O HOMEM E UMA MULHER E O IMAGINÁRIO
LÍVIA SERRETTI AZZI FUCCIO
Psicanalista em formação (Aluna do IPSM-MG), técnica em assuntos educacionais (IFMG).
Mestre em Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade (UNIFEI).
Especialista em Elaboração, Gestão e Avaliação de Projetos Sociais (UFMG). Pedagoga (UniBH). livsazzi@gmail.com
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Resumo
Este trabalho busca localizar as disjunções da histeria e da feminilidade no diário de Anaïs Nin (1931–1932/1986). Para tanto, serão demarcados três posicionamentos: (I) a posição de Anaïs diante de June, ao elegê-la como A mulher; (II) o papel que Henry Miller encarna para Anaïs, como o semblante do homem ideal; e (III) o diário como sintoma da elaboração do que fazer diante da não relação sexual.
Palavras-chave: Histeria, feminilidade, semblantes do feminino.
Abstract: This paper seeks to locate the disjunctions of hysteria and femininity in Anaïs Nin’s diary (1931–1932/1986). To this end, three positions will be demarcated: (I) Anaïs position towards June, by electing her as The Woman; (II) Henry Miller’s role for Anaïs as the ideal man’s semblance; (III) the diary as a symptom of the elaboration of what to do in the face of non-sexual relations.
Keywords: Hysteria, femininity, feminine semblance.7
Sobre o peso do meu corpo – Barbara Schall
Começo servindo-me da frase “Um homem e uma mulher e a psicanálise”, que Lacan (2009) utilizou para intitular um dos capítulos do Seminário 18. Ao parafraseá-lo no título do presente artigo, substituo “um homem” por “o homem” e “a psicanálise” por “o imaginário”. A escolha desse título se deu não apenas pela inspiração que me tirou da inércia para iniciar este texto, mas, sobretudo, por parecer-me adequada ao enquadramento que proponho aqui: analisar as construções de Anaïs Nin (1931–1932/1986) acerca do feminino em Henry, June e eu: diários não expurgados 1931-1932, no qual a autora utiliza a escrita como forma de elaborar o seu processo de tornar-se mulher.
Cabe salientar que, em “De um discurso que não fosse semblante”, Lacan (2009) irá situar o leitor em três capítulos diferentes, nos quais ele destaca os seguintes enunciados: “O homem e a mulher”, “O homem e a mulher e a lógica” e “Um homem e uma mulher e a psicanálise”. Dando atenção a isso, busquei compreender qual dessas nomeações seria mais apropriada para demarcar essas diferenças, e, ainda, em que medida essas noções ajudam a localizar, nas descrições feitas no diário íntimo de Anaïs, o modo como ela tentará resolver o enigma do feminino, partindo da hipótese de que o seu interesse por Henry e por June se desenvolve numa construção especular de homem e mulher. Posto isso, questiono: qual homem e qual mulher ela irá buscar nesses personagens?
Em “O homem e a mulher”, Lacan (2009) vai dizer que a mulher é precisamente a hora da verdade para o homem, quer seja, diferentemente dos termos “homem” e “mulher”, que demarcam a identidade de gênero, o que define o homem é a sua relação com a mulher, e vice-versa. Se essa relação existe, existe pela via de suporte de um semblante. No capítulo intitulado “O homem e a mulher e a lógica”, Lacan (2009) aconselha estudar a carta/letra, destacando a estrutura de ficção da verdade no conto “A carta roubada”, de Edgar Allan Poe, na medida em que testemunha o ponto em que a ficção tropeça e se articula com a linguagem: a acentuada deficiência de certa promoção da relação sexual. Ele diz que a relação sexual fracassa ao ser inscritível na linguagem, precisamente porque a inscrição efetiva do que seria a relação sexual teria que relacionar os dois polos “homem” e “mulher”, termos estes que, em função da lógica, marcam o impasse sexual. Já no capítulo “Um homem e uma mulher e a psicanálise”, faço os seguintes destaques: é num discurso que, sendo homens e mulheres, têm que se valer como tais; só há discurso de semblante, e este só se anuncia a partir da verdade, que, como tal, só pode dizer o semblante sobre o gozo.
Neste último capítulo aqui referenciado — que, na verdade, é o capítulo IX do Livro 18 — para designar um homem e uma mulher, juntamente com a psicanálise, Lacan enuncia a histérica como aquela que conjuga a verdade de seu gozo com “o seu saber implacável de que o Outro apropriado para o causar é o falo, ou seja, um semblante” (2009, p. 143). Em sequência, Lacan enfatiza que a histérica se atribui daqueles que ela finge serem detentores desse semblante, ao menos um — o qual Lacan teve necessidade de reescrever como ahomenozum. Todavia, há um problema, visto que, como Lacan pontua, “a histérica não é uma mulher” (2009, p. 145). Desse ponto, buscará saber se a psicanálise dá acesso a uma mulher.
