O Que É Que Tem Um Corpo E Não Existe? Resposta: O Grande Outro

SANDRA ESPINHA

O Outro Que Não Existe

É no contexto do Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-1970/1992), em que Lacan define o “campo lacaniano” como o campo do gozo estruturado pelos discursos como laços sociais, que se encontra a citação que dá título a este trabalho (LACAN, 1969-1970/1992, p.62).

Segundo Miller, com os quatro discursos, Lacan introduz, em seu ensino, a ideia de uma “relação primitiva e originária” entre o significante e o gozo (MILLER, 2000, 95), que implica sua renúncia à autonomia do simbólico. O gozo é apresentado como o ponto de inserção do aparelho significante, que veicula tanto o sujeito barrado como uma falta, quanto o gozo como uma perda. O acento passa a incidir sobre o significante como aparelho de gozo e sobre a repetição como retorno do gozo.

“O discurso — diz Lacan — toca nisso sem cessar, posto que é dali que ele se origina. E o agita de novo, desde que tenta retornar a essa origem” (LACAN, 1969-1970/1992, p.66). Lacan formula, então, que “não há discurso — e não apenas o analítico — que não seja do gozo” e que “o saber é um meio de gozo” (LACAN, 1969-1970/1992, p.74). O significante é não apenas causa do gozo, mas emerge dele.

A ordem simbólica torna-se impensável sem essa conexão com o gozo e sem um retorno ao corpo, uma vez que o corpo é a condição do gozo. O significante é apresentado como suscetível de se materializar no corpo, e Lacan faz do fantasma “Uma criança é espancada” uma articulação significante que não realiza um efeito de verdade, mas de gozo. Por meio dessa frase fantasmática, o sujeito “recebe sua mensagem sob a forma invertida — aqui, isto quer dizer seu gozo sob a forma do gozo do Outro” (LACAN, 1969-1970/1992, p.62).

No seminário O Outro que não existe e seus comitês de ética, Miller afirma que Lacan substitui o grande Outro pela estrutura do discurso, após reconhecer sua estrutura de ficção e sua consistência apenas como laço entre os sujeitos que falam. O Outro que não existe traduz esse estatuto inconsistente do Outro, reduzido ao semblante, do qual resta apenas o seu significante — S(A). “O Outro, do qual dizemos que não existe […] não é da ordem do real”, diz Miller (2005a, p.121), o real é o gozo.

A estruturação dos quatro discursos é uma nova edição do Outro “como estrutura no real” (MILLER, 2005a, p.115), ou seja, como o que “assegura a conjunção do significante e do significado e a relação com o referente” (MILLER, 2005a, p.121) e funda o laço social. Essa inclusão do real na estrutura do discurso apresenta a inexistência do Outro, não como antinômica do real, mas correlativa deste.

A noção de discurso unifica o que Lacan havia formalizado, em dois tempos, sob os nomes de alienação e separação, como a matriz lógica do inconsciente. Por intermédio da alienação, definida como um processo simbólico de identificação significante do sujeito, que comporta uma perda, Lacan concebe o recalque freudiano. A separação, por sua vez, é uma irrupção de gozo, é o momento pulsional pelo qual a pulsão é apresentada como resposta ao recalque. A separação é uma resposta de gozo correlativa da operação puramente simbólica da alienação. Nesse momento do ensino de Lacan, o gozo é modelado a partir do sujeito, e o inconsciente é descrito sob o modelo da pulsão como uma borda que se abre e se fecha. Por meio do mito da lamínula, a libido passa a ser definida “não mais como desejo significado […], mas libido como órgão, objeto perdido e matriz de todos os objetos perdidos” (MILLER, 2000, p.94).

