O INFANTIL

Hélène Bonnaud[1]
Psicanalista em Paris
Analista Membro da Escola (AME), Membro da École de la Cause Freudienne (ECF) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
E-mail: helene.bonnaud4@orange.fr

 

Desde Freud, a criança é um sujeito que aloja um inconsciente. Dizemos que há inconsciente desde que haja discurso do Outro. O bebê, desde seu nascimento, é tomado na fala do Outro. Sua dependência em relação aos pais é dupla: é vital nos primeiros anos de vida, pois, como diz Lacan (1949/1998, p. 429), o bebê vem ao mundo em uma “prematuração do nascimento”. Sua sobrevivência depende inteiramente dos cuidados do Outro. Essa dependência total não deve ser subestimada. Ela funda elementos cruciais que se inscreverão no destino da criança.

Isso fala

Em latim, chama-se infans aquele que não fala, aquele que é dependente do Outro, que ainda não adquiriu a linguagem. O infantil refere-se justamente a esse estatuto singular do sujeito. A criança que não fala era aquela cuja palavra não tinha estatuto jurídico reconhecido. Não faz muito tempo que a fala da criança passou a ser escutada, levada em conta e protegida por direitos – aqueles estabelecidos pela Convenção sobre os Direitos da Criança em 1989, que regulamenta essas questões. Sua palavra conta enquanto sujeito – não a advir, mas enquanto sujeito falante. Isso se conecta com o fato de que, para a psicanálise, mesmo aquele que não fala, não deixa de ser um corpo falante. Lacan destacou com precisão que a criança é falada pelo Outro muito antes de vir ao mundo. E essa palavra, ao mesmo tempo em que é recebida do Outro, a aprisiona. O fato de ser tomada pela linguagem antes mesmo de seu nascimento levanta questões fundamentais: O que é o sujeito do inconsciente? Ele existe antes do nascimento? O que é o nascimento senão essa captura pela linguagem do infans concebido por um par de falasseres? Sua “prematuridade” não o impede de ter acesso ao que lhe é dito, mesmo que não o compreenda. É isso que Freud chamou de inconsciente, um lugar de onde isso fala,  sem que o sujeito saiba. Lacan (1954/1998, p. 381) o formalizou em seu aforismo “o inconsciente é o discurso do Outro”, que indica que o Outro precede o sujeito e que o inconsciente é seu resultado. “De seu encontro com a linguagem, o sujeito sai esmagado, soterrado sob o significante que o oprime […]. Eis o entre-dois, recalcado, deslizante, ek-sistente, sujeito barrado e que se barra”, escreve Jacques-Alain Miller (2013, p. 10). Esse encontro faz um trauma. É tanto aquele que remete ao fato de que “as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer”, como fala Lacan (1975-76/2007, p. 18) ao teorizar o fim da análise, quanto aquele que provoca o fato de o autista não falar. O fato dele não falar não significa que ele não escute. Aliás, Lacan (1975/1998) surpreendeu seu público em 1975 ao afirmar que autistas são “sobretudo verbosos”. Isso indica que o autista, assim como o infans que ainda não fala, está capturado pela linguagem. A diferença reside no fato de que a criança, ao ouvir os significantes invadindo seu corpo, os utilizará para fazer apelo ao Outro e demandar sua presença. O autista, por sua vez, não faz apelo ao Outro. O homem “é prisioneiro da linguagem, e seu estatuto primordial é o de ser objeto. Causa do desejo de seus pais, se tiver sorte. Se não tiver, resto de seus gozos” (MILLER, 2013, p. 11). Causa do desejo de um lado, resto de seus gozos de outro, “A criança realiza a presença do que Jacques Lacan designa como objeto a na fantasia” (LACAN, 1969/2003, p. 370). Ela é o objeto a que não conseguiu agarrar-se a um S1 que o representaria na cadeia significante. Ela permanece fora da cadeia.

