Passagem Ao Ato E Adolescência

ANA MARIA C. S. LOPES

ANA MARIA – LOUISE-BOURGEOIS, FEMME MAISON

 

Na clínica contemporânea, deparamo-nos com uma significativa incidência de novos sintomas, sobretudo aqueles nos quais se verifica o privilégio do registro do ato; da convocação do corpo que, por vezes, supõe uma precariedade do registro simbólico, uma tentativa de apagamento da dimensão subjetiva. As mídias anunciam o aumento dos atos violentos no espaço das escolas e da cidade, atos que se inscrevem via o ato compulsivo de utilização de substâncias tóxicas e atos infracionais que expõem o sujeito adolescente a situações de risco. Verifica-se, enfim, a clínica da supremacia do imaginário, da impossibilidade de amarração simbólica, independente da estrutura clínica, e, por conseguinte, o imperativo da clínica do ato.

 

Então, é preciso perguntar: qual é a função que está em jogo na clínica do ato? Lacan faz do ato suicida o modelo de ato, pensa o ato a partir do suicídio, independente da estrutura (neurose, psicose ou perversão). Há algo no sujeito que não trabalha para o seu bem, não trabalha para o útil; ao contrário, trabalha para a destruição. Na elaboração de Lacan, todo ato verdadeiro é um “suicídio do sujeito”. O sujeito não é o mesmo depois do ato, renasce desse ato de modo diferente. Há um antes e um depois. Todo ato é transgressão, no sentido que contém, em si, um atravessamento de uma lei, de um conjunto simbólico.

 

O ato tem uma dimensão paradoxal, pois o sujeito, ao cometer o ato contra o próprio organismo, visa à homeostase. O ato se direciona ao cerne do ser: o gozo. Nessa perspectiva, na adolescência, são comuns os comportamentos de risco, tais como toxicomanias, transtornos alimentares, tentativas de suicídio, entre outras. Soluções que têm a ver com uma prática da ruptura, um curto-circuito da relação ao Outro. Alguns adolescentes prescindem do Outro e até mesmo recusam o Outro na medida em que esses sujeitos devem se separar da autoridade parental. O adolescente não possui palavras para traduzir o que acontece no corpo ou em seu pensamento. O que não se traduz em palavras tenta se inscrever via ato (LACADÉE, 2007).

 

Nesse ponto, torna-se essencial distinguir passagem ao ato e acting out. Podemos falar de acting out quando há uma cena; essa cena é a palavra, e o sujeito se coloca a atuar sobre essa cena sob o olhar do Outro. Necessita do Outro, do espectador. Ao contrário, a passagem ao ato não tem um espectador, o que se tem é a desaparição da cena. Digamos que o sujeito está, eventualmente, morto.

 

A passagem ao ato

 

A expressão “passagem ao ato” tem sua origem na psiquiatria francesa dos anos 20 do século XX, articulada à criminologia, e é utilizada para referir-se, de forma exclusiva, a atos violentos, delituosos. Lacan, na tese de 1932, Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade, e na análise do caso das irmãs Papin (1933), introduz a passagem ao ato como solução mecanicista, liberadora do Kakon, palavra grega que significa “dor”, “desgraça” (VON MONAKOW; MOURGUE, 1928). Nas psicoses autopunitivas, que se traduzem pelo “delírio de interpretação”, as energias autopunitivas do superego se dirigem contra as pulsões agressivas provenientes do inconsciente do sujeito e visam a retardar, atenuar e desviar o impulso assassino. Guiraud (1931) apoia-se em von Monakow e Mourgue e destaca o Kakon como liberação de um complexo de natureza automática que, por ato-reflexo, encontra uma saída mecanicista. Para Guiraud, o objetivo da passagem ao ato é o de desembaraçar o sujeito da sensação dolorosa que o invade, concepção adotada por Lacan na tese de 1932, quando aproxima a passagem ao ato de Aimée ao mecanismo liberador do Kakon, o inimigo interno (LACAN, 1932, p. 236).

 

Em “Agressividade em psicanálise” (LACAN, 1948), o Kakon surge a propósito das reações violentas na psicose. Em “Formulações sobre a causalidade psíquica” (1946), Lacan sublinha que Guiraud reconhece que o sujeito atinge, no objeto que ele fere, o Kakon de seu “próprio ser” (LACAN, 1946, p. 176). Silvia Tendlarz ressalta que Guiraud não relaciona o Kakon ao ser do sujeito, e sim ao mal, à doença, transposto no mundo externo, de forma que Lacan utiliza o “próprio ser” para tratar o ser do sujeito, a saber, o conceito de gozo, como se Kakon nomeasse algo que estivesse fora de teorização naquela época e que, conceitualmente, seria abandonado posteriormente (TENDLARZ, 1990).

 

Em O seminário 10: a angústia, Lacan articula passagem ao ato, angústia e objeto. Lacan concebe o acting out como dirigido ao outro e a “passagem ao ato” como o instante em que o sujeito se coloca no lugar de puro objeto. Então, no primeiro momento (1932), pode-se afirmar que o sujeito passa ao ato para liberar-se do mal interior, ou, por um imperativo superegoico, atinge no outro a imagem de si mesmo. No segundo momento (1962), a passagem ao ato representa o instante em que nenhuma mediação é possível e visa promover uma separação radical do outro. O sujeito “deixa-se cair” sai de cena (LACAN, 1963, p. 118).