Uma Extração Corporal: A Libra De Carne

A função da separação, que encontra seu desenvolvimento no binário alienação-separação, é introduzida no Seminário 10: a angústia como uma separação de órgãos e promove a queda da primariedade do falo simbólico como paradigma da passagem de um órgão do corpo ao significante. A concepção da libido como um órgão e novo paradigma do objeto perdido substitui o falo em causa na castração. Como órgão perdido, a libido não é separada pela castração, mas é o resultado de uma perda em que não há um agente. Isso significa que, nesse momento do ensino de Lacan, “o princípio da angústia de castração […] não se inscreve no Édipo” (MILLER, 2005b, p.35), mas se situa no nível do órgão como tal. Lacan faz da detumescência do órgão, ou seja, do apagamento da função fálica no ato sexual, o princípio da angústia de castração.

Segundo Miller, no Seminário 10, ao visar a um status do objeto anterior à lei e ao desejo, anterior à sua simbolização fálica e à constituição da função paterna, Lacan realiza uma “des-edipianização” da castração. A função da separação realiza a disjunção do Édipo e da castração e, “simultaneamente, abre o catálogo dos objetos a” (MILLER, 2005b, p.40).

A angústia, cuja definição como sinal do real passa a prevalecer sobre a sua noção de signo do desejo do Outro, torna-se a via utilizada para aceder a esse objeto real, cujo paradigma é o seio, objeto de satisfação da pulsão, ou seja, objeto de uma satisfação que é gozo. O Édipo surge, então, como uma elucubração de saber sobre a separação, que é do registro de uma automutilação.

Para Miller, o Seminário 10 constitui um corte no ensino de Lacan em relação ao objeto e ao corpo. Nele, Lacan deixa de lado a forma especular unitária do corpo e interessa-se pelas suas descrições realistas e anatômicas, opondo à noção de traço, como o que transforma o corpo em significante, a noção de corte, que, ao contrário, separa um resto que é gozo, um resto-órgão. “O objeto a é elaborado essencialmente como uma pura e simples extração corporal” (MILLER, 2005b, p.66). Nesse seminário, pode-se ler, com Lacan, o seguinte:

O que nos interessa nessa questão, e ao qual é preciso reduzir a dialética da causa, não é o corpo participante em sua totalidade. […] mas é que sempre há no corpo, em virtude desse engajamento na dialética significante, algo de separado, algo de sacrificado, algo de inerte, que é a libra de carne (LACAN, 1962-1963/2005, p.242).

E, ainda, sobre essa função da causa:

Pois bem, se essa causa se revela tão irredutível, é na medida em que […] é idêntica em sua função ao que lhes venho ensinando a delimitar e manejar, este ano, como a parte de nós mesmos, a parte de nossa carne que permanece necessariamente aprisionada na máquina formal, sem o que o formalismo lógico, para nós, não seria absolutamente nada. […] Nós lhe damos não simplesmente a matéria, não apenas nosso ser de pensamento, mas o pedaço carnal arrancado de nós mesmos. […] É essa parte de nós que é aprisionada na máquina e fica irrecuperável para sempre. Objeto perdido nos diferentes níveis da experiência corporal em que se produz seu corte, é ela que constitui o suporte, o substrato autêntico, de toda função da causa. Essa parte corporal de nós é, essencialmente e por função, parcial. Convém lembrar que ela é corpo e que somos objetais, o que significa que não somos objetos do desejo senão como corpo (LACAN, 1962-1963/2005, p.237).

O Corpo Para Além Do Especular

Lacan inventa uma nova espécie de objeto cujo estatuto determina um outro corpo que aquele do estágio do espelho [corpo = i(a)] ou que o corpo significantizado do esquema ótico [corpo = I(A)  i(a)]. O objeto a é, no Seminário 10, particularmente, corporal. Aqui, a libra de carne é um pedaço do corpo que o sujeito precisa entregar como garantia da ordem significante. O órgão a ser perdido não é o órgão transformado em significante, mas é um órgão gozo, um resto real. O gozo é liberado de sua armação significante, fálica, e o objeto a é apresentado como não especularizável, como objeto da angústia. Sua intrusão no campo visual, cuja consistência supõe o Nome-do-Pai e a castração [i(a)/-], produz aparições ansiogênicas (MILLER, 2005b, p.63).