Não proponho, aqui, psicanalisar os diários de Anaïs Nin, mas sim investigá-los, partindo dessa definição negativa de histeria, já que a histérica não é uma mulher, tal como aponta Márcia Rosa (2019, p. 76): “tornar-se mulher implica ter atravessado a histeria”, e acrescenta: “Há, portanto, uma disjunção entre os dois campos: da histeria e da feminilidade”.
Considerando tal distinção, desenvolverei este trabalho buscando localizar as disjunções da histeria e da feminidade nas descrições dos personagens Henry e June no diário de Anaïs Nin, correspondente aos anos de 1931-1932. O enredo, embora não seja o motivo da análise, permite a organização de três posicionamentos. Estes, sim, motivam a presente investigação, quais sejam: (I) a posição de Anaïs diante de June ao elegê-la, em suas palavras, “a única mulher que já correspondeu às exigências de minha imaginação”; (II) o papel que Henry Miller encarna para Anaïs quando ela diz sobre o casal: “Eles dois fazem parte de mim: a mulher que age como Henry e a mulher que sonha em agir como June” (1986, p. 91); e (III) o diário personificado como o seu fiel confidente, o sintoma de Anaïs: “O diário é produto de minha doença, talvez uma acentuação e um exagero dela” (p. 136) — é nele que Anaïs elabora suas descobertas e desordens em relação à sexualidade, é por meio dele que vai se dando conta do impossível da linguagem e do que fazer diante da não relação.
Quanto ao primeiro posicionamento, recorro ao clássico caso de Freud: “Quando Dora falava sobre a Sra. K, costumava elogiar seu ‘adorável corpo alvo’ num tom mais apropriado a um amante do que uma rival derrotada” (2006, p. 65, grifos do autor). Em paralelo, cito Anaïs ao referir-se a June: “Um rosto surpreendentemente branco, olhos ardentes, a esposa de Henry” (1986, p. 18). Em “Intervenção sobre a transferência”, Lacan (1998) vai constatar, como o próprio Freud reconheceu, que, durante muito tempo, não pôde deparar com essa tendência homossexual, tão constante nas histéricas, justamente pelo preconceito em considerar a primazia do personagem paterno.
Marie-Hélène Brousse (2015), em “A homossexualidade feminina no plural ou Quando as histéricas prescindem de seus homens testa de ferro”, explica que a homossexualidade é claramente indicada por Freud como um elemento-chave do caso Dora e da histeria em geral, sob a forma de tendência inconsciente não culminada num ato sexual. O texto de Brousse contribui para a localização desse elemento-chave do caso Dora: “O interesse homossexual de Dora pela Senhora K. decorre de sua própria questão sobre o que é a mulher, saber sobre o feminino que ela considera não ter e que ela atribui a essa Outra mulher” (2015, p. 3).
Esse elemento também pode ser destacado no interesse de Anaïs por June e em suas tentativas de vincular os semblantes a algum significante de difícil apreensão. Por não ter o falo, ela busca vincular-se àquilo que ela crê que o possua, a posição masculina: “No final da noite eu era como um homem, terrivelmente apaixonado por seu corpo, que prometia tanto, e odiava o eu criado nela por outros” (NIN, 1986, p. 17).
Anaïs percebia que “o eu de June criado nos outros” nem sempre correspondia a sua June imaginária. Por exemplo, ao avistar June caminhando em sua direção, ela indaga em seu diário: “O homem no American Express não vê a maravilha que ela é?” (NIN, 1986, p. 20). Fatos como esse suscitaram-na a escrever: “Tinha medo de ficar ali exatamente como ficara em outros lugares, observando a multidão e sabendo que nenhuma June apareceria porque June era um produto de minha imaginação” (Ibid., p. 20).
Em “Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina”, Lacan (1998) vai dizer que, tal como o amor cortês, que se gaba de ser quem dá aquilo que não tem, “é exatamente isso que a homossexual se esmera em fazer no tocante àquilo que lhe falta”. A escolha homossexual na mulher não é uma escolha que elege um objeto incestuoso às custas do seu sexo, mas sim um impasse diante do inaceitável de que “esse objeto só assuma seu sexo às custas da castração”. Ele prossegue: “Em todas as formas, mesmo inconscientes, é sobre a feminilidade que recai o interesse supremo” (LACAN, 1998, p. 744).
