Paradoxal Virilidade

FABIAN FAJNWAKS

 

VIRILIDADE – DAVID HOCKNEY OLYMPICS POSTER 1984.

Nossa época parece ter incorporado a ideia de que a virilidade não passa de uma impostura, e se Jacques Lacan fazia valer, em 1958, que a ‘parada viril’ não é sem apresentar algum traço da feminilidade, hoje é a própria virilidade que parece se apresentar sob um estatuto paradoxal, até mesmo ‘impossível’ (COURTINE, 2011, p. 7). Talvez mesmo: paradoxal, uma vez que impossível. Lá onde Lacan apontava o efeito de redobramento produzido pela parada viril de se vestir com uma máscara que feminiza o macho, para “representar o macho”, nossa civilização do empuxo-ao-gozo perdeu todo o respeito para com todo semblante, particularmente o semblante fálico, donde essa constatação de “impossibilidade” ou de “paradoxo”. Essas são as palavras que voltam na escrita de um historiador como Jean-Jacques Courtine, para quem a emancipação das mulheres e a liberalização dos costumes minaram o antigo privilégio da virilidade; e essa mudança de regime na civilização produziu o efeito paradoxal de que, “no início do século XX, a virilidade parece se dissociar do corpo masculino do qual ela foi por tanto tempo o emblema, a mercadoria, performance, travestilidade ou paródia, como soube discernir Judith Butler” (COURTINE, 2011, p. 10). Basta seguir o destino que a moda, a publicidade, a indústria cosmética e a cirurgia estética imprimiram no corpo da mulher, nele explorando completamente o paradoxo sublinhado por Lacan, sem que isso perturbe mais ninguém.

 

O direito à satisfação sexual generalizada, a obsessão erétil, a difusão maciça da pornografia, juntamente com a medicalização das falhas genitais, teriam contribuído para uma disseminação de uma cultura da impotência. A virilidade pós estudos do gênero e pós-queer seria, então, uma virilidade fundada sobre a fraqueza: “Como compreender então, pergunta-se o historiador, que uma representação baseada sobre a força, a autoridade e o domínio tenha terminado por parecer frágil, instável e contestada?” (COURTINE, 2011, p. 10). O homem aparece, a partir de então, marcado por um signo de impotência, e os emblemas da virilidade teriam migrado para outro lugar.

 

Essas constatações coincidem com o que a experiência de uma análise ensina: que a virilidade articula um impossível, que está na ausência de uma inscrição do corpo falante no tipo de gênero ao qual ele corresponde. Se as identificações e a relação a um tipo de gozo lhe permitem dar uma solução a esse furo que a sexualidade implica, essa solução se declina sobre um fundo de ausência de um escrito que lhe daria um ser sexuado, ser que, portanto, não cessa de não se escrever. Não surpreende que as observações da época coincidam com as de uma análise, porque agora a análise aborda a experiência do falasser do lado do gozo, para além de todo Ideal e de todo semblante. Exceto que, aqui, em que a época verifica que o homem se apresentaria desprovido de todo semblante, sobretudo fálico, a análise deixa a um homem a possibilidade de se orientar pela relação a um desejo.

 

Angry white men

 

Sabe-se pelos jornais que existe, principalmente nos EUA, uma vasta homem-osfera, que se desenvolveu na internet nos últimos anos, furiosamente misógina, muito irritada contra o gênero feminino e com o feminismo triunfante, e que espera restabelecer o lugar anteriormente ocupado pelo povo masculino. Esses “homens de verdade” viram, na vitória de Donald Trump, uma revanche e um progresso para a causa masculina, contra o antimacho Barack Obama (Cf. LESNE, 2017). É como se o retorno de compensação do discurso sobre a paridade social e familiar tivesse dado lugar à reivindicação dos verdadeiros valores machos e ao movimento “masculinista”. Warren Farrell, autor do O mito do poder masculino, antigo professor na Universidade Rutgers, em Nova Jersey, e ex-militante feminista, talvez constitua o melhor exemplo desse movimento de contrapeso: ele foi eleito três vezes para o Departamento Nacional de Defesa das Mulheres (NOW[i]), no fim dos anos de 1970. Defensor do direito das crianças de contar com ambos os pais após os conflitos relacionados aos divórcios e também com a presença incondicional desses junto aos filhos, atraiu a ira das feministas mais radicais, antes de se tornar abertamente inimigo delas, no momento da publicação de um livro sobre as desigualdades sociais no qual sustenta que os homens têm melhores salários do que as mulheres, mas que elas gozariam de uma vida mais equilibrada, forçando, assim, a ideia de que ganhar mais não implica necessariamente em mais poder.