A separação do objeto real incide não sobre o corpo imaginário ou “visual” do espelho, mas sobre o corpo libidinal, o corpo das zonas erógenas. O Um do corpo da boa forma dá lugar ao corpo do informe (MILLER, 2005b, p.64). O Seminário 10 fornece uma nova descrição dos objetos parciais. O seio, que, no Seminário 4: as relações de objeto, era descrito como um objeto da necessidade, tornado simbólico, objeto do dom ou signo do amor do Outro, passa a ser concebido como um objeto da criança e não da mãe. O seio é um objeto separado da criança que é “aplicado, implantado na mãe” (LACAN, 1962-1963/2005, p.256). Daí, essa topologia estranha do corpo, que não se reduz a um esquema de duas dimensões, que não é mais estruturado como um dentro/fora ou como o face a face do espelho, pois, como diz Lacan, “[…] o que mais existe de mim está do lado de fora, não tanto porque eu o tenha projetado, mas por ter sido cortado de mim […]” (LACAN, 1962-1963/2005, /p.246).

Ter Um Corpo

Lacan apresenta o corpo como alguma coisa que necessita sempre de um princípio de articulação para sustentar-se, formalizando-o de várias maneiras no percurso de seu ensino. “Para Lacan, o corpo é o resultado de uma construção que se realiza em um ponto exterior ao sujeito […]. O corpo é alguma coisa que se constitui fora e que é apossado pelo sujeito” (MANDIL, 2010, p.6).

O corpo não é uma evidência inaugural, ele é segundo em relação ao organismo vivente. Ele não é um dado da natureza, mas um produto transformado pelo discurso. O organismo, tornado corpo, pode ser abordado pelo Um de sua forma, do lado da imagem, mas também a partir do Um do gozo, do lado dos buracos de suas zonas erógenas pulsionais. Pelo Um de sua forma, o corpo se separa do organismo, e pelo Um de seu gozo, ele é um organismo que “desliza até seu verdadeiro limite, que vai mais longe que o do corpo” (LACAN, 1998, p.862). Se, de um lado, é o corpo que oferece sua matéria ao significante e se transforma em significante, de outro, é o significante que se materializa no corpo. Temos uma “significantização” do corpo e uma “corporização” do significante (MLLER, 2004, p. 65)

No ensino do Lacan, o corpo é um efeito da linguagem, ele é “o leito do Outro”. Em “Radiofonia” (1970/2003), o corpo é feito “deserto de gozo” ou superfície na qual se inscrevem os traços mortos de um gozo perdido, mas ele é também buraco ou borda corporal, por meio da qual o gozo é cativado para fora do corpo por objetos que o condensam e que são peças separadas do corpo: seio, fezes, olhar e voz. Mortificado pelo significante, o corpo se confunde com o Outro, com o corpo do simbólico, mas ele é também gozo pulsional, que busca restaurar o que lhe resta de vida na parcialidade dos objetos. Entre ambos, o encontro será para sempre faltoso.

Diz Lacan, em “Radiofonia“:

Volto ao primeiro corpo do simbólico, que convém entender como nenhuma metáfora. Prova disso é que nada senão ele isola o corpo, a ser tomado no sentido ingênuo, isto é, aquele sobre o qual o ser que nele se apóia não sabe que é a linguagem que lho confere, a tal ponto que ele não existiria, se não pudesse falar. O primeiro corpo faz o segundo, por se incorporar nele. Daí o incorpóreo que fica marcando o primeiro, desde o momento seguinte à sua incorporação. […] Mas é incorporada que a estrutura faz o afeto, nem mais nem menos, afeto a ser tomado apenas a partir do que se articula do ser, só tendo ali ser de fato, por ser dito de algum lugar. […] O corpo, a levá-lo a sério, é, para começar, aquilo que pode portar a marca adequada para situá-lo numa sequência de significantes. A partir dessa marca, ele é suporte da relação, não eventual, mas necessária, pois subtrair-se dela continua a ser sustentá-la (LACAN, 1970/2003, p.406).

