O objeto a como bússola em tempos de delírios familiares[1]

Alejandra Glaze
Psicanalista
Membro da Escuela de Orientación Lacaniana/AMP
aglaze@gramaediciones.com.ar

Resumo:  Em sua investigação sobre a particularidade dos delírios familiares atuais, a autora toma como ponta de partida a localização de um delírio ligado a um imaginário desenfreado que, por essa razão mesmo, é profundamente uniformizante e invasivo para a criança. E aponta como a psicanálise pode se valer de uma outra perspectiva de reconfiguração das famílias tomando como referência o objeto a, por natureza antinômico aos atuais estilos de vida traçados com a marca do universal. 

Palavras-chave: delírios familiares; imaginário desenfreado; objeto a. 

THE OBJECT a AS A COMPASS IN TIMES OF FAMILY DELUSIONS 

Abstract: In her investigation into the particularity of current family delusions, the author takes as her starting point the location of a delusion linked to an unbridled imaginary that, for this very reason, is profoundly standardizing and invasive for the child. And it points out how psychoanalysis can take advantage of another perspective of reconfiguration of families, taking as reference the object a, by nature antinomic to the current lifestyles traced with the mark of the universal. 

Keywords: family delusions; unbridled imaginary; object a.

Imagem: Sofia Nabuco

O tema proposto para esta apresentação me fez pensar muito, pois, para mim, era um obstáculo a ideia de que, para além da época, haveria algo de delírio nos assuntos familiares, ao menos no sentido que costumamos dar ao delírio quando dizemos “Todos loucos” ou “Todo mundo é louco”.

Portanto, para além da questão da época, sabemos que cada criança provém de um delírio familiar, se pensarmos que dizer “todos delirantes” nada mais é do que afirmar que não há possibilidade de alcançar normas comuns. Ou seja, cada um faz obstáculo, ou mesmo, é um obstáculo à norma para todos. Mas não proponho isso considerando a via de uma despatologização (como faz hoje a clínica moderna ligada ao DSM[2] e às neurociências), mas como forma de dizer que a exceção não faz a regra.

Esse é o caminho atualmente aberto em direção aos estilos de vida que, como disse Jacques-Alain Miller no texto de apresentação do próximo Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, implica “uma liberdade imprescritível porque é a dos sujeitos de direito” (MILLER, 2022, p. 17), quando sabemos que hoje são os direitos humanos que regem a subjetividade moderna.

Para chegar rápido ao ponto, esse delírio familiar que vocês localizam como uma questão de época, no caso da neurose, ele descreve mais um imaginário, de certo modo, um tanto desenfreado. Considero que esta é a questão da época: um delírio ligado a um imaginário desenfreado.

Vou ler uma citação de Laurent, retirada de seu artigo “Responder al niño de mañana”, referente à narrativa pós-moderna sobre a criança:

A criança e o adolescente se veem submersos em uma produção industrial de ficções romanceadas que os ocupam enormemente, pois temos que contar as horas de televisão, de ficção televisiva, para sonhar sua vida frente a uma tela. Se somarmos a isso os videogames e os jogos de encenações, vemos que a criança está ligada a toda uma trama ficcional, narrativa, romanceada, que invade a sua vida como nunca. Ela lhe proporciona, amplificando, todos os elementos que a ficção edípica não pode transmitir. (LAURENT, 2001, p. 98)

Isto é o que podemos chamar de imaginário desenfreado.

Embora o delírio familiar seja o próprio Édipo, devemos nos perguntar sobre a particularidade de nossa época para esse delírio familiar, que nada mais é do que a multiplicação deslocalizada do núcleo familiar e dispersa no tecido do mundo ao qual a criança chega. É assim que eu respondo o porquê de vocês localizarem o delírio familiar em nossa época. Nessa deslocalização. E isso tem suas consequências subjetivas e clínicas. Um imaginário que, muitas vezes, é profundamente invasivo, no qual a criança é aprisionada e de onde é difícil retirá-la.

