O microfone mudo e o psicanalista de chinelo: intervenção no Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Segregação

O microfone mudo e o psicanalista de chinelo: intervenção no Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Segregação1

Lilany Pacheco
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP

lilanypacheco@gmail.com

 

Resumo: O presente texto aborda o objeto voz e seu estatuto para a psicanálise para pensar as contribuições que ela pode oferecer sobre a leitura dos casos que implicam os discursos racistas e suas consequências para o preto. E, também, pensar como o psicanalista pode ir além nas suas contribuições contra o racismo e seus discursos.

Palavras-chave: objeto voz; racismo; psicanálise.

THE MUTE MICROPHONE AND THE SANDAL-WEARING PSYCHOANALYST: INTERVENTION IN THE PSYCHOANALYSIS AND SEGREGATION RESEARCH GROUP

Abstract: This text addresses the object voice and its status for psychoanalysis in order to consider the contributions it can offer about interpreting cases involving racist discourses and their consequences for black individuals. Additionally, it reflects on how psychoanalysts can further its contributions against racism and its discourses.

Keywords: object voice; racism; psychoanalysis.

Agradeço o convite para estar aqui, hoje, nesta atividade do Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Segregação, neste momento de concluir os trabalhos sobre o tema “Racismo e sistema de justiça: como a Psicanálise contribui nesse debate? e, quem sabe, abrir perspectivas para investigações futuras.

Na atividade de abertura das atividades do Ateliê em parceria com o Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Direito – que girou em torno da seguinte pergunta: “Ser vítima ou réu, na sua relação com o sistema de justiça, faz diferença na forma de tratamento destinada a esses sujeitos?” –, dois aspectos me chamaram a atenção, além daquele já destacado durante o semestre: a fala de Jésus Santiago, de que é preciso furar o discurso do mestre, e duas pontuações do convidado Felipe Mata Machado, procurador do Distrito Federal, uma sobre o não dito e, outra, quando ele se refere às vestes dos juízes, indicando que, em um julgamento, os juízes não podem estar de chinelo. Me recordo de ter pensado: então eles não acreditam no semblante? Em conversas posteriores, Jésus Santiago lembrou que, no escrito sobre a criminologia, Lacan ressalta exatamente o contrário: os profissionais do Direito são ciosos do semblante, levam a sério demais o parecer ser. E eu pensei: o analista pode estar de chinelo!

Outra fala que se transformou para mim em um dizer foi quando alguém mencionou que os policiais agora têm microfone em seus uniformes, acionados enquanto fazem as suas abordagens. Alessandro Pereira dos Santos ponderou que isso não resolve, pois o microfone do preto, ao sofrer as abordagens desiguais, é mudo.

 Ainda sobre o microfone, eu gostaria de trazer uma vinheta, um pequeno trecho de um podcast com Lázaro Ramos ao qual assisti faz tempo e que me veio à lembrança quando Alessandro mencionou o microfone. Lázaro enfatiza que não é por escolha que ele trabalha constantemente para furar o discurso racista:

O racista não quer ver que é racista. Então é preciso gritar, como em Ó pai ó, fazer um filme histórico etc. O racismo é tão complexo que não vai ser uma linguagem só que vai resolver, a variação contempla mais ouvidos. […] Não adoecer. É para sobreviver, senão o racismo vai matar a gente. Diante do discurso racista o sujeito é forçado a se definir por apenas um adjetivo. Ninguém é obrigado a se definir por um único adjetivo. […] Ter o microfone na mão é útil.[2]

Além desse podcast, me ocorreu ainda a excelente entrevista de Viola Davis e Pedro Bial, quando ela esteve no Brasil para lançamento d#_edn1e seu livro autobiográfico que, diga-se de passagem, foi premiado como melhor audiobook. Ao responder a Bial sobre a experiência de fazer o filme A Mulher Rei, ela relata que, ao pisar nas terras africanas onde as filmagens foram feitas, aquele lugar, com aquelas características, fez com que retornasse para ela a voz de uma tia-avó e, para fazer a personagem, ela se apropriou daquela voz, e saiu daí a potência de seu personagem.

É na direção da voz e seu estatuto para a psicanálise que eu tenho pensado sobre quais contribuições a psicanálise pode nos oferecer, ou nos ensinar, sobre a leitura dos casos que implicam os discursos racistas e suas consequências para o preto. E, também, pensar como o psicanalista pode ir além nas suas contribuições contra o racismo e seus discursos, como destacou Sérgio de Mattos em sua intervenção.

Então, o microfone, as múltiplas linguagens, as múltiplas vozes nos lembrando que as pulsões são, no corpo, o eco de um dizer. E, para que isso ressoe, para que isso consoe, é preciso que o corpo lhe seja sensível. É um fato que ele o é, afirmará Lacan (1975-76/2007, p. 19) ao abordar o uso lógico do sinthoma, em seu Seminário 23, e ele o é “Porque o corpo tem alguns orifícios, dos quais o mais importante é o ouvido, porque ele não se pode tapar, se cerrar, se fechar”. É por esse viés que, no corpo, responde ao que Lacan chamou de voz. Lacan lembra ainda que é embaraçoso, que não há apenas o ouvido, e que o olhar lhe faz uma eminente concorrência. E eu, de minha parte, hoje, quero colocar a voz no páreo.

