POR QUE AS MÃES DE HOJE NÃO INTERPRETAM?[1]
MARGARET PIRES DO COUTO
Pós-doutorado em Teoria Psicanalítica pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Aderente da Seção Minas Gerais da EBP
coutomargaret@gmail.com
Resumo: Neste artigo, investigam-se os embaraços dos pais, especialmente do Outro materno, em traduzir o mal-estar das crianças, o que os leva a recorrer cada vez mais ao saber da ciência por meio dos inúmeros especialistas da criança. Partindo da premissa que uma primeira interpretação é fundante do sujeito e que a dificuldade em interpretar a criança responde à inexistência do Outro, discute-se como o discurso analítico instala o Outro retirando a criança da solidão de seu gozo. Com essa operação de restituição do S2, a cadeia significante se produz com importantes efeitos de mobilidade para criança.
Palavras-chave: Criança, Outro, interpretação
WHY MOTHERS OF TODAY DO NOT INTERPRET?
Abstract: This essay investigates the difficulties of parents, especially the maternal Other, in translating the malaise of children, which leads them to increasingly resort to the knowledge of science through the countless child specialists. Starting from the premise that a first interpretation is the founder of the subject and that the difficulty of interpreting the child responds to the inexistence of the Other, we discuss how the analytic discourse settles the Other, removing the child from the solitude of its jouissance. With this restitution of the S2, the signifier chain is produced with important mobility effects for the child.
Keywords: Children, Other, Interpretation.
O título proposto para nossa mesa de hoje me remeteu imediatamente às inúmeras situações encontradas de forma cada vez mais frequente em nossa clínica com crianças: a dificuldade dos pais, especialmente do Outro materno, de traduzir o mal-estar das crianças. Embaraçadas diante das crianças e das demandas surgidas, as mães recorrem cada vez mais ao saber dos especialistas e ao Dr. Google, ou seja, lançam mão de um saber universal e anônimo que dispensa o saber inconsciente.
Como ler esses embaraços, cada vez mais frequentes, no trabalho de interpretação da criança? Minha hipótese é que essa dificuldade responde à inexistência do Outro[2].
A inexistência do Outro e a criança não interpretada
Ao longo do ensino de Lacan, passamos da apresentação do Outro como um campo simbólico, responsável pela inserção do sujeito na linguagem para sua inexistência. O Outro é um lugar de determinação onde o sujeito “se reconhece e se faz reconhecer” (LACAN, 1955-56/1998, p. 193).
Por meio da análise do fenômeno do chiste, Lacan evidenciará como o Outro funciona como um terceiro que autentica o sentido e a presença de um sujeito desejante. A partir do momento em que se endereça a alguém, existe um Outro, não como uma pessoa, mas como um lugar, como sede do código e da Lei. Trata-se da existência do Outro do Outro e da crença no significante do Nome-do-Pai como aquele que funda a existência da Lei, que ordena a linguagem e instaura uma ordem simbólica (LACAN, 1957-1958/1999).
No Seminário 6 (1958-1959), Lacan revelará o grande segredo da psicanálise ao lançar sua fórmula “Não há Outro do Outro”. Indica que ao Outro falta um significante que possa responder ao sujeito sobre seu ser e sua essência de verdade.
Essa fórmula será retomada no Seminário 16 (1968-1969), quando Lacan inscreve a relação da inconsistência do Outro por meio da elaboração do objeto a que poderá ser dele extraído.
Apesar de, por muito tempo, a psicanálise ter enfatizado a exploração do Outro como tesouro do significante e lugar da verdade, Lacan proporá, a partir do Seminário 20 (1972-1973), uma báscula decisiva com o tema da substância gozante. Define o gozo como uma espécie de fundo informe que pode inclusive transbordar. Trata-se de um gozo impossível de ser negativado pela operação da castração que perturba e afeta o corpo.
Importantes reformulações conceituais serão operadas no ensino de Lacan ao dar primazia ao gozo, entre eles, o conceito de falasser. A principal consequência do conceito de falasser é esclarecer que o sujeito surge não da relação com o significante, como definido em seu primeiro ensino, mas da relação indizível com o gozo. Se o sujeito surge de uma relação com o gozo indizível, não podemos escrevê-lo de saída. Há, desse modo, dois tempos distintos da produção de um sujeito: o da relação com o gozo e o da relação com o Outro (MILLER, 2008).
Da mesma forma que não há sujeito prévio, não há um Outro que existe a priori. O prévio e o absoluto estão localizados do lado do gozo. O gozo provém do Um e não estabelece relação com o Outro. Desse modo, a inexistência do Outro nos conduzirá à consistência do gozo e à existência do Um totalmente só. “O Outro que não existe, quer dizer exatamente que o Um existe. O Outro que não existe é uma outra maneira de dizer o que Lacan lançou como uma jaculação: Yad’l’Un (Há o Um)” (MILLER, 2011, p. 139).
“Sem dúvida, Lacan começou por ordenar a experiência analítica pelo campo do Outro, mas para demonstrar em seguida que, definitivamente, esse Outro não existe (…). O que existe é o Um-sozinho.