Isso goza

O infantil caracteriza tanto a neurose, quanto a psicose. Encontramos o traço do infantil em ambas as estruturas. Da mesma forma, a perversão – considerando a predisposição da criança à perversão polimorfa descrita por Freud (1905/2020, p. 70) – revela a precocidade do gozo sexual na criança. O que se nomeia “infantil” não designa a criança como pessoa, mas seu conceito enquanto aquilo que concerne ao real do sintoma na experiência analítica. A sexualidade é esse real descoberto por Freud. O escândalo que essa descoberta provocou – e continua a provocar – relaciona-se com o impossível do qual ele faz sintoma. É um impossível mesmo que hoje em dia se apreenda a sexualidade infantil pelo trauma do abuso. Se a sexualidade infantil não é mais negada, ela tende hoje a ser estigmatizada como abusiva quando manifesta nos atos dos adultos (incesto, violação) ou nas interações entre crianças (carícias precoces). Esses abusos, hoje reconhecidos pela justiça, não devem ocultar a existência de uma sexualidade infantil que é estrutural. A criança descobre a sexualidade primeiro em seu próprio corpo, antes de se interessar pelo corpo do outro. Para Freud, o traumatismo é sexual. No início de sua prática com as histéricas, Freud se surpreendeu ao identificar que os primeiros sintomas que organizam a neurose do adulto se situam na primeira infância. Ele descobre o vínculo primordial entre sintoma histérico e trauma infantil. A infância é marcada por cenas que deixaram traços indeléveis. O recalque é o mecanismo que permite uma preservação desses conteúdos de gozo, que são as cenas traumáticas. É nessa articulação que se situa a junção entre os tempos da infância e da vida adulta. Não há continuidade temporal, mas, ao contrário, uma descontinuidade, que revela que o sintoma do adulto se constrói simultaneamente a partir da neurose infantil e através da contingência dos eventos vividos pelo sujeito. O recalque serve para protegê-lo, mas ele é também o guardião do traço traumático. Nesse sentido, a cena sexual é sempre um acontecimento que guarda a excitação experimentada durante o ato. Rememorá-la significa recuperar uma parte do gozo que se produziu nela e que serviu para a construção do sintoma.

Se, para Dora, o trauma gira em torno da chamada “cena do lago”, para o Homem dos Lobos trata-se de uma lembrança que deixará marcas indeléveis, as quais Freud utiliza para interrogar o conceito de castração. A criança nem sempre permanece no adulto – fórmula que não quer dizer muita coisa –, mas aquilo que persiste e permanece ativo da infância ressoa no sintoma de um corpo falante. O que dizer, por exemplo, do sintoma de Dora de chupar o dedo, que marca a fixação em um gozo oral que decorre do autoerotismo (sugar o polegar), mas que também envolvia a ação de puxar a orelha de seu irmão, sentado tranquilamente ao seu lado? Freud (1905[1901]/2020) observa que “trata-se de um modo completo de satisfação de si mesmo através da sucção”. O polegar, por um lado, e a orelha do irmão, por outro, constituem um gozo oral cuja manifestação é ilustrada em seu sintoma de afonia e posteriormente no de tosse. Lacan (1951/1998, p. 356) identifica essa cena como “a matriz imaginária em que vieram desaguar todas as situações que Dora desenvolveu em sua vida” – no que diz respeito às relações entre homem e mulher. Evidencia-se, assim, o indício de uma escolha de objeto determinante, desde que ela pôde recuperar essa primeira lembrança em sua análise.

O infantil escreve a importância daquilo que permaneceu fora de sentido para o sujeito e que ressurge na análise do adulto como um acontecimento de gozo. O infantil é um nome do real na experiência analítica.

 

Tradução: Letícia Mello
Revisão: Cristina Drummond
Referências
FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos. In: Obras Completas. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, Vol. 6, 2016, p. 13-172. (Trabalho original publicado em 1905).
FREUD, S. Fragmento de uma análise de um caso de histeria (Caso Dora). In: Histórias clínicas: cinco casos paradigmáticos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. p. 29-172. (Trabalho original publicado em 1905 [1901]).
LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 96-103. (Trabalho original proferido em 1949).
LACAN, J. Intervenção sobre a transferência. In: Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 214-225. (Trabalho original proferido em 1951).
LACAN, J. Introdução ao comentário de Jean Hyppolite sobre a “Verneinung” de Freud. In: Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 370-382. (Trabalho original publicado em 1954).
LACAN, J. Conferência em Genebra sobre o sintoma. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 23, p. 6-16, dez. 1998. (Trabalho original proferido em 1975).
LACAN, J. Nota sobre a criança. In: Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 369-370. (Trabalho original proferido em 1969).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
MILLER, J.-A. Préface. In: BONNNAUD, H. L’Inconscient de l’enfant. Du symptôme au désir de savoir. Paris: Navarin Éditeur, 2013.

[1]  Agradecemos a Hélène Bonnaud pela gentil autorização para traduzirmos e publicarmos seu texto nesta edição.