Ao seguir a pista de Joyce, Lacan pensa que é preciso resolver alguma coisa em relação ao que Jacques Aubert (1976/2007) isola ao comentar Joyce: a função da fonação e como esta se relaciona ao significante. Esse tema perpassa todo o Seminário 23. Para Lacan, o que permanece em suspenso é saber a partir de que momento a significância, ao ser escrita, distingue-se dos simples efeitos de fonação, uma vez que é a fonação que transmite a função própria do nome, do nome próprio. Isso é exemplar nos testemunhos de passe quando neles verificamos, o modo como um sujeito abandona seu nome de gozo e pode pronunciar-se a partir do nome construído como efeito de uma análise. Todos lembramos muito bem do passe de uma colega que o pai a chamava de “mundana”, e ela mostra que a sua análise a fez “cidadã do mundo”.

Mudemos de lugar, sugere Lacan, e isso supõe ou implica que escolhamos falar a língua que efetivamente falamos. Imaginamos que escolhemos, ele ironiza, e o que resolve, no final das contas, é que criamos essa língua. Isso não está reservado às frases que a língua cria. Criamos uma língua à medida em que a todo instante damos sentido, uma “mãozinha”, e sem isso a língua não seria viva: “Ela é viva porque a criamos a cada instante. É por isso que não há inconsciente coletivo. Há apenas inconscientes particulares, na medida em que cada um, a cada instante, dá uma mãozinha à língua que fala” (LACAN, 1975-76/2007, p. 129).

“Cada ato de fala, golpe de força de um inconsciente particular, não é coletivização do inconsciente?”, é a pergunta de Lacan (1975-76/2007, p. 132) nesse ponto do Seminário 23 citado acima. Penso que essa pergunta é fundamental quando nos interessa o modo pelo qual a psicanálise pode pensar e operar no tocante a questões que dizem respeito à coletividade.

Se cada ato de fala é um golpe de força de um inconsciente particular, está completamente claro que cada ato de fala pode esperar ser um dizer. E o dizer chega a isso sobre o qual há teoria, a teoria que é o suporte de toda espécie de revolução, a saber, uma teoria da contradição. Podemos dizer muitas coisas diferentes, cada uma sendo, na ocasião, contraditória. E não é porque há desarrumação contraditória que nada tenha saído daí como constituinte de uma realidade. Ou, como escreveu Jacques Aubert (1976/2007, p. 167) na apresentação do Seminário de Lacan, “uma dimensão da fala, e os tipos de instauração de lugares onde isso fala”.

Caminhei até aqui com Lacan para encontrar o texto de Mônica Campos Silva (2024), escrito para comentar o trabalho primoroso de Alessandro, e também publicado neste número de Almanaque. Considerei que o texto de Mônica ordenou muito bem as atividades do semestre, todas primorosas, como todos nós que acompanhamos as atividades desse semestre pudemos testemunhar. Lembrando ainda da apresentação de Fídias Siqueira e do comentário de Sérgio de Mattos.

Eu já pensava em usar o texto de Marie-Hélène Brousse (2004) sobre a devastação, intitulado “Uma dificuldade na análise das mulheres”, para expor como tenho pensado e tentado articular as contribuições da psicanálise no enfrentamento do discurso racista e de outros discursos segregacionistas que reinam em nossa cultura.

Me chamou atenção que começássemos a beirar a questão da devastação e do feminino, para além da questão das mulheres e do feminismo, que também é discurso, para tratar a segregação, uma vez que a segregação é, primeiramente, segregação do inconsciente e mortificação do sujeito, como escreveu Mônica. Interessa-nos, portanto, pensar a fala e a linguagem que antecedem os discursos lá onde reina o vivo da vida!

Me chama atenção no texto de Brousse a afirmação de que a devastação se articula à maneira singular pela qual a linguagem emergiu para um sujeito, nos confins da inscrição simbólica. E ela acrescenta: as linguagens têm algo em comum, às vezes elas guardam a lembrança de uma primeira linguagem, diferente daquela que o falasser acaba falando, e há aí uma radicalidade, considerando que todo sujeito falou uma primeira linguagem, mesmo que seja no mesmo idioma que todos falam. Essa emergência pode se dar sob a forma de um insulto, no qual o sujeito é convocado a portar um nome cujo conteúdo de propriedade se resume apenas ao ato de proferir. E ela diz mais: ele é apenas o que se nomeia “fulano”, e só o é quando é nomeado, conduzindo o sujeito ao ser de objeto que ele foi para o Outro – negação da falta a ser e intimação a ser um objeto rebotalho.