Tem-se, aqui, a tese de Lacan de que é a linguagem que, ao se incorporar, nos concede um corpo. O Outro é definido como um corpo simbólico prévio à constituição do corpo como tal, que, sendo segundo, só se sustenta pela marca necessária que o situa em uma sequência de significantes. Só tem corpo, só toma posse de seu corpo o ser cujo corpo foi concedido pela linguagem. O corpo do ser falante é da ordem de uma incorporação da qual se trata de tomar posse, o que o uso dos pronomes possessivos “meu”, “teu”, quando nos referimos ao corpo, é uma indicação. Essa apropriação, no entanto, não se realiza inteiramente, pois, uma vez incorporado, o grande Outro permanece incorpóreo, restando dele apenas o seu significante: S(A).

O Órgão Incorporal Da Libido E O Circuito Autoerótico Da Pulsão

A admissão do corpo no simbólico transforma-o em significante. O corpo perde seu ser de vivente e ganha a perenidade que a mortificação significante da vida lhe confere. A admissão do simbólico no corpo é, todavia, outra coisa. Lacan a traduz como a criação de um novo órgão, o órgão incorporal da libido, definido, no Seminário 11, como um órgão irreal, “de modo algum imaginário”, mas articulado ao real, ou seja, passível de se encarnar. A tatuagem é o exemplo que Lacan dá da encarnação desse órgão irreal no corpo.

O entalhe tem muito bem a função de ser para o Outro, de lá situar o sujeito, marcando seu lugar no campo das relações do grupo […] ao mesmo tempo, ela (tatuagem) tem, de maneira evidente, uma função erótica […] (LACAN, 1964/1985, p.195).

A libido é um órgão incorporal que estende o ser do organismo a um limite que vai mais além dos limites do corpo. Aqui, o termo organismo é utilizado por Lacan para significar a libido como o que resta de vida ao corpo mortificado pelo significante. Ao tornar-se corpo, o significante fragmenta seu gozo, localizando-o nas zonas erógenas, fontes da pulsão, e condensando-o, fora do corpo, nesse incorpóreo que é o objeto a. Designado por uma letra, índice de um impossível de ser simbolizado, esse objeto, pelo gozo que condensa, é o mais substancial do corpo, embora não tenha a sua materialidade. Concebido como imaginarizável, mas sem imagem e sem significante que o represente, o objeto a não faz parte da realidade corporal. Agora, sua consistência deixa de ser corporal para tornar-se puramente lógica.

No esquema lacaniano da pulsão, o ser do organismo libidinal é uma espécie de pseudópode que, mais além da realidade do corpo, estende-se sobre o campo do Outro, do qual se serve para contornar o objeto e retornar sobre o mais-de-gozar do corpo próprio. O trajeto significante da pulsão desenha o vazio mediador do objeto que articula esses significantes entre si. Aqui, não se trata do corpo deduzido a partir da imagem, mas a partir da forma pulsional do buraco do objeto, em uma relação direta do simbólico com o real, que não passa pela imagem. Esse esquema comporta o autoerotismo da pulsão, o objeto sendo apenas o meio da via de retorno da pulsão sobre ela mesma, um lugar vazio que pode ser ocupado por objetos diversos. Se o desejo é o desejo do Outro, “a pulsão é a pulsão do Um” (MILLER, 2011, aula 12). O Outro, “nesse nível, pode-se dizer que sua inexistência é verdadeiramente saliente” (MILLER, 2011, aula 15). A pulsão não necessita da presença dos corpos e, embora seu território possa estender-se até os limites do universo da cultura, sobre o conjunto das representações que a metonímia da linguagem torna possível, ela não dá nenhum acesso ao gozo do Outro.

