O Real Na Família Contemporânea – Questões Sobre O Incesto

LUCIA MELLO

 

 

O real na família contemporânea comporta pesquisas sobre os vários sentidos desse nome para Lacan, de desde seu texto inicial, da década de 50, até as mudanças operadas em seu último ensino. Neste, o real surge enquanto dimensão contingente que concerne a cada um, sem sentido, acarreta ruptura tanto com o saber quanto com a causalidade, separado que está da dimensão ficcional do inconsciente estruturado como linguagem, e modifica o próprio conceito de inconsciente.

A pergunta que orienta essa investigação diz respeito às transformações culturais e sociais que incidiram sobre os discursos e atingiram o que Freud formulou como uma lei primordial da humanidade – advinda de pesquisas sociológicas e resultado da incidência do pai e inscrita como mito, fantasia e tabu do incesto – ou seja, a como se apresenta o tabu do incesto no tempo do real sem lei.

O comentário feito por Lacan sobre a ficção do pai primeiro, construída por Freud, assinala a importância da família na transmissão da cultura, por vários meios, quando destaca o medo, protótipo da repressão edipiana, inspirado pela castração real promovida pela versão do pai gozador de Totem e tabu. A proibição do incesto construída no mito freudiano incide sobre a mãe e “tem um caráter universal, através de relações de parentesco infinitamente diversificadas… essa proibição é sempre expressamente formulada e sua transgressão é marcada por uma reprovação constante” (LACAN, 1938/2003, p. 29). Na ficção, o tabu decorre da orgia sacrificial seguida do banquete totêmico e da rivalidade entre os membros do clã, de quem resultam tradições morais e culturais.

Essas tradições se veem abaladas como consequência da disjunção entre sexualidade, procriação e filiação ocorrida no século XX. O nascimento de uma criança não depende mais do encontro de um homem com uma mulher. Os enigmas da sexualidade são deslocados do campo do desejo para as demandas de mercado. A família contemporânea definida por Lacan no texto de 1938, os “Complexos familiares”, como instituição, fato social, mito em que se inscreviam em triplo registro a reprodução da espécie, função organizadora da filiação e os fundamentos de transmissão entre gerações, exacerba sua dupla face entre interdição e permissão do gozo. A família parece perder progressivamente sua função de transmissora da cultura, das relações de parentesco.

As mutações na civilização apontadas por Lacan desde os anos 70 produzem efeitos e transtornos decorrentes das transformações no discurso do mestre, repercutem sobre a lei da castração e afetam profundamente a família contemporânea. Passa-se da autoridade paterna para a autoridade parental. Marie-Hélène Brousse considera a parentalidade um neologismo utilizado pelo novo discurso da ciência para apagar os termos tradicionais de pai e mãe e homem e mulher, modificando o sistema de parentesco e a transmissão da lei e pretendendo recobrir a impossibilidade de escrever a relação sexual.

Em seu artigo sobre o tema, Brousse (2005) comenta que, onde havia o drama de uma relação entre termos diferentes, funções diferentes, se impõe a equivalência, a similaridade e a permuta, movidas pelas vontades de gozo, pelo apagamento das funções alteradas para termos iguais que se repetem em série: “Confiado à ciência, o real da reprodução se encontra separado do simbólico da filiação.” (p. 121). O circuito do desejo que necessariamente implica a diferença sexual também é apagado pela parentalidade, que se impõe como um sintoma da sociedade pós-moderna. Na condição de significante único, a parentalidade transmuta os lugares de pai e mãe para a série de Uns esparsos e disjuntos, sem o Outro como parceiro de mito e ficção.

Essa transformação da família afeta a criança recebida, escolhida ou produzida como objeto a, que, na condição de objeto mais-de-gozo, torna-se passível de consumo pela via da parentalidade – vítima de vigilâncias, permutas e abusos diversos. Indaga-se, portanto, sobre as mutações no estatuto das interdições e seus efeitos para o que Freud conceituava como economia psíquica. Indaga-se ainda se a parentalidade, promotora de equivalências na série de Uns esparsos, apagaria a diferença dos nomes e do desejo como impossível.

A esse respeito, Laurent (2005) evoca a contribuição freudiana, situada no decorrer de sua obra, sobre o lugar do pai como portador da interdição do incesto na economia psíquica. Em suas quatro versões do pai, Totem e tabu, Édipo, Hamlet, Moisés e o monoteísmo, o pai freudiano traz sua marca na angústia, na sociedade, nas religiões. A passagem do pai legislador para versões tirânicas e totalitárias assinala a transformação e a dispersão em versões do pai, perversões não inscritas nas fantasias mas distribuídas entre parceiros de sexos mutantes.

Lacan, relendo Freud, modifica e interroga o estatuto da família lembrando que pai e mãe são nomes que marcam uma particularidade do desejo de criança em todas as sociedades. Isso porque a ordem familiar, em vez de base da história, torna-se resíduo, produto da história. Lembra ainda que o pai como nome é vetor de uma encarnação da Lei sobre o desejo, portanto não é apenas o pai que interdita, mas o que reúne contradições entre interdição, desejo e gozo. Enquanto o pai freudiano abriga-se no universal entre ideal e utopia, o pai lacaniano inscreve-se pelo amor – se ele faz causa de desejo uma mulher objeto a, assim como seus filhos.

Os múltiplos usos dos sistemas de nomes encontrados no caso a caso da clínica levam em consideração um real, próprio à psicanálise, que opera sobre um resíduo irredutível, o impossível em jogo tanto na família quanto na sociedade e que comparece na experiência de uma análise. Esse real do sintoma será sempre reinterpretado, isto é, lido – leitura que marca percursos diversos da relação do sujeito com seu inconsciente.