 

De acordo com W. Farrell, os homens brancos se sentiram incompreendidos quando Hilary Clinton falou sobre a igualdade de salários e se voltaram massivamente para Trump, que soube captar essa parte importante do eleitorado branco, com seu discurso neomachista e discriminatório. Hoje, os homens brancos se sentiriam fracos, não tendo mais a impressão de fazer parte das estruturas de poder, e estariam, então, duplamente fracos, já que as outras minorias os considerariam privilegiados. Eles esperam, assim, que se reconheçam seus ‘sofrimentos’ e que se dê a eles o poder de que gozavam antigamente.

 

Livrar-se do carcan fálico

 

Tomo emprestado de Bruno Halleux o termo carcan[ii] para dizer o quanto, em meu caso, eu idealizava a virilidade e seus semblantes: tendo crescido cercado por mulheres, eu manifestava certo sarcasmo diante da impostura viril, uma vez que eu a via como uma enganação. À maneira do famoso aforisma nietzschiano, atrás dessa impostura eu só via a comédia de um Ideal… Que era também a minha! Pois esse olhar irônico escondia uma certa idealização dessa posição viril associada ao ‘porto fálico’, uma vez que eu me defendia de querer ser o falo do Outro, sob a forma do idiota. Rapidamente, a análise me permitiu desmascarar essa posição que estava na origem das minhas inibições e de meus sintomas e me desalojou dela. Mas isso não me satisfez e eu me lancei à conquista desse Ideal, de ‘superidentificar’ com aquele que tem o falo. No momento em que eu começava a me liberar da posição infantil, na qual eu estava aprisionado, eu me trancava em uma nova jaula: aquela do homem surdo a toda sensibilidade feminina e, até mesmo, às demandas legítimas de abrigar seu ser em minha castração, divisão que eu guardava para mim, deixando a parceira em sua desorientação.

 

Eu me tornava, então, o ator de meu próprio Ideal, dessa vez, viril! Para quebrar essas defesas, precisei, inicialmente, isolar o traço de castração presente nas ‘demandas loucas’ das mulheres da minha família que, para além da minha fantasia fundamental, faziam apelos no sentido de tudo dar ao Outro – verdadeiros cantos de sereias aos quais eu havia respondido amarrando-me ao mastro das inibições, ainda que fosse ao preço de renunciar ao meu desejo. Uma vez que a demanda foi esvaziada desse excesso de gozo, eu pude escutar a demanda de uma mulher e condescender a lhe dar um lugar, ao renunciar ao narcisismo que me protegia desse chamado de medusa. O mais-de-virilidade que eu acreditava assim obter se esvaziou e, com ele, o conteúdo angustiante que lhe dava consistência, revelando, no mesmo movimento, seu caráter de defesa. O Outro que queria minha castração perdeu sua consistência, e eu pude fazer uso do jogo de semblantes que me solicitava como homem, menos viril, certamente, mas ainda mais seguro, podendo, agora, dar sua falta para reconfortar o ser evanescente de sua parceira.

 

Uma análise feminiza um homem, permitindo-lhe estar o mais próximo, mesmo que homem, de uma mulher. Se, para aceder a esse efeito de feminização, ele deve renunciar ao fantasma da castração, assim como ao Ideal de virilidade, que o mantém em sua posição fálica, esse efeito de feminização permite que ele se afirme, mais ainda, em uma posição desejante, para além dos semblantes viris que estão a serviço de sua defesa. Verdadeira posição masculina para além de toda fraqueza ou impotência sintomática entoadas pela época. Se ele perderá de novo, a partir daqui, talvez possa ele perder melhor?

 

Talvez seja esse o verdadeiro ganho de uma análise e a verdadeira subversão que ela introduz em relação ao triunfo da vacuidade contemporânea no que diz respeito aos semblantes. Ali, onde a nossa civilização trata a virilidade como uma mera máscara, com seu efeito curioso de feminização (LACAN, 1966, p. 695), uma análise permite situar o real em jogo na fantasia do falasser, autorizando-o a se desidentificar com as posições que o impediam de aceder a uma posição desejante e, também, aos semblantes que lhe permitem articular seu desejo.

 

 

L’homme au carcan4L’HOMME AU CARCAN4

 


Referências:
COURTINE. J.-J. “Impossible virilité”. In: CORBIN A., CORTINE J.-J., VIGARELLO G. (s/dir.), Histoire de la virilité, Vol. III, Paris, Seuil, 2011.
LACAN, J. A significação do falo (1958). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998a.
LESNE, C. “Les monologues du pénis”, Le Monde, 15 de janeiro de 2017. Disponível na internet.
Tradução: Jorge Mourão
Revisão: Maria Bernadete de Carvalho

FABIAN FAJNWAKS
Psicanalista, AE da Escola da Causa Freudiana e Escola de Orientação Lacaniana – fabian.fajnwaks@orange.fr