A definição lacaniana da pulsão como o “eco no corpo do fato de que há o dizer” faz alusão não apenas a esse retorno sobre o corpo, mas à sua insistência. A pulsão fala sozinha e diz sempre a mesma coisa: “há Um”. O dizer se distingue dos ditos, que se edificam da dimensão da verdade. O dizer é o ato de produzir os ditos.

Em “Radiofonia” (1970/2003), ao invés de se referir à alienação-separação, Lacan resume a entrada do sujeito e seu corpo na linguagem com a operação de incorporação, fazendo corresponder à intrusão significante a extrusão do gozo (LACAN, 1970/2003, p.407).

Na ordem simbólica, os significantes falam aos significantes, e o sujeito está ausente, mantendo-se fora da vida e fora do corpo, sob as formas da verdade e do desejo (MILLER, 2000, p.97). Quanto ao corpo, o significante surte efeitos, não de representação, mas de afeto. Seu efeito maior é o afeto da angústia, concebido por Lacan como sendo não do sujeito, mas do corpo. A angústia é o traço deixado pela afetação traumática essencial, que é incidência da língua sobre o corpo. Para Lacan, “[…] o núcleo do acontecimento traumático não é relacionável a um acidente, mas à possibilidade mesma do acidente que deixa traços de afetação” (MILLLER, 2000, p.53). Portanto,

[…] não é a sedução, não é a ameaça de castração, não é a perda do amor, não é a observação do coito parental, não é o Édipo que é o princípio do acontecimento fundamental, traçador de afetação, porém a relação com a língua (MILLLER, 2004, p.53).

O corpo é feito “tabuleiro de jogo” onde a disputa é travada com as cartas do significante em seus efeitos de significado e de afeto. Foi com esse corpo disputado entre dois mestres que Freud começou. O corpo da histérica, apresentado no sintoma conversivo, é o corpo disputado entre a autoconservação e o gozo pulsional fragmentado, entre as pulsões do eu e as pulsões sexuais. No exemplo freudiano da cegueira histérica, um órgão, o olho, “cessa de obedecer ao saber do corpo […] para tornar-se suporte de um se gozar” (MILLLER, 2004, p.48). O olho é separado de sua função de visão para consagrar-se ao gozo do olhar. Miller, aqui, distingue dois corpos. De um lado, o corpo-prazer ou o corpo-eu, que é um corpo que sabe o que é necessário para sobreviver e que é regulado pelo prazer; de outro, o corpo-gozo, que é um corpo libidinal, que não obedece ao eu e não é o corpo de um prazer regulado, mas de um prazer que ultrapassa ou elimina a finalidade vital, tornando-se gozo.

Lalíngua: O Um Que Existe E O Corpo Vivo

É sob essas coordenadas que Miller afirma ser possível dar vida à definição do “sinthoma” como acontecimento de corpo. No final de seu ensino, Lacan parte da evidência de que “há o gozo” como propriedade de um corpo vivo e que fala. O corpo é introduzido como substância, mas apenas na condição de que esta seja definida como aquilo de que se goza, ou seja, como substância gozante. O corpo é o lugar do gozo em oposição ao sujeito sem substância da falta-a-ser. O homem, feito sujeito do significante, não pode identificar seu ser com seu corpo. Essa implicação da pulsão no sintoma faz Lacan substituir o sujeito pelo falasser, que inclui o corpo e que é coerente com a noção de que não há sentido que não seja do gozo, nem significante que não esteja conectado à pulsão. “O falasser é aquele que por falar supõe um ser ao corpo que ele tem, supõe um ser ao ter, e seu ter essencial é o corpo”, não é o falo. O falasser é “o que apenas tem um corpo” (MILLER, 2011, aula 14). O falasser é o que fala com seu corpo.