 

O sujeito passa ao ato no momento em que não é possível a distância mínima entre o eu e o outro, numa regressão tópica ao especular. Ressalta-se, aqui, o que Lacan introduz como a situação de júbilo da criança diante do espelho, em que ela pede ao outro uma confirmação do que experimenta ao ver sua imagem refletida. A criança, via olhar, via voz do outro, pode fazer a passagem dessa imagem, ainda não unificada do eu, para a unificação da imagem. Então, antes do estádio do espelho, o que se tem é a falta de contorno que a imagem do espelho poderia dar ao sujeito como eu.

 

Em suma, o sujeito se encontra face ao não reconhecimento da imagem especular: algo que não é reconhecido como especularizável pelo sujeito não é passível de ser proposto ao reconhecimento do outro. Aí o sujeito é capturado por essa vacilação, por essa experiência despersonalizante, cuja saída é a passagem ao ato que se inscreve na dimensão do deixar cair, daquilo que é resto. Na passagem ao ato, o sujeito sai da cena (LACAN, 1962). Nessa perspectiva, torna-se necessário distinguir passagem ao ato e acting out.

 

O acting out e a clínica do impossível de dizer a clínica do Real

 

Fenichel (1945), no artigo intitulado “Neurotic Acting-Out”, considera que o acting out alivia, inconscientemente, a tensão interna e produz uma descarga parcial de impulsos, como sentimentos de culpa. A presente situação se encontra conectada com o conteúdo recalcado e é utilizada como uma ocasião para a descarga de energias recalcadas. O acting out é, então, considerado uma descarga de energia egossintônica. É uma forma especial de representação na qual a recordação antiga é representada de uma maneira mais ou menos disfarçada. A experiência recordada conserva sua organização original. Fenichel considera que estar em análise favorece o acting out e há sempre uma qualidade motora da ação que se difunde a todo o acting out (FENICHEL, 1945, apud GREENACRE, 1950).

 

No acting-out, a ação é mais importante do que a linguagem. Em geral, a criança que sofreu frustrações orais expressa seu sofrimento através de uma motilidade difusa e uma exacerbada incapacidade para tolerar frustrações. Possui também uma exacerbação em relação ao ver e ser visto, que marca a fragilidade narcisista do eu, e apresenta, ainda, uma dificuldade de fazer a passagem do pré-verbal ao verbal (FENICHEL, 1945, apud GREENACRE, 1950). Lacan, no Seminário 10: a angústia, na aula de 23/1/1963, irá articular o acting out à cena analítica e enfatizar que não se trata da questão da fragilidade do eu, mas de casos não analisáveis e da supremacia do pré-verbal. Para Lacan, no acting out, está em jogo a questão do objeto, por isso não se trata de intervirmos no sentido de um fortalecimento ou não do ego. O acting out articula-se à cena analítica; a clínica do acting out coloca em jogo o que não pode ser dito – não por um déficit do simbólico, mas por questão de estrutura, em relação àquilo que o simbólico delimita como resto, o objeto a. Se o que está em questão no acting out é o objeto a, a interpretação é inútil. O acting coloca em jogo a clínica do impossível de dizer a clínica do real (RUBISTEIN, 1993).

 

Para Lacan, o acting out não deve de ser interpretado, mas pode ser respondido, via manejo da transferência. Via acting out, o sujeito coloca em jogo, desde a tenra infância, a causa do desejo, via o ato que se dirige ao Outro. Nessa perspectiva, como pensar a clínica do ato na contemporaneidade, sobretudo na adolescência? Aqui, recorro à série da Netflix, adaptada do original 13 Reasons Why, título original do romance de Jay Asher, cujo título da edição brasileira é Os 13 porquês, como paradigma ou modelo para se pensar a clínica do ato na adolescência.

 

13 Reasons Why e a clínica do ato

 

O autor Jay Asher, em 13 Reasons Why, desenvolve o tema do suicídio de uma adolescente e tenta demonstrar que a decisão de tirar a própria vida é dela, mas destaca que as pessoas causam impacto na vida umas das outras. Na narrativa do livro Os 13 porquês, os motivos que a levaram ao suicídio estão gravados em fita cassete. O romance é construído com duas narrativas simultâneas. Na primeira, Hannah conta suas motivações para o ato suicida e, na segunda, o autor descreve imediatamente as reações de Clay, personagem escolhido para ser os “olhos e ouvidos” do leitor ao longo do romance.

 

Hannah escolhe, entre os colegas da escola, treze, aos quais diz: “Vou contar aqui a história da minha vida. Mais especificamente, por que ela chegou ao fim. E, se estiver escutando estas fitas, você é um dos motivos.” Hannah convoca cada colega escolhido a escutar todas as fitas. No momento das gravações doa áudios, talvez seja possível formular que há uma dimensão de acting out. O que está em jogo é a questão do objeto – voz e olhar –, a tentativa da articulação a uma cena, colocar em jogo o que não pode ser dito, aquilo que o simbólico delimita como resto, o objeto a.