Esse interesse supremo pela feminilidade na histeria é sintetizado por Brousse (2015), no caso Dora, pelo processo de identificação estabelecido por Dora ao Sr. K ou ao seu pai:
“A ligação com os homens, com o Senhor K. ou com seu pai resulta, portanto, de uma identificação ao amor e ao desejo deles por uma mulher, que permite concluir que esta, contrariamente a ela mesma, é uma verdadeira mulher e detém a chave de um saber que ela não tem. Lacan qualifica essa posição dos homens na estrutura histérica: são os “testas de ferro” do sujeito histérico, testas de ferro de seu desejo pelo feminino. Ela deve passar por eles, pelo amor e pelo desejo deles por outra para ter acesso a uma feminilidade idealizada. O benefício é duplo: evitar ser ela mesma submetida às regras que organizam a posição feminina no discurso do Mestre e elevar o feminino à dignidade de um ideal possível de ser universalizado. Em suma, evitar ser, por ela mesma e para ela mesma, “a mulher de sua vida” e, portanto, inventar uma solução feminina que não valeria senão para ela mesma” (Brousse, 2015, p. 3, grifos meus).
Embasada nas inversões dialéticas expostas por Freud (2006) no caso Dora, destacadas e desenvolvidas em “Intervenção sobre a transferência”, em Escritos, por Lacan (1998), bem como nas contribuições de Brousse (2015), em “A homossexualidade feminina…”, e de Rosa (2019), sobre “O que restou da neurose histérica em Dora? Histeria e feminilidade”, posso afirmar, a partir do diário de Anaïs Nin, que há, no registro escrito da diarista, o enredo de uma escolha amorosa homossexual orientada para além do Édipo, quer seja, orientada pelo modo enigmático que a feminilidade se encarna para uma outra.
Tanto Dora quanto Anaïs colocam, respectivamente, o Sr. K e Henry como testas de ferro do desejo feminino. Assim como Dora, de acordo com Freud, “invejava o pai pelo amor da Sra. K e que não perdoava à mulher amada a desilusão que esta lhe causara” (2016, p. 66), Anaïs indaga em seus diários: “Será que amo Henry porque me identifico com ele e com o seu amor e posse de June?” (1986, p. 90). No entanto, ao que toca a identificação, diferentemente de Dora, que posicionava K apenas como um intermediário, e não como o homem com o qual ela vai sustentar um relacionamento como amante, Anaïs elege Henry o semblante do homem ideal e interessa-se por investigar como ser mulher para esse homem. Para isso, tenta assumir especularmente a posição masculina e, como um homem, investigar aquilo que aquela mulher tem e que interessaria a esse homem: “a amaria por sua beleza enquanto ela poderia me amar como se ama um homem, por seu talento, seu desempenho, seu caráter” (NIN, 1986, p. 90-91). Trata-se, aqui, de localizar o segundo posicionamento entre a histeria e a feminilidade de Nin.
Por fim, o último posicionamento de Anaïs. Ainda servindo das aproximações e diferenças com o caso Dora, esta, enquanto paciente de Freud, apresenta uma complexidade de sintomas no corpo que o próprio médico vai correlacionar como causados pelas desordens da vida psicossocial e “expressão dos seus mais secretos desejos recalcados” (FREUD, 2016, p. 19). Não pude localizar tais sintomas relacionados ao corpo nessa parte do diário sobre Henry e June, correspondente aos anos de 1931-1932. Ao que parece, os sintomas de Anaïs são seus próprios escritos. É no diário que Anaïs Nin elabora suas questões sobre a sexualidade e sobre o que fazer com essa June, sua June, pela qual ela nutria, em vão, a esperança de ver desmascarada. O que há é apenas uma June, uma June pelo que ela é, por si mesma, e, consequentemente, vê instaurada a falta em Henry e em si própria:
“Ontem à noite eu chorei. Chorei porque o processo pelo qual me tornei mulher foi doloroso. Chorei porque não era mais uma criança com a fé cega de uma criança. Chorei porque meus olhos estavam abertos para a realidade — para o egoísmo de Henry, para o amor de June pelo poder, para minha criatividade insaciável que deve preocupar-se com outras pessoas e não consegue ser suficiente a si mesma” (NIN, 1986, p. 177).
Paralelamente a essas descobertas, Anaïs vai arranjando, pela escrita, não apenas sua impotência diante de si mesma, decorrente da castração, mas, principalmente, vai tentando fazer com as palavras, intuitivamente, alguma amarração para o seu gozo.
Referências
BROUSSE. M-H.“A homossexualidade feminina no plural ou Quando as histéricas prescindem de seus homens testa de ferro” 2015. Trad. Márcia Bandeira. Disponível em: http://almanaquepsicanalise.com.br/wp-content/uploads/2015/08/brousse.pdf Acesso em: 18, set. 2019.
Freud, S. (1905). Fragmento da análise de um caso de histeria. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 2016.
LACAN, J. (1951). “Intervenção sobre a transferência”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. (1960). Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. (1971). O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
NIN, A. Henry, June e eu. Diários não expurgados 1931-1932. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1986.
ROSA, M. “O que restou da neurose histérica em Dora? Histeria e feminilidade”. Por onde andarão as histéricas de outrora. Belo Horizonte: Edição da autora, 2019.