Essa primazia do gozo conduz ao Um-totalmente-só, separado do Outro (MILLER, 2000, p.103) e que fala para si próprio com a pulsão. Fundamentalmente, o gozo é o gozo do corpo próprio e, em oposição à falta-a-ser do desejo, que é do Outro que não existe, o gozo é o que existe. A falta está no nível do ser, enquanto que o gozo é do registro da existência (MILLER, 2011, aula 12). O “há Um”, do gozo que existe, é o correlato da inexistência do Outro. Ele é o significante pensado fora dos efeitos de sentido e concebido como gozo.

A partir de uma abordagem generalizada da psicose, Lacan faz do real o que “foraclui o sentido”, sobre o qual ele tem primazia. O simbólico é definido não como uma articulação, mas como um buraco no real. Aqui, a tese lacaniana é a de que esse furo no real, constitutivo da ausência do Outro do Outro, é o suporte do inconsciente (MILLER, 2010, p.93). A estrutura da linguagem aparece como derivada em relação à invenção lacaniana de lalíngua, que não é sem o corpo. A palavra apresenta-se separada da comunicação e torna-se gozo do blá-blá-blá. Lacan distingue o significante na lalíngua do significante na linguagem. Na lalíngua, o significante não representa o sujeito para outro significante, sua falta-a-ser, mas ele é “signo do sujeito”, signo da presença de seu gozo ou letra de gozo. O significante como o que representa o sujeito deve ser extraído de lalíngua, da qual a linguagem torna-se uma elucubração de saber.

O inconsciente não é mais o discurso do Outro, pois cada um só fala sua própria língua. Ele é definido como um inconsciente real, ele é a lalíngua em sua coabitação com o corpo marcado pelo significante como pura diferença. O inconsciente torna-se uma hipótese que se constrói a partir do simbólico encarnado na matéria mesma de lalíngua (VINCIGUERRA, 2011). A ordem simbólica é reduzida a uma disposição de semblantes.

Miller enumera esse momento do ensino de Lacan como o sexto paradigma do gozo, no qual o conceito de palavra como comunicação, o Outro, o Nome-do-Pai e o símbolo fálico são reduzidos a semblantes e a terem “uma função de grampo de elementos fundamentalmente disjuntos” (MILLER, 2000, p.101). Acrescente-se que o próprio objeto a é reduzido a um semblante e torna-se insuficiente para capturar o real, uma vez que ele é o que desse real do gozo tem algum sentido. Trata-se de um paradigma fundado sobre um “não há”, correlativo do “há Um”, e que se formula através do axioma “a relação sexual não existe”. A pulsão é uma relação com a ausência da relação sexual (MILLER, 2012, p.149).

Ter Um Sinthoma

Lalíngua não é, todavia, um corpo. Ela é uma multiplicidade de diferenças, inconsistente e aberta. Para que haja um corpo, é necessário que se estabeleçam relações entre seus elementos dispersos. Para que lalíngua se converta em corpo, faz falta a incorporação do corpo do simbólico, que não poderia constituir-se como uma linguagem sem o gozo. Há uma incidência do significante sobre o gozo, mas há também uma incidência do gozo sobre o significante e sobre a possibilidade de que ele se ordene ou não em um sistema. Há solidariedade entre o acesso ao corpo do simbólico e “ter um corpo”. Uma perturbação ou uma não constituição do corpo do simbólico engendram efeitos, sempre singulares, no que se designa como “ter um corpo”, que é a possibilidade de fazer uso dele ou “servir-se dele”.

Portanto, o Outro que não existe — ou o Outro inconsistente, do qual só existe o seu significante, que pode ser reduzido a uma série de semblantes ou a um conector que mantém juntos elementos disjuntos — tem um corpo. O “há Um”, que é da ordem da existência, “faz aparecer o Outro do Outro sob a forma do Um” (MILLER, 2000, p.102) do corpo. O corpo surge, então, como o verdadeiro Outro do significante. Ao Outro, lugar do significante, Lacan acrescenta o corpo como lugar do Outro. O Outro, definido como corpo, significa que “o Outro do significante […] é o Outro da verdade apenas na ficção. […] O Outro do significante é o Outro do corpo e de seu gozo” (MILLER, 2011, aula 13).