Nessa linha, Mônica aproxima os efeitos do racismo em um sujeito pelo que Miller diz da devastação como uma pilhagem, um saque, um roubo, que se estende a tudo, sem limites, conduzindo a uma fixidez dada. A invasão de gozo decorrente da abertura do sujeito ao Outro que o devasta tem como efeito a sua queda como um “corpo desfalicizado”. Tomemos como exemplo o que verificamos nas mulheres que são difamadas. No que concerne à devastação causada pelos discursos racistas, basta lembrarmos dos corpos negros estendidos no chão ou de tantas outras formas nas quais o negro resta apenas como um corpo e sua cor, sem que o sujeito e sua diferença possam ser incluídos na linguagem. Como disse Lázaro Ramos, ninguém é ou quer ser definido por um único adjetivo.

Sigo um pouco mais com Mônica (2024, s/p), por sua vez seguindo Miller em “A salvação pelos dejetos”:

Quando o Outro designa o corpo social, se posso dizer, seu gozo, o gozo desse Outro, mantém-se como uma abstração. Um abstrato, uma ficção que se apoia no número, na massa. […] Entretanto, pode ser que o gozo do Outro social ganhe corpo, que o gozo consiga ser identificado no lugar do Outro, que ele não se evapore, que não se torne volátil e não se confunda com o esplendor vazio da Coisa. É quando, pode-se dizer, ou subentender, ou ser persuadido de que “o Outro goza de mim”.

Ainda com Mônica (2024, s/p): “É preciso lembrar que o racismo tende a reabsorver a tensão entre o Um e o Outro, com desprezo pela diferença”. Nesse ponto, importa indicar que, quando não há Outro, há o Um que itera e não cessa de escrever o insulto para o negro, ponto sobre o qual o discurso analítico precisa operar e restituir o furo entre o Um e Outro para que, a partir do furo, o negro possa rasurar o nome que o devasta, esvaziar-se do gozo do Outro que o invade e escrever o seu nome próprio.

Como conduzir o que, embora atravesse a lógica civilizatória, se encontra fora da letra?, pergunta Mônica. Ou, como escreveu Laurent (2023, p. 70) em sua apresentação do Seminário A lógica da fantasia, como o saber psicanalítico pode passar ao real? Em A terceira, Lacan (1974/2023, p. 24) esclarece: “O real não é o mundo e não há nenhuma esperança de alcançar o real por meio da representação. […] o real não é universal […]”, e, portanto, para tratá-lo não é possível adotar o “para todos”, como a ciência o faz.

Laurent (2022), em “A interpretação: da escuta ao escrito”, esclarece que, se o significante é causa de gozo, devemos nos perguntar como esse gozo pode escapar ao autoerotismo do corpo e ainda responder à jaculação interpretativa. Laurent lembra da pergunta de Lacan sobre se a psicanálise não é um autismo a dois, ponto que nos interessa bastante no contexto das investigações deste Ateliê, uma vez que precisamos nos entregar a uma tarefa de forçar o autismo, e poderemos fazê-lo pela via de lalíngua, aquela que o sujeito falou antes de falar qualquer idioma, como Brousse abordou. Laurent acrescenta: lalíngua é uma tarefa comum – e podem se valer dela aqueles que descem do salto e usam chinelos, eu diria. O gozo é autoerótico, mas a língua não é um assunto privado. Ela é comum e pode ser usada quando o analista pode fazer outra coisa que não o sentido. Lacan (1972-73/1985) explora, a partir do Seminário 20, os recursos que, em um forçamento poético, podem permitir ao analista fazer ressoar outra coisa que não o sentido, fora das regras da linguagem, algo que evoque o gozo da coisa comum. Isso implica o analista, seu corpo, e um batimento que engendre com sua presença real a substância significante em sua materialidade e as eventualidades a partir das quais o “ser” ganha “existência”, sendo relançado na cadeia significante com um outro nome, um novo significante com poder de voz – uma fonação, um microfone.

 

Fídias e Alessandro e todos que acompanharam as discussões talvez possam situar nos “casos” que apresentaram se, em algum momento, verificaram em suas intervenções algo que operou nessa direção, aproximando-nos dos dizeres de Freud, cada vez mais próximo do último ensino de Lacan, de que somente a palavra pode curar o que ela própria causou.


 

Referências
AUBERT, J. Apresentação no Seminário de Jacques Lacan. In: LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 166-185. (Trabalho original proferido em 1976).
BROUSSE, M.-H. Uma dificuldade na análise das mulheres: a devastação da relação com a mãe. Latusa: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-Rio), n. 9, p. 203-218, 2004.
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
LACAN. J.  A terceira. In: LACAN, J.; MILLER, J.-A. A terceira/ Teoria de lalíngua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2023. (Trabalho original publicado em 1974).
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).
LAURENT, É. A interpretação: da escuta ao escritoCorreio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 87, 2022.
LAURENT, É. Acontecimentos políticos de corpo. Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 90, 2023.
SILVA, M. C. Será que o racismo mata? Almanaque On-line, n. 32, 2024.

[1] Texto apresentado no Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Racismo do IPSM-MG em 25/10/2023, como comentário à apresentação de Mônica Campos nesta mesma data.
[2] Cf.: https://youtu.be/2GYVuoILBo4?si=Las6pr06vJXCV2sD