Ódio: Obstáculo Ou Condição Para A Psicanálise?
LAMA -RICHARDSON PONTONE
Partimos de uma hipótese: há, em Lacan, duas perspectivas distintas na abordagem do ódio. Uma primeira, que enfatiza a sua vertente como obstáculo à psicanálise, e uma segunda, na qual prevalece o ódio como condição para a análise. Tentaremos distinguir essas duas perspectivas para, com isso, delinear a função da clínica do ódio na experiência de análise.
Ódio: obstáculo à psicanálise
Lacan (1998b) considerou o ódio uma das paixões do ser, junto ao amor e à ignorância. O termo “paixões do ser” indica que se trata do ser, da forma como o sujeito constitui sua existência. Lacan propõe que isso se decide pelo modo como o gozo se relaciona com o saber.
Estabelecer a relação com o saber a partir da pergunta “o que o Outro quer?” condiciona uma demanda do sujeito ao Outro. Uma demanda que coloca em jogo um buraco no saber. As paixões do ser são três modos distintos de tampar esse buraco. O amor se dirige ao saber do Outro suposto como Um. Na ignorância, trata-se de um não querer saber do vazio no saber do Outro. O ódio se dirige ao gozo suposto no vazio do saber do Outro.
Ou seja, ama-se o saber, ignora-se a verdade do saber ou odeia-se o gozo no saber. O amor dedica uma devoção ao saber do Outro. O ódio parte do pressuposto de que o saber é um engodo que esconde um gozo. Por isso, o ódio denuncia o semblante e se dirige ao que o saber não alcança. “O amor ou o ódio. Um é cego e o fará entregar as armas. O outro é lúcido, mas despertará suas suspeitas” (LACAN, 1998a, p. 45). Se o amor se baseia no engano como a via para se alienar no saber, o ódio, ao expor o engano do amor, torna-se refém das suspeitas que suscita. Mas a suspeita permanece como uma manifestação amortecida do ódio.
Diante da oferta do saber do Outro, há uma pergunta que se coloca do lado do sujeito: “O que ele quer?”. O sujeito, por antecipação, suspeita que o saber do Outro o deprecia. Como se o saber que o Outro apresenta fosse um modo de dizer ao sujeito: “Você não sabe de nada!”. O sujeito interpreta que o Outro goza dessa depreciação que ele promove. Tudo o que vem do Outro, qualquer palavra ou gesto, fica sob o jugo dessa interpretação. Trata-se de uma antecipação na medida em que vai mais além do que se sabe, uma suspeita que não dispõe de provas. E quanto mais não se tem provas, mais essa suspeita retorna insistentemente. A suspeita é uma resposta do sujeito à mensagem de desvalorização que ele recebe do Outro.
Quando o saber perde sua articulação ao desejo do Outro, este ressoa como um blá-blá-blá sem fim. O sujeito considera que o saber que o Outro veicula é um meio pelo qual ele goza do sujeito, manipula-o. O sujeito sente-se humilhado e menosprezado. Acusa o Outro de ser invasivo, de se intrometer na sua intimidade. O gozo do Outro torna-se um obstáculo para a via do saber.
A recusa, do simbólico ao real
Apresentado o ódio como obstáculo à transferência, cabe questionar como conduzir tal questão. Propomos a noção de recusa como a via para essa condução. A recusa é uma noção que viabiliza um manejo do ódio na clínica. A recusa é uma defesa, anterior à resistência, que está na base da estrutura psíquica. A recusa é inaugural da relação do sujeito com o real. Ela visa uma extração de gozo para fazer existir o Outro como um lugar onde o sujeito possa se colocar. Se na resistência o gozo é um obstáculo, na recusa ele é o terreno onde a operação se realiza.
Há um gozo sempre deslocado, um gozo a mais que não encontra seu devido lugar. É sobre ele que a recusa incide. Se esse gozo está do lado do sujeito, o Outro interdita. Se se coloca do lado do Outro, o sujeito contesta. Se interditar o gozo do sujeito é a via para o amor ao Outro advir, quando o sujeito se defende do gozo do Outro, é do ódio que se trata.