Mas vamos abordar essa questão sob outra perspectiva: sabemos que o que deve ser feito como homem ou como mulher, o ser humano terá que apreender inteiramente com o Outro, pois pertence “ao drama, ao roteiro, que se coloca no campo do Outro”, como disse Lacan (1964/1988, p. 194) no Seminário 11, acrescentando que “o Édipo é propriamente isso”, essa captura nessa trama que vem do Outro. 

Isso nos coloca diretamente no que podemos chamar de a trama do familiar, a maneira pela qual se tece aquilo que dá forma a nossa vida, isso que nos faz sujeitos tal como o somos, embora sempre haja um resto… Resto com o qual também tecemos, nem mais nem menos, aquilo que nos define. Um modo de sermos nomeados pelo outro, de onde cai essa peça indizível como produto do que eu chamaria a operação do familiar sobre cada um. O não familiar, que também opera como esse lugar no qual não podemos nos reconhecer a partir dos brasões que vêm do outro, desde essas marcas que vêm do outro familiar.

Mas vamos por partes, porque estou lhes contando o final desse percurso.

Até mesmo Jacques-Alain Miller – na mesma linha de Laurent –, em seu artigo “Em direção à adolescência”, disse que

A incidência do mundo virtual […] faz com que o saber, antes depositado nos adultos, esses seres falantes que eram os educadores, incluindo aí os pais – era necessária a mediação deles para aceder ao saber –, esteja agora automaticamente disponível mediante uma simples demanda formulada à máquina. O saber está no bolso, não é mais o objeto do Outro. [E isso me parece fundamental para o tema que me propuseram para esta atividade.] Antes, o saber era um objeto que era preciso buscar no campo do Outro, era preciso extraí-lo do Outro pelas vias da sedução, da obediência ou da exigência, o que exigia que se passasse por uma estratégia com o desejo do Outro. (MILLER, 2015, p. 24.)

Poderíamos dizer que este é um outro modo de definir a decadência do patriarcado.

A internet é povoada por manuais que sempre tentam, sem sucesso, e às vezes até com consequências dramáticas, funcionar como o Outro que define a maneira de ser homem ou mulher, de adquirir algum tipo de identidade, às vezes baseada em ideais, mas muitas vezes também em gozos.

Vocês podem ver um exemplo no WikiHow, uma página na qual existem diferentes manuais para adolescentes, eu apenas listo alguns:  Como agir de forma inteligente frente aos seus amigos, Como aparentar ser meiga, Como beijar um rapaz, Como pegar na mão pela primeira vez (apenas para meninas), Como conseguir um namorado no ensino médio, Como flertar com os olhos,  Como saber se uma garota gosta de você, Como abraçar seu namorado/namorada pela primeira vez, Como agir como uma adolescente normal, Como agir quando o cara que você gosta está por perto, Como ser uma garota perfeita, ou até mesmo Como ser uma garota má.

Pois bem, os manuais, os protocolos, os costumes – mas também o Édipo como trama – vêm tentar preencher esse furo que Lacan definiu com a frase: não há relação sexual.

Mas o que isso significa? Significa que o que faz objeção ao pleno dizer é o mesmo que se opõe ao encontro harmônico entre os sexos e provém da captura do ser humano na linguagem, do caráter do inconsciente estruturado como linguagem. É uma outra forma de enunciar a castração freudiana.

Mas sigamos com o nosso tema. Um famoso slogan dizia: “Pertencer tem seus privilégios”: a uma família, a um grupo, a uma tribo, a uma fraternidade, a uma escola… e um longo etcetera, o que conduz ao ponto do primado do Outro do lado do amor e, por conseguinte, aos assuntos de família. Pois bem, hoje em dia, em muitos casos, esse gosto pelos privilégios que advinham do pertencimento foi perdido? Já que isso que interpela como sendo o estranho/o diferente, que retira da série e reenvia a um lugar Outro que aquele da cena familiar, parece ser o que rege hoje a vida dos sujeitos. Qual seria a nossa prática nesses casos? Todas essas são perguntas pertinentes aos tempos em que vivemos.

