“Os Alicerço Da Terra”: Notas Sobre Ô Fim Do Cem, Fim…
LUCÍOLA FREITAS DE MACÊDO
I.
O delírio e a escrita de Paulo Marques de Oliveira conjugam ciência e religião: um delírio de fundo religioso e cosmológico é aparelhado pelo discurso da ciência, ao modo de um manual explicativo, com vide bula e modo de usar. Ele é, sobretudo, um orador, que não apenas escreve, mas desenha seu discurso. Procede a uma escrita da fala, em uma língua própria, a sua língua fundamental, permeada de neologismos. Em Ô fim do cem, fim… (2011), testemunha sobre seu inconsciente — a céu aberto — e sobre o modo como é habitado pela linguagem. Escrevendo sua fala, vai encontrando, também, como seus escritos atestam, seu modo singular de habitá-la.
Para Deleuze (1997), a psicose e sua linguagem são inseparáveis de um procedimento linguístico. Se, na neurose, navega-se nos mares da significação, nas psicoses, perguntaremos sobre o procedimento linguístico que lhe é específico: o procedimento começa a funcionar quando a relação entre as palavras e as coisas não é mais de designação; quando a relação entre uma proposição e outra não é mais de significação; e quando, por fim, a relação entre uma língua e outra já não será de tradução. É aquilo que manipula as coisas imbricadas nas palavras, e também aquilo que, de uma proposição a outra, constrói toda uma extensão de discursos, de aventuras, de cenas, de personagens e de mecânicas, e também isso que decompõe um estado de língua em outro e com essas ruínas, com esses fragmentos, com esses tições ainda incandescentes, inventa um novo cenário, outra língua. Quando a designação desaparece, quando a comunicação das frases pelo sentido se interrompe, quando o código é abolido, diante do apagamento de alguma dessas dimensões da linguagem: um órgão se erige, um orifício entra em excitação, se erotiza, e um aparelho de linguagem, um procedimento, poderá emergir (FOUCAULT, 2001, p.309-311).
Lanço a vocês a questão: qual é o procedimento de linguagem inventado pelo cientista Paulo Marques de Oliveira?
II.
“Estranhos poemas” é como Michel Foucault designa não o texto, mas a própria vida que o escreveu. Estranhos poemas são os escritores anônimos dos séculos XVII e XVIII visitados por ele nos arquivos de internação do Hospital Geral da Bastilha e nos arquivos da Biblioteca Nacional, aos quais dedica o seu artigo: “A vida dos homens infames” (1999b, p.389-407). O sonho de Foucault era o de, através da beleza e da poesia, do estilo clássico daqueles breves registros, datados de uma época ainda não impregnada pelo tecnicismo dos manuais diagnósticos, restituir a intensidade daquelas vidas, mas, “carente do talento necessário” para fazê-lo, contentou-se em dar voltas em torno delas.
O que encantou Foucault, naqueles escritos, foi sua luminosidade fulgurante, pois que revelam, ao fio da linguagem, um esplendor, uma violência que desmente, aos nossos olhos, a pequenez do caso e a mesquinharia das intenções: as mais lamentáveis vidas são ali descritas, e sua ênfase, que parece convir às vidas mais trágicas. Mas o que se extrai desses escritos é um efeito cômico, uma vez que se apela a todo poder das palavras, à soberania dos céus e da terra, em nome das desgraças as mais corriqueiras. Sua existência se inscreve no abrigo precário dessas palavras, encontradas ao acaso, por alguém inserido na ordem dos discursos e que faz desses estranhos poemas seres de quase ficção.
Foi assim que me senti diante da intensidade cravada na ponta da caneta e da profusão poética do “livro luz”, “o primeiro e derradeiro”, do cientista Paulo Marques de Oliveira. Em sua caprichada caligrafia, na delicadeza das suas ilustrações, experimentei a beleza e o espanto, a emoção, o riso, a surpresa e o calafrio causados pela leitura de seu “livro didático”, “a ensinar o sistema da bateria onde moram as nações, o Senado Federal como guverna, como faz o forno automático produtivo e os anéis de plantio, como trata do gorgulho nos siriais, a germinação dos viventes vertebrados e invertebrados, o modo de fazer a irregação, a medição cúbica de uma lagoa, com faz o plantio da bananeira, como trata do gado, do pasto e o carrapato, os alicerço da terra, a primeira carroça feita por Caim, o mapa da ôca universal, como faz a água transformar em vinho, como faz a caxaça da vida, o pudinho de bom xixi, como faz um prédio de duzentos andares, como Adão e Eva foi germinado, a semente do homem, o que é imjustissa, como faz o parto cem osar cesariano das clínicas, como fazê uma operação de hérnia, cadeira para quem trabalha em escritório, como gera o pinto no ovo, norma de carta para comdolência em falecimento, como faz xuveiro de água morna com lampião” (2011)…
O cientista Paulo Marques de Oliveira, “astrofísico, teólogo, sismografista e profulgenciado”, escreve seu compêndio, esse livro que “é luz do mundo: primeiro e derradeiro”, um “livro didático para todas as gerações”, que irá “brilhar semilhante a estrela da Álva”. À medida que o escreve e o ilustra com esmero, inventa seu procedimento e, com ele, uma ordem para o mundo, com “seus alicerço” e suas leis de funcionamento.