Lacan esclarece esse impasse com um aforisma topológico decisivo para a noção de recusa: “Peço-te que me recuses o que te ofereço porque não é isso”. Pedido, recusa e oferta constituem um nó cuja interseção circunscreve o não é isso, onde se apresenta um furo, o objeto a. É preciso decifrar essa montagem.
Primeiramente, o Outro recusa que o sujeito goze do que não deve, o que chamamos de interdito, operação inaugural do campo simbólico. Essa recusa nos introduz na estrutura do aforisma ao qual nos dedicamos. A partir daí, o sujeito oferece ao Outro o gozo ao qual renuncia. Quando esse gozo se transfere, o sujeito pede que o Outro o recuse também em seu campo. Ele o pede impondo sua própria recusa: não é isso. Sua recusa incide separando o objeto a e o gozo, esvaziando o objeto para que possa fazer surgir ali o desejo do Outro. Por isso, Lacan (2012) acrescenta ao seu aforisma: “Peço-te que me recuses o que te ofereço porque não é isso o que tu desejas”.
A condição para que o desejo possa se colocar é que o gozo do Outro seja barrado. A defasagem entre o gozo obtido e o gozo esperado é onde o desejo se instala. Quando o sujeito se recusa ao que o Outro propõe, não se trata de uma oposição. Trata-se de uma demanda carregada de ódio. Uma demanda que se dirige à vontade de gozo que o sujeito atribui ao Outro. Considera que o Outro goza de subjugá-lo como objeto.
A saída dessa querela está condicionada a que o desejo do Outro se apresente. Que ele renuncie ao gozo indevido e abra espaço para o vazio de saber a partir do qual outros possam se apresentar. Ou seja, a solução para o problema do saber está na ausência de solução, no impossível de saber.
A princípio, a recusa é um resultado do deslocamento do gozo do campo do sujeito para o campo do Outro. Contudo, um problema se coloca. Na época do Outro, que não existe, não há Outro para recusar o gozo. Ao contrário, trata-se de uma civilização assolada pelo imperativo: “Goza!”. Esse gozo ilimitado que marca a subjetividade contemporânea tem incidência sobre a função da recusa. Ela marca uma ruptura do laço simbólico do sujeito com o Outro e evidencia uma nova relação entre esses dois termos em um contexto em que o gozo não encontra mais um limite ou um cativeiro no qual se abrigar.
Para propor o estatuto da recusa na atualidade, partimos de outro aforisma lacaniano: “O que é recusado no simbólico (…) reaparece no real” (LACAN, 2003, p. 257). Se o gozo não pode aceder ao simbólico, ele retorna no real do corpo, um real não localizado na estrutura. Em outras palavras, quando o Outro é recusado como lugar para localizar o gozo, o gozo retorna no corpo como corpo do Outro. A pulsão se expõe como uma exigência acéfala do corpo, “uma demanda que não se pode recusar” (MILLER, 2011, p. 196).
A sociedade do não-todo produz um sujeito que se recusa a representar o gozo do corpo no simbólico. Recusa-se a oferecer sua castração como prova de amor ao Outro. Trata-se de um corpo que visa ao acesso direto ao gozo como Um, apartado do Outro. Com isso, o Outro resta como corpo, como o corpo do Outro, lugar de manifestação de um gozo desregrado.
No lugar do amor ao Outro, surge o ódio ao gozo do corpo. Esse ódio não se restringe à perturbação que ele experimenta no próprio corpo, mas se coloca também em relação ao gozo do Outro, que se mostra inconciliável com o seu modo de gozar. O insuportável do gozo do Outro é a via que o conduzirá à eleição do Outro mau.
Podemos traduzir isso do seguinte modo: primeiramente, o sujeito se recusa ao amor ao Outro, “eu não o amo”, e isso pode leva-lo à prevalência do gozo do Um, “eu só amo a mim mesmo”. Trata-se de uma modalidade megalomaníaca de afeto, uma ideia de grandeza comum na atualidade. Contudo, a presença do gozo do Outro ameaça esse gozo solitário. Daí advém uma modificação no afeto: “Eu não o amo. Eu o odeio”. É o ódio ao Outro que se coloca como condição para a existência do Outro mau, o que permite uma interpretação: “Eu o odeio porque ele me persegue”. Está aí a lógica de assunção do Outro mau.