Outra perspectiva que aponta para o mesmo: em nosso tempo, a paternidade foi substituída pelas chamadas parentalidades, que não é mais do que um outro nome para o concebido mal-entendido dos sexos.

Desse modo, o planejamento familiar hoje responde ao legítimo direito ao gozo, pelo qual o sujeito contemporâneo defende seu direito de ter e formar uma família segundo as suas condições de gozo. Em suma, a conformação da família continua respondendo à deriva do sintoma como maneira de responder à inexistência da relação sexual para cada um. Portanto, longe de uma leitura conservadora dessas mudanças na estrutura familiar, devemos pensar em suas consequências sobre os sujeitos e na clínica que a acompanha. É onde está a psicanálise. É a de seguir pensando a resposta do sujeito como um modo de lidar com o mal-entendido entre os sexos, enfim, com a ausência da relação sexual. E, nesse sentido, orientar-se em direção ao real da família, é colocar – frente ao mal-entendido dos sexos – o sintoma como suplência da não relação sexual. E, nessa linha, o Édipo não seria mais que um sintoma do sujeito. Seria sua maneira de fazer com esse mal-entendido e com o gozo, com aquele hetero que aparece e não é dialetizável, que não entra em nenhuma forma de troca.

Como aludi anteriormente, passamos da autoridade paterna para a autoridade parental. E o que emerge dessa modificação é a parentalidade que, sem dúvida, teve consequências no modo de constituição da família.

A parentalidade repousa sobre a exclusão de toda combinação ou complementaridade de funções, implicando em uma simetria e uma igualdade entre o pai e a mãe no que diz respeito à ordem familiar. Dessa forma, a família vem substituir o pai e a mãe. E o termo parentalidade vem para substituir o termo família. E também o do parentesco. Ele advém da mudança de autoridade no núcleo da família no marco da lei.

Há pouco tempo, a lei argentina substituiu o conceito de patria potestad[2] pelo de responsabilidade parental. A palavra potestad se conecta com o poder que evoca a potestad do direito romano, centrado na ideia da dependência absoluta da criança em uma estrutura familiar hierárquica, enquanto a responsabilidade “implica o exercício de uma função encabeçada por ambos os progenitores, que se manifesta num conjunto de faculdades e deveres destinados, primordialmente, a satisfazer o superior interesse da criança ou do adolescente”. (Isso na terminologia jurídica, é claro.)

Parentalidades? Claramente se trata de um neologismo cunhado há pouco tempo e destacado por M.-H. Brousse em 2005, que dá conta da manifestação dos efeitos sobre a ordem familiar produzidos pela mutação da civilização, assinalada por Lacan a partir dos anos 70.

Antes se falava em guarda, agora em dever de assistência, e isso era decidido pelos pais com a concordância de um juiz. Agora, dependendo da idade da criança, ela pode pedir para falar com o juiz e ter o direito de expor os seus desejos. E é interessante o que essa mudança de paradigma produz no âmbito do núcleo familiar. Enquanto o Édipo, baseado na autoridade do pai, marcava uma relação que consistia na pregnância de uma lei velando a ausência da relação sexual, a parentalidade produz uma equivalência entre mãe e pai. Mas nesse apagamento da diferença pai/mãe e, por conseguinte, de suas funções, vemos também que a diferença homem/mulher também é afetada, assim como todo o sistema de parentesco.

Ser falado pela família, pelo desejo do Outro, fazer parte de um discurso familiar, é uma tentativa de dar sentido ao segredo sobre o gozo que os une, é cernir o real tratado por esse discurso e se encontrar com a estrutura ficcional de toda verdade. Em suma, toda família é um aparato de gozo, uma forma de salvaguardar o segredo do gozo como indizível.

Ressaltemos também que o ensino de Lacan desfamiliarizou a doxa freudiana do Édipo, desalojando a metáfora paterna para, assim, afastar-se do mito e da determinação do destino, orientando nossa clínica para além de Édipo. O ponto central de seu ensino foi o de localizar o gozo e orientar-se para Um real que as ficções do mito e da lei do pai para todos pretendiam cobrir.