III.
Em 1933, em “O problema do estilo e a concepção psiquiátrica das formas paranoicas da experiência”, Lacan chama a atenção, pela primeira vez, para a riqueza das produções plásticas e poéticas de sujeitos psicóticos, numa época em que a psicose ainda era amplamente concebida em termos de déficit, pela psiquiatria.
Já em 1955-1956, no Seminário 3, as psicoses, a propósito de Memórias de um doente dos nervos, de D. P. Schreber (1985), é enfático ao afirmar:
[…] se ele é com toda certeza um escritor, não é um poeta… há poesia toda vez que um escrito nos introduz num mundo diferente do nosso, e, ao nos dar a presença de um ser, de uma certa relação fundamental, faz com que ela se torne também nossa (LACAN, 1955-1956/1985, p.94).
A poesia, continua Lacan, faz com que não possamos duvidar da autenticidade da experiência de San Juan de la Cruz, de Proust, ou de Gérard Nerval. Ela consiste na criação de um sujeito assumindo uma nova ordem de relação simbólica com o mundo, mas não há absolutamente nada disso nas Memórias de Schreber. Ele é habitado certamente por todas as espécies de existências improváveis,
[…] mas cujo caráter significativo é certo, é um dado primeiro, e cuja articulação se torna cada vez mais elaborada à medida que avança seu delírio. Ele é violado, manipulado, transformado, falado de todas as maneiras, é, eu diria, tagarelado (LACAN, 1955-1956/1985, p.94).
Tudo o que ele faz existir é de alguma maneira vazio dele próprio. E adverte:
As produções discursivas que caracterizam o registro das paranoias desenvolvem-se com toda força, aliás, a maior parte do tempo, em produções literárias, no sentido em que literárias quer dizer simplesmente folhas de papel cobertas com escrita… vocês percebam o que falta aqui ao louco, por mais escritor que ele seja, mesmo a esse presidente Schreber que nos fornece uma obra tão surpreendente por seu caráter completo, fechado, pleno, acabado (LACAN, 1955-1956/1985, p.93).
Não haveria, portanto, na obra do escritor louco, o sentimento de uma experiência original na qual ele estaria incluído como sujeito. Seu mundo aparece esvaziado da presença daquele que testemunha. Com as folhas de papel cobertas com escrita, o louco buscaria integrar seu delírio em uma rede de sentidos e significações.
Outro aspecto distintivo entre o escritor louco e o poeta é assinalado por Lacan no Seminário 5, as formações do inconsciente (LACAN, 1957-1958/1999) e diz respeito à utilização das figuras de linguagem, metáfora e metonímia: não encontramos no texto do escritor louco o uso da metáfora, que é, por sua vez, um elemento constante, e mesmo paradigmático do fazer poético. Há uma preponderância da metonímia, das relações de contiguidade em detrimento daquelas de similaridade (LACAN, 1957-1958/1999). Com a abolição da função metafórica, não há intervalo ou substituição de um significante por outro (S1-S2). Sem esse intervalo, não haveria enunciação. Apenas uma chuva de enunciados. Ao invés de o S2 assinalar o sentido produzido no campo do Outro, ele retorna no real, produzindo o efeito e a certeza delirantes, ou então se cola ao S1, produzindo o efeito de holófrase. Tem-se uma série de S1s sem S2. Uma enxurrada de significantes em bloco, não desmembrável, em sequência monolítica e sem intervalos.
IV.
Lacan se interessou pela obra de Joyce porque este lançou mão de um procedimento de escrita que desconsidera completamente a distinção entre o significante e o significado, subvertendo o que se entendia até então por literatura, pois não necessita do recurso à metáfora como paradigma do fazer poético. De acordo com Miller, nesse momento de seu ensino, Lacan se arriscará a tratar a obra de arte, sobretudo a obra escrita, a partir da pulsão, “a partir… da pulsão escritural. Ela deve ser entendida no autoerotismo do falasser” (MILLER, 2011-2012). A ênfase será posta, desde então, em sua vertente econômica e na extração da libido do corpo. A linguagem, nessa vertente, não visa ao sentido. Concerne ao real do corpo de gozo. Miller (2013) explicita, ainda, a propósito das elaborações de Lacan sobre a escrita, o que chama de “teoria da dupla escritura” (MILLER, 2013, p.16): há uma escrita que está ligada à palavra, se constituindo como uma precipitação do significante (em alusão a “Lituraterra”). O que está em jogo, nessa vertente da escrita, é a precipitação do significante fônico, na medida em que o significante pertence à fala; na medida em que o significante é tido como um fenômeno da fonação. A fala é capaz de depositar-se sob a forma de escritura e ser recomposta a partir dessa marca deixada pelo significante. O que se deposita, sob a forma dessa escrita, é isso de que a voz, com suas modulações, é o suporte.