A recusa ao amor conduz ao ódio e à consequente localização do Outro mau. Uma passagem do sujeito que recusa o Outro, que não existe, até o sujeito que se encontra submetido a uma presença absoluta de um gozo do Outro sem limites. Para se separar desse Outro que se apossou do gozo do seu corpo, o sujeito pode reincidir em sua recusa de formas cada vez mais extremas. Pode ir, desde o desleixo com a própria aparência, até praticas de risco que testam os limites do corpo e dos laços sociais. Pode, até mesmo, oferecer a vida como cacife.
O sujeito recusa o campo do Outro por só conseguir fazê-lo existir sob a forma depreciada do Outro mau. Ele se recusa a oferecer sua castração ao Outro, pois isso implica ceder o gozo ao Outro. Um ciclo destrutivo se constitui: quando ele se refugia do gozo do Outro mau, resta confinado no gozo ilimitado de um corpo que é Outro. O corpo sozinho é lugar de um sofrimento devastador. Mas não há como fugir, pois a ameaça que habita no corpo também está no campo do Outro.
Quanto mais o Outro mau se impõe, mais o sujeito se experimenta como um dejeto. A recusa no real é sempre uma demanda de que o Outro recuse o gozo que o sujeito lhe atribui, que o Outro recuse a consistência do gozo malévolo para ascender à inconsistência dos caminhos do saber.
Ódio: condição para a psicanálise
Talvez possamos questionar se o ódio não seria o anteparo mais lúcido para viabilizar ao sujeito uma nova aliança com o saber. Mas qual seria a aliança possível entre o saber e o ódio que o sujeito direciona ao gozo do Outro? Como diz Lacan (1985, p. 122), “se precisamos hoje renovar a função do saber, é talvez porque o ódio nele não foi, de modo algum, posto em seu lugar”.
Nesse sentido, Lacan (1985, p. 122) constata que “não se conhece nenhum amor sem ódio”. Os laços entre os homens estão alicerçados nas bases precárias do ódio entre eles. O ódio é a via para o amor. Se alguém não suporta odiar, está impossibilitado de amar o Outro. Essa conclusão se opõe ao mandamento cristão de amar ao próximo.
É preciso distinguir o ódio como obstáculo e como condição para o acesso ao saber. O ódio cego ao gozo do Outro faz existir o Outro como um obstáculo. Ou seja, o sujeito faz do gozo que ele atribui ao Outro um impedimento para o acesso ao saber. Ele não o consegue quando se coloca em uma posição de dejeto rejeitado pelo saber do Outro. Torna-se refém de um Outro mau do qual ele se coloca como o alvo a ser atingido.
Mas há uma outra perspectiva. A transferência negativa coloca em jogo o real que movimenta o discurso. O ódio se dirige ao real que o saber não alcança e evidencia a inexistência do Outro. É o que Lacan definiu como paixão mais lúcida.
Isso se evidencia em “uma relação de desconfiança vigilante”[i] (MILLER, 1999, p. 72). O sujeito mantém o Outro na mira para verificar como ele se vira com o furo no saber, com o impossível que isso comporta. Isso é o que, a princípio, garante o laço do sujeito com o Outro: “para desconfiar de alguém, é preciso esperar algo dele”[ii] (Ibid., p. 68). O sujeito pode dedicar-se ao que o Outro diz à espera de um tropeço, de um equívoco. Essa contenda pode ser decisiva, desde que a desconfiança seja a via para a abertura a um novo saber.
Esse real que mobiliza a transferência é a via para que o sujeito se separe do gozo que ele supõe no Outro e, assim, reverta o saber em um instrumento útil. Por um lado, há o amor cego que se dirige ao saber do Outro e o ódio cego que se dirige ao gozo do Outro. Ambos conduzem à alienação. Por outro lado, há o “ódio lúcido”, que oculta um amor à inexistência do Outro. Um novo amor, sem limites, que conduz à separação.