A questão é que justamente o que uma análise propunha como desfamiliarização, uma clínica mais além do gozo como separação dos significantes que vêm do Outro, hoje vemos isso em ato no social, de modo que talvez pudéssemos dizer que os sujeitos chegam ao consultório desfamiliarizados.

A partir do último ensino de Lacan, somos alertados para uma teoria que poderíamos chamar de pós-edípica do inconsciente, que separa o modo de gozo do sujeito e do Outro, da função paterna.

Já em 1970, nas Jornadas da Escola Freudiana de Paris, Lacan sustenta o declínio do pai e desenvolve as suas consequências, que não são poucas. Poderíamos defini-la como uma ordem de vizinhança, que vem romper com aquela ordem hierárquica que implicava a autoridade única.

Ele postula a fragmentação do Nome-do-Pai (um multiculturalismo que empuxa para modos segregativos de gozo) e, em 1974, o associa a extensão do domínio do real produzido pela ciência ao desenvolvimento do poder da religião, um poder que não é o mesmo de antes, uma vez que se tornou a religião dos irmãos e não do Pai, produzindo-se, assim, o que Brousse chama de “multirreligiosismo”. O Islã é o contraexemplo disso, e assim Miller diz em seu texto “Em direção à adolescência”: “O Islã talvez seja o discurso que tem melhor em conta que a sexualidade faz um furo no real, que coagula a relação sexual e que organiza o laço social na não-relação” (MILLER, 2016, p 27.). É aquele discurso que diz exatamente o que é ser mulher, homem, mãe, etc. Ou seja, no Islã não há lugar algum para o mal-entendido.

À diferença da força que tem a identificação com um S1, à maneira do Islã, na modernidade as insígnias são etéreas. E assim esse neologismo das parentalidades descreve uma modificação no laço social contemporâneo que se sobrepõe à família, referindo, de alguma maneira, a um sonho de universalismo e à fragmentação do Nome-do-Pai. A parentalidade implica que o pai seja substituído pelos pares, e a monoparentalidade ou co-parentalidade provém desse princípio.

Mas saibamos que a previsão de Lacan sobre a ascensão da segregação é correlativa a esse apagamento da diferença em favor da semelhança: os mesmos com os mesmos. Deste modo, podemos dizer que é a família que vem substituir o pai e a mãe, apagando o resto real que assegurava a diferença. Assim, se confia à ciência o real da reprodução, separada do simbólico da filiação.

A parentalidade é o nome que vem deslocar os significantes anteriores de autoridade, tal como eles se desprendiam de um sistema de parentesco fundado na diferença dos sexos e no intercâmbio de mulheres. Dessa forma, podemos considerar a parentalidade como um sintoma que surge da modificação desse sistema. 

Porém, o segredo que cobre a estrutura familiar, seja homossexual ou heterossexual, monoparental ou não, é o de velar sempre o hetero do gozo feminino, o gozo do Outro que habita em cada unidade familiar. Todas essas formas que hoje chamamos de parentalidades são formações familiares que se ordenam em torno desse gozo como hetero, como heterogêneo a qualquer ordenação governada pelo significante do Nome-do-Pai.

Seguindo Bassols (2016, s/p), cito: “se a família tentava ordenar o real do gozo, o real do gozo reordena hoje a família, e isso em formas tão díspares como equivalentes entre si”.

Esse segredo do gozo é o umbigo do real em torno do qual giram as novas formações familiares com todas as suas múltiplas variações, fazendo-se e desfazendo-se em função das formas cada vez mais singulares de gozo sintomático. Então, podemos definir a família como o resultado de um mal-entendido entre os gozos, ou um mal-entendido entre os sexos, diante do qual o sintoma se coloca como suplência da não relação sexual. E é assim que a instabilidade nos vínculos familiares de hoje segue a lógica de uma equivalência entre significantes mestres que são trocados segundo as condições de gozo.