Mas há outra escrita que nada tem a ver com a fala e com a voz. É um puro traço escrito — o desenho. O nó borromeano representado, desenhado, é dessa ordem. No nó, há escritura, mas esta se apresenta desarticulada da voz e da fala portadora de sentido. Essa escritura não vem do significante, não é da ordem da palpitação do significante, e preserva uma autonomia em relação ao simbólico, não se articulando ao sentido. Interroga-se se essa dimensão da escrita não se prestaria ao horizonte do uso, de um uso da escrita que não se prestaria, por sua vez, à representação, mas ao erotismo do sujeito, à sua satisfação pulsional, ao nível do que Miller chamou de pulsão escritural, quando deu o exemplo de Joyce, que escrevia, sobretudo, para si mesmo, e cujo motor da escrita não era um ideal.
Parece-me que a escrita do cientista Paulo Marques de Oliveira, de modo particular, e a escrita cujo motor seja o delírio, de um modo mais amplo, se deem a ler nessa dupla vertente: por um lado, a da precipitação do significante, quando se trata do esforço de constituir, através do delírio, uma rede de sentido; mas, também, aquela de uma pura satisfação pulsional, movida pelo autoerotismo do falasser. De modo que caberia interrogar, acompanhando Lacan em suas elaborações sobre a escrita ao longo de seu ensino, se não se poderia afirmar que, para cada procedimento de escrita, haveria uma poética que lhe é própria.
Ricardo Aquino, diretor e curador do Museu Bispo do Rosário, observara que, ao criar suas obras, Bispo criava a si mesmo, trabalhando sem descanso, movido por uma força pulsional constante, tecendo com os restos e as sobras que encontrava: utilizava moedas, botões, talheres, canecas, potes e produtos utilitários, deslocados de suas funções originais, e, em seguida, catalogava seus produtos, numerando, listando, colocando placas identificadoras. Aquino nomeou o procedimento de Bispo do Rosário de “poética do inventário” (NAHAS, 2011, p.189). A poética do inventário se inscreve, por sua vez, nas poéticas da modernidade, que são poéticas da ruptura.
Mallarmé (1842-1898) inaugura, com o poema “Um lance de dados” (1897), publicado, pela primeira vez, em 1897, na revista Cosmopolis, um novo gênero de poesia: liberado de sua estrutura linear, desprovido de significação final, marcado por inversões sintáticas, pela suspensão do tempo e desprovido de sujeito. Ele abre as portas para uma nova concepção do poema e da poesia (CAMPOS et al., 1974).
Em sua análise da relação entre as palavras e as coisas, Foucault (1999) afirma que, a partir do século XIX, “[…] a linguagem vai crescer sem começo, sem termo e sem promessa” (FOUCAULT, 1999, p.61). Surge, a partir de então, uma nova legibilidade. O que era ilegível nas folhas de papel cobertas com escrita ganhará um lugar entre os discursos: as folhas de papel cobertas de escrita do cientista Paulo Marques de Oliveira fizeram-se obra, um livro muito bem editado, além de matéria viva do filme dirigido por Cao Guimarães, do qual acabamos de assistir um fragmento, e objeto de criação da última coleção do estilista mineiro Ronaldo Fraga. Seria possível, depois de tudo, afirmar que o procedimento do cientista Paulo Marques de Oliveira não é poesia?
(1) Texto apresentado por ocasião do Seminário Teórico “A ciência e a escrita do delírio”, no âmbito do Núcleo de Pesquisa em Psicose.
Referências:
CAMPOS; PIGNATARI; CAMPOS, D. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 1980.
DELEUZE, G. Louis Wolfson, ou o procedimento, In: ______. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997, p.17-30.
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1999a.
FOUCAULT, M. “La vida de los hombres infames”, In: ______. Obras essenciales volumen II. Barcelona: Paidós, 1999b, p.389-407.
FOUCAULT, M. “Sete proposições sobre o sétimo anjo”, In: ______. Ditos e escritos III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.299-315.
LACAN, J. (1955-56). Seminário 3, as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. (1957-58). Seminário 5, as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1999.
LACAN, J. (1933). “O problema do estilo e a concepção psiquiátrica das formas paranoicas da experiência”, In: ______. Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, p.375-380.
MILLER, J.-A. Seminário de Orientação Lacaniana “O ser e o Um”, Lição XIV, 2011 (inédito).
NAHAS, V. “Retrato do artista como louco”, Arteira, Florianópolis, Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Santa Catarina, n.4, 2011, p.187-190.
OLIVEIRA, P. M. Ô fim do cem, fim… Belo Horizonte: Vereda, 2011.