 

O acting coloca em jogo a clínica do impossível de dizer a clínica do real. No momento em que Hannah grava essas fitas, a dimensão do Outro está presente. Porém, é possível articular que, no momento em que cada fita é escutada pelos colegas, algumas semanas depois do seu suicídio, a dimensão que o envio dessas fitas provoca é da passagem ao ato. Ou seja, cada um dos lados dessas fitas são tentativas de soluções precárias, que se inscrevem somente na perspectiva especular e criam um percurso que dá consistência à erotomania mortífera, que finalizará no ato suicida.

 

A série Os 13 porquês narra, desde o início, situações habituais da adolescência atual, tal como o primeiro beijo da adolescente – uma experiência que deveria ter sido maravilhosa e que, pela transmissão de uma imagem via WhatsApp por um colega, se torna um dos pontos que, segundo a adolescente, arruinou sua vida. Hannah revela seu sentimento de ter sido traída e as consequências de boatos geradores de uma série de histórias sobre si, entre as quais nem ela mesma sabe qual seria a mais popular. Nessa perspectiva, há, na gravação das fitas, uma tentativa de desembaraçar-se da sensação dolorosa que a invade, do inimigo interno inscrevendo-se no campo da passagem ao ato, enquanto, definido, a partir da noção de Kakon, como liberação do mal interior. Os relatos de Hannah evidenciam a progressão da impossibilidade de distinção mínima entre o eu e o outro e a passagem ao ato e o acting out são tentativas, por vezes precárias, de soluções.

 

Considerações finais:

 

A construção percorrida por Hannah ao gravar as fitas se revela – como solução precária para a ausência de um aparato simbólico – para lidar com a problemática da castração, que, aqui, se presentifica no real. Hanna grava as fitas e as destina a cada um dos colegas. A Justin e Jessica, que a magoaram; a Alex, Tyler, Courtney e Marcus, que destruíram sua reputação; a Zack e Bryan, que abalaram sua alegria; e a Bryce Walker, que destruiu sua alma. O percurso de gravação das fitas, pelo menos momentaneamente, possibilita a ela algum alívio, momento em que procura o orientador da escola e fala sobre seu sofrimento subjetivo; pede ajuda, mas não é escutada. Ressalta-se, aqui, que o modelo do ato, a partir do suicídio, independe da estrutura. O ato é sempre auto: autocastigo, autopunição.

 

Nesse sentido, torna-se possível formular que a adolescência é marcada por algo da ordem do gozo sem sentido, da busca pela construção de respostas. Por vezes, o sujeito adolescente convoca a dimensão do olhar do Outro, momentos em que se verifica a clínica do acting out, mas, na passagem ao ato, não tem um espectador, tem-se a desaparição da cena; o ato é um autocastigo, uma tentativa de separação do Outro. A psicanálise pode oferecer intervenções aos adolescentes, tais quais espaços de conversação para que possam surgir soluções para além do puro ato.

 


Referências
ASCHER, J. Os 13 porquês. 1ª. Ed. São Paulo: Ática, 2009.
FENICHEL, O. “Teoria psicanalítica das neuroses”. Rio de Janeiro: Ateneu. 1945 [1981]. Citado por LOMBARDI, G. Infortúnios del acto analítico. Buenos Aires: Atuel, 1993. p. 31-38.
GUIRAUD, P. “Les meurtres immotivés”. L’Evolution Psychiatrique. 2ª série, mar. 1931.
GREENACRE, P. “General problems of acting out”. In: Psychoanalitic Quaterly, n. 19, 1950, p. 455-467.
LACADÉE, P. “A passagem ao ato nos adolescentes”. (2007). Disponível em: Revista eletrônica do Núcleo Sephora. www.isepol.com/assephalus/numero 04.pdf. p. 85-91. Acesso em 29/1/2018.
LACAN, J. Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
______. “Os complexos familiares” (1938). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1984. In: O seminário 10: a angústia. [1962-63 (2005)]. 1962-1963. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
______. “A agressividade em psicanálise” (1948). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
______. “O estádio do espelho como formador da função do eu” (1949). In: Ibidem.
______. “Formulações sobre a causalidade psíquica”. (1950). In: Ibidem.
MONAKOW, C. Von, MOURGUE, R. “Introduction biologique à la neurologie pathologique” (1928). In: LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
RUBISTEIN, Adriana. “Acerca Del comentário de Lacan ao artículo de Greenacre: problemas generals del acting out”. In: Infortúnios del acto analítico. Buenos Aires: Atuel, 1993. p. 31-38.
TENDLARZ, S; GOROG, F.; CHOURAQUI-SEPEL, C. “Nouvelles considérations sur les meuertres immotivés”. Nervure, t. III, nº. 6, set. 1990.

ANA MARIA C. S. LOPES
Psicanalista praticante, membro aderente da Escola Brasileira de Psicanálise – MG. E-mail: amcslopes@ig.com.br