Segundo Lacan, em outro texto, a psicanálise constata que a criança contemporânea revela o que é de estrutura para todos, pois é o sujeito que se encarrega de constituir sua família, quando institui uma distribuição dos nomes de pai e de mãe. Esse ato de nomeação não é sem consequência tanto para o lugar ocupado pela criança que faz uma família quanto para a realização de sua presença como objeto na fantasia materna.

 

Questões sobre o incesto

 

Com o título de “O inferno das famílias”, Alain Merlet (2007, p. 63) traz uma contribuição interessante sobre o tema do incesto. Inicialmente, o autor assinala uma diferença importante entre o semblante incestuoso aparelhado às fantasias e a passagem ao ato incestuoso como um real do gozo e seus efeitos, por vezes profundamente devastadores e destrutivos e sem retorno para um sujeito. Essa diferenciação parece importante na medida em que se verificam, na clínica, com alguma frequência, os semblantes incestuosos constitutivos de fantasias diversas, descortinando os paradoxos do desejo enquanto as passagens ao ato incestuoso ocorrem em situações mais graves em alguns casos de psicose, cujas consequências, em alguns casos, se mostram refratárias ao tratamento. O autor propõe a separação entre o dito e o dizer demarcando a incidência do trabalho clínico sobre as enunciações.

Dos casos clínicos examinados sobre os quais a experiência analítica incidiu, ele extrai três propostas muito pertinentes que constituem, por si próprias, vias de enfrentamento de um tabu que passou ao ato sem as consequências culturais de sua proibição contidas no mito freudiano, ou seja, incesto em sua versão século XXI, que tem o mérito de causar horror, surpresa, mas, por outro lado, de instigar novas premissas:

  1. Não se deve recuar diante do horror do incesto, sob o risco de sacralizá-lo, ignorar sua diversidade clínica e suas coordenadas.
  2. A incongruência de tal ato transpira sempre alguma coisa do objeto com o qual o ser falante tenta responder e se constituir como sintoma.
  3. A disciplina do dizer quando pode cumprir-se é, em si, um tratamento do gozo incestuoso e, portanto, uma realização da proibição do incesto.

A diversidade clínica apontada pelo ser falante mergulhado em um ato que saiu da esfera mítica para o campo do real desvela a inadequação do simbólico para operá-lo e mostra-se atingido por inibições diversas. O convite feito por Miller para outro modo de leitura e interpretação e a busca pelo auxílio da letra sem perder de vista a falta irremediável no campo do Outro parecem mais adequados para abordar o paradoxo de uma proibição no tempo de mutações extremas sem o apoio da relação de causalidade.

Dois paradoxos contemporâneos 

No capítulo dos paradoxos atuais verifica-se, do lado da ciência, a ação desenfreada promovida por um discurso que trabalha no campo da genética e da reprodução, inventando um saber em que todos são animais, combinando, sem cessar, óvulos, espermatozoides, doadores, provetas e úteros que, ao sabor dos caprichos, produzem humanos resultados de combinatórias incestuosas. Os integrantes do avesso das procriações aguardam sem críticas as crianças produtos desses experimentos e sem considerar o impossível situado na origem, o real dos laços familiares.

No campo da educação brasileira, colhe-se, no site Uol Educação[i], de 8 de junho deste ano, a notícia de que o MEC vai recolher das escolas públicas o livro infantil Enquanto o sono não vem, de José Mauro Brant. Um dos contos, “A triste história de Eredegalda”, narra a saga de um rei que queria se casar com a mais bonita das próprias filhas. Quando ela se nega ao casamento, é castigada e acaba morrendo de sede. Destinado a crianças de seis a oito anos, o livro faz parte do Programa de Alfabetização e, antes de ser enviado às escolas públicas, contou com a avaliação e a indicação de órgãos do Ministério da Educação.

A reportagem informa que o recolhimento do conto decorreu de críticas feitas pelos pais, mas, sem situar o teor dessas observações, acrescenta que, segundo a Secretaria de Educação Básica do MEC,

As crianças do ciclo de alfabetização, por serem leitores em formação e com vivências limitadas, ainda não adquiriram autonomia, maturidade e senso crítico para problematizar determinados temas com alta densidade, como é o caso da história em questão[ii].

Recoberto por nomes diversos, práticas científicas, literaturas, bullying, abusos, atos imotivados, compulsões e adições, o tabu do incesto comporta a advertência feita por Lacan nos seus trabalhos iniciais sobre o tratamento da psicose e retomado por Merlet no artigo citado anteriormente: não recuar diante do trabalho clínico instigado pelo horror de um ato que parece, na atualidade, situar-se entre loucura e debilidade.

 


Referências
BROUSSE, M. H. “Un néologisme d’actualité: la parentalité” In: La cause freudienne. Paris: Navarin, 2005, nº 60.117.
LACAN, J. “Os complexos familiares na formação do indivíduo” (1938) In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
LAURENT, É. “Le Nom-du-Père entre réalisme e nominalisme”. In: La cause freudienne. Paris: Navarin, 2005, nº 60. 131.
MERLET, A. “L’enfer des familles” In: La cause freuienne. Paris: Navarin, 2007, nº 65, p. 63.
[i] UOL educação, disponível em https://educacao.uol.com.br/noticias/2017/06/08/mec-diz-que-vai-recolher-livro-infantil-de-escolas-por-falar-de-incesto.htm, acesso em 8/6/2017.
[ii] Idem.

LUCIA MELLO
1. UOL educação, disponível em https://educacao.uol.com.br/noticias/2017/06/08/mec-diz-que-vai-recolher-livro-infantil-de-escolas-por-falar-de-incesto.htm, acesso em 8/6/2017.