Porém, há outra faceta dessa parentalidade: ela gira em torno da criança como objeto fundamental, definindo a nova família. Uma parentalidade como sintoma, que se impôs nas sociedades modernas, tendo a criança em seu centro como objeto, o que configura outro sintoma da época. O abuso, devido ao qual decorre essa atenta vigilância em nossa época, pois, mais do que nunca, é necessário reafirmar o tempo todo a criança como sujeito, frente a esse empuxo de tomá-los como meros objetos de troca, em uma encarnação do objeto a, e, por conseguinte, tomados pela pulsão em seu estado puro, com suas consequências no corpo. Um objeto apaixonadamente desejado e rejeitado ao mesmo tempo, disse Laurent (2010) em “A criança como real do delírio familiar”.

Na época do sujeito “familiarizado” (e digo isso um pouco comicamente), dizíamos que o sujeito consultava um analista quando a determinação significante falhava, furava. Nessa diferença entre o dever ser (em geral atormentado por Ideais que vem do Outro) e o que se é. Bem, qual seria a diferença nessa época do imaginário desenfreado? Às vezes simplesmente se trata de desembaraçar-se dele. Éric Laurent disse muito bem:

“Diante da falha nos semblantes, que se aprofunda, um duplo desejo vem à luz, de acordo com a lei de ferro do superego. De um lado, um chamado invasivo à segurança e seu corolário: a instalação de uma sociedade de vigilância com seu panóptico maluco. De outro, o fascínio de viver como uma máquina finalmente liberta dos semblantes.” (LAURENT, 2012, p. 58)

É o que Miller havia dito sobre a palavra do pai que adoece, que o pai é traumático. E aqui se abre uma nova perspectiva para a época. O espectro de respostas é variado é vai desde a violência desencadeada até a criação de novas formas de existência.

Vejamos um exemplo. Sacha, um jovem de São Francisco, busca desembaraçar-se disso que vem do Outro em uma nova maneira de se vestir: saia de mulher e camisa de homem. Não buscava provocar, senão mostrar que não se identifica nem com o sexo feminino nem com o masculino, e assegurava não pertencer a nenhuma condição sexual. São vários os que o seguem, e um deles define sua posição do seguinte modo: “Não binários em um mundo binário”. O que destacam é “poder tomar decisões no seu dia a dia sem se sentirem deslocados”. Que o mundo não se divida em “para meninos” ou “para meninas”, mas que haja um leque mais amplo de possibilidades. Ou como escreve um deles: “bonecas são para meninas, caminhões são para meninos, quebra-cabeças são neutros… Meu gênero é um puzzle”.[4]

Essa identidade puzzle é o ajustamento, com a ajuda do discurso da ciência, do homem “liberado” dos semblantes. Mas que, muitas vezes, se constitui também como um fantasma, na medida em que regularia o mal-estar na relação sexual como uma nova forma de normativização.

Nesse sentido, é interessante o que formula Paula Sibila em seu livro La intimidad como espectáculo, em que diz que há uma permanente incitação à criatividade pessoal, à excentricidade e à busca de diferenças, que, sem dúvida, não cessa de produzir cópias descartáveis do mesmo. Uma capacidade de criação que se vê sempre capturada sistematicamente pelos tentáculos do mercado, desativando permanentemente essa invenção. Uma época em que qualquer demanda vinda do Outro, aparece como uma exigência tirânica que nem sempre é respondida da melhor maneira.

Disso também dão conta os novos libertários, um extremo liberalismo baseado na ideia de uma liberdade sem vínculos com o outro, inclusive sem responsabilidade social e rechaçando a política, muito distante do liberalismo que se baseava nas liberdades individuais e que foi a pedra fundamental para a queda dos absolutismos, constituindo cidadãos com direito a uma autoridade política por consenso. Pois bem, hoje muitos jovens na Argentina se dizem libertários, e, inclusive, um de seus líderes chega a propor a venda gratuita de órgãos (“Cada um é dono do seu corpo”).