O corpo como Outro, incluído no conceito de falasser, constitui a versão do inconsciente como real, cujo suporte é a noção de sinthoma como o que resiste ao sentido. O nó que constitui o sinthoma é construído “realmente” para formar uma cadeia com a matéria significante, que não é uma cadeia de sentido como retorno da verdade recalcada, mas uma cadeia de “gozo-sentido” (MILLER, 2011, aula 14). Pode-se dizer que o corpo como Outro é o corpo concebido como um sinthoma.

Na neurose, o corpo tem o estatuto particular do ser vivente afetado pela incorporação do corpo do simbólico. Nela, a separação do objeto se opera. A pulsão se estrutura a partir do objeto perdido, que ela vai buscar na realidade, e que, a rigor, se aloja na fantasia, constitutiva da verdadeira realidade do neurótico. O gozo retorna sobre o corpo sob a forma do sintoma, condensado em um saber que se pode decifrar a partir de seu valor fálico, suportado pelo Nome-do-Pai, e como signo do que se tem de mais real.

Na psicose, o que se passa é que o objeto não é subtraído do corpo. Afetado pela linguagem, o corpo do psicótico não é esvaziado da libido. Esta não encontra uma localização e desloca-se à deriva. O psicótico “tem seu objeto no bolso”.

Em “Embrollos del cuerpo”, Miller esclarece sobre os fenômenos de corpo na psicose, dizendo o seguinte:

[…] no lugar da alienação, não está a repressão, mas a foraclusão. No lugar da separação, estão os fenômenos do corpo, quer dizer, a pulsão não domesticada, a pulsão que não se articula facilmente com o objeto a. […] No que denominamos fenômenos psicóticos do corpo, a pulsão emerge no real, corta suas pernas, parte sua cabeça, atravessa seu corpo. Dito de outro modo, proponho reconhecer nos fenômenos do corpo a pulsão que passou ao real (MILLER, 2012, p.115-116).

Na clínica borromeana, que constitui a última elaboração de Lacan sobre o real psicanalítico, a função “localização” pode ser generalizada e escapar a essa clivagem neurose-psicose ou linguagem-corpo. Os “fenômenos de corpo”, que permitem abordar a não localização do gozo na psicose e os meios necessários para localizá-lo por intermédio de uma suplência sinthomática à forclusão do Nome-do-Pai, estão também presentes no corpo sintomático do neurótico, seja na anatomia fantasmática da histérica, seja nos cortes do pensamento do obsessivo.

Ainda em “Embrollos del cuerpo”, Miller qualifica “os fenômenos de corpo como sinthoma quando se instalam permanentemente, ordenando a vida do sujeito”. Segundo ele, que esses fenômenos permanentes

[…] possam assumir o papel de sinthomas, solicita que se veja uma forma de sinthoma no próprio Nome-do-Pai. O raciocínio de Lacan é que se o Nome-do-Pai pode ser substituído por um tal ‘fenômeno de corpo’, por um sinthoma, então, um não vale mais do que o outro. O que interessa […] é uma busca muito pontual: qual é a articulação significante que produz o fenômeno do corpo? (MILLER, 2012, p.110).


 

Referências Bibliográficas
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LACAN, J. (1964/1985). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
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VINCIGUERRA, R.-P. L’ordre symbolique au XXIe siècle. Il n’est plus ce qu’il était. Quelles consequences pour la cure?. Soirées préparatoires au VIIIe Congrès de l’AMP, 2011.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise com crianças do IPSM-MG, em 6 de junho de 2012.

Sandra Espinha
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). E-mail: sandra_espinha@uol.com.br