção Lacaniana online, n.13, março 2014. Disponível em:           <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_13/Ha_um_acontecimento_de_corpo.pd>. Acesso em 02/03/2022.
MILLER, J.-A. “Biologia Lacaniana e acontecimento de corpo”. In: Opção Lacaniana, n. 41. São Paulo: Eólia, 2004. Tradução: Ana Lúcia Paranhos Pessoa.
MILLER, J.-A. “Un-cuerpo”. In: El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2020..
MILLER, J.-A. “O inconsciente e o corpo falante”. In: Sciliceto corpo falante, sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016.
SANTIAGO, J. “Transferência e acontecimento de corpo: suposto-saber-ler de outra forma”. Curinga, Escola Brasileira de Psicanálise – Minas Gerais, n. 47, 2019, p. 47-60.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Direito – Seção Clínica do IPSM-MG, em 18/03/2022