Porém, seu outro lado é que o sujeito deve ser deixado “livre” em relação às suas contingências, de modo que o que eles propõem é um país sem Estado, cada um por sua conta e risco. Ou seja, algo da ordem de um mundo sem Outro em uma meritocracia levada ao extremo. Um deserto do real. Às vezes, inclusive, conduz a uma violência de tom reivindicativo que não chega a tomar a forma de um chamado ao Outro, mas como uma denúncia.

Seria realmente muito simples se houvesse uma força exterior que nos oprimisse, família, Édipo, etc., e que, libertando-nos dela, acessaríamos a um outro estatuto de existência. É uma ideia determinista distante do que a psicanálise sustenta, pois por mais determinados que sejamos por nossa história, regras de família, Édipo, construção fantasmática, etc., sempre estará em jogo algo que está mais além das determinações e que é a escolha contingente por parte do sujeito a partir de um elemento que não é feito para dominar, comandar, submeter, mas para causar o desejo: o que Lacan chamou de objeto a, que obstrui toda ordem e norma. O objeto a como causa, esse obscuro objeto do desejo, uma parte do corpo que foi cedida ao campo do Outro e que faz furo. Uma falta com a qual desejamos. Uma cessão ao Outro que depois iremos buscar, justamente, no campo do Outro.

É, sem dúvida, a única aposta possível na clínica desse delírio generalizado, desse imaginário desenfreado: construir um novo laço que aloje aquilo que se apresenta como heterogêneo a esse mesmo laço, em uma época na qual o sujeito se vê obrigado a se tornar o inventor de seu próprio modo de ser e estar no mundo.

Para terminar, e seguindo Laurent, trata-se de propor, a partir de nossa clínica, uma reconfiguração das famílias em torno daquele objeto que descompleta, que não tem nada de universal, que é sempre hetero e propor uma nova forma de abordagem do sintoma, diferente daquela clínica que despatologiza o sujeito ancorando-o nos estilos de vida, sintagma com o qual J.-A. Miller lê um traço da época; essas formas diversas, mas também unificadoras, com os quais se apresentam os estilos de vida atuais.

Menos do que um mundo de desejo, este é o mundo do gozo, uma disjunção que implica um empuxo para entender as mutações e multiplicação de desorientações e estilos de vida, levando a graves fundamentalismos ou explosões de violência, bem como ao chamado desencadeamento da questão de gênero. 

Tradução: Patrícia Ribeiro
Revisão: Maria Rita Guimarães

Referências 
BASSOLS, M. Famulus.  Lacan XXI – Revista FAPOL Online, ago. 2016. Disponível em: <https://www.lacan21.com/sitio/famulus/?lang=pt-br>. Acesso em: 13 jul. 2023.
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. (Trabalho original proferido em 1964).
LAURENT, É. Responder al niño de mañana. Carretel – Revista de la Diagonal Hispanohablante, Nueva Red Cereda, n. 4, 2001.
LAURENT, É. A criança como real do delírio familiar. In: KUPERWAJS, I. (org.). Psicanálise com crianças 3. Tramar lo singular. Grama Ediciones: Buenos Aires, 2010.
LAURENT, É. A ordem simbólica no século XXI: consequências para a cura. Revista Lacaniana de Psicoanálisis, n. 12, 2012.
MILLER, J.-A. Em direção à adolescência. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 72, mar. 2016.
MILLER, J.-A. Todo el mundo es loco. Revista Lacaniana de Psicoanálisis, n. 32, 2022.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa e Investigação em Psicanálise e Direito do IPSM-MG, em 02 de junho de 2023.
[2] DSM: Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, ou Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais na edição em português.
[3] Patria potestad, ou, conforme o direito brasileiro,  “pátria potestade”, é um instituto jurídico originário da Roma Antiga e adotado por alguns países, com diferentes abrangências, para regular as relações entre o genitor ou genitores com seus filhos não emancipados. (PATRIA postestad. Disponível em:  <https://es.wikipedia.org/wiki/Patria_potestad>. Acesso em: 13 jul. 2023.)
[4] N.T.: Quebra-cabeça.