O Um-sozinho uma análise começa por aí: quando alguém não tem nenhum outro recurso senão confessar-se exilado, deslocado, indisposto, em desequilíbrio no cerne do discurso do Outro. E é para buscar na análise um ‘outro’ Outro, um Outro que alguém tem o prazer de inventar à sua medida, um Outro suposto saber o que atormenta o Um-sozinho” (MILLER, 2013, p. 14).
Como interpretar a criança em uma época em que o lugar do Outro como o lugar do código, lugar da garantia da significação, inexiste? Daniel Roy (2015) afirma que o problema se complica pelo fato que o Outro, ele mesmo, em suas encarnações, se encontra infiltrado pelas manifestações de gozo em excesso e sem recursos para fazer face a ele. Daí a urgência em dizer como e por quais vias eles interpretam a criança.
A criança é quem interpreta o mundo, e, ao mesmo tempo, ela é interpretada, afirma Miller (2016). É por meio do código do Outro que se dominam e se neutralizam as necessidades, operação que permite que aquilo que era do campo da necessidade se transforme em demanda inaugurando também um circuito de linguagem. Assim, uma primeira interpretação da criança é fundante de um sujeito. Essa interpretação viabiliza a constituição subjetiva em sua relação com um desejo não anônimo (LACAN, 1969).
A interpretação em sua vertente criacionista e o discurso analítico
Para Laurent (2017), Lacan se opõe à definição de um desejo inconsciente que já existiria previamente, bem como se opõe à noção de interpretação como uma linguagem que o decifraria colocando-o à vista. Um inconsciente não é uma coisa dada. Ele aparece ao longo da prática da psicanálise, que torna possível o surgimento desse inconsciente inseparável do seu dito interpretativo. O discurso analítico transporta com ele o lugar do Outro. Ao instalar e dar função ao Outro, permite-se a tradução e a substituição da criança-objeto do discurso social ou familiar pela criança-sujeito de sua própria tomada de palavra.
Desse modo, o analista se encontra em posição de validar o código do Outro, validar as regras. Na clínica com crianças, o analista é um instrumento que toma iniciativas, como uma espécie de GPS que permite a localização para cada falasser de sua posição subjetiva (MILLER, 2016).
A instalação do lugar do Outro, bem como a extração do sujeito, foi o efeito percebido na interpretação de uma criança em tratamento. Com a queixa de problemas na escola, fruto de sua desorganização e dispersão, Sávio chega ao tratamento sem que os pais estranhassem qualquer coisa no comportamento do filho. Eles nada têm a dizer sobre o garoto, o que indica a pobreza simbólica em torno dessa criança. As entrevistas iniciais com os pais giram em torno dos problemas do casal, especialmente as situações de violência e ameaças. Tomados pelo próprio gozo, nada de interpretação do sofrimento da criança pode ser colhido nesses encontros. Um esboço de interpretação surge do lado de uma amiga da família, que, ancorada no saber psicológico e psicopatológico, busca traduzir o sofrimento de Sávio com o diagnóstico de autismo e, assim, solicita o atendimento da criança. Na sessão com a criança, ela me diz que fica “conversando com vozes, com pensamentos que ficam dentro da minha cabeça” e que isso lhe deixava muito triste. Pensando em retirá-lo disso que considerei um monólogo, digo-lhe: “Então, a partir de agora, você pode falar comigo”. A partir desse momento, conversamos sobre seus jogos eletrônicos preferidos e ele pode apresentar seu saber e suas habilidades em construir estratégias de sobrevivência diante do invasor. Sávio vai tomando gosto pela palavra e uma conversação se instala entre nós. Relata que as vozes permanecem, mas não têm mais afetado seu corpo nem causado tristeza.
O monólogo com as vozes/pensamentos a que Sávio estava submerso representava um índice de uma criança sem o Outro. Em “O monólogo da aparola”, Miller (2012) discute como que no nível da aparola não há diálogo, não há comunicação, há autismo. Não existe aí o Outro com maiúscula. A aparola não tem por princípio o querer-dizer ao Outro ou a partir do Outro. A aparola é no que se transforma a fala quando é dominada pela pulsão, quando ela não garante a comunicação, mas o gozo.
Nesse mesmo texto, Miller (2012) indica que é preciso um limite ao monólogo autista do gozo. Sendo assim, a interpretação analítica limita, faz limite e, por isso, se situa mais como uma contenção do que como um relançamento. Teria sido esse um dos efeitos da interpretação no caso de Sávio, uma contenção a esse gozo que parasitava seus pensamentos e seu corpo?
As vozes que perturbavam Sávio revelam a dimensão parasita da linguagem que produz nessa criança um mutismo. O último ensino de Lacan permite considerar que o significante sozinho, tomado como um fenômeno elementar, se impõe ao sujeito e testemunha os fenômenos de gozo e seus efeitos no corpo. O fenômeno elementar evidencia, de forma particularmente pura, a presença do significante sozinho, suspenso, na espera de outro significante para lhe dar sentido. O automatismo mental torna manifesto a xenopatia fundamental da palavra e o estado original da relação do sujeito com alíngua, ou seja, a dimensão parasita da linguagem, que parasita o corpo com um gozo intrusivo e transbordante (MILLER, 1996).
Lacan, no capítulo “Joyce e as falas impostas”, no Seminário 23: o sinthoma ([1975-1976] 2007), afirma sobre esse parasitismo:
“Como é que todos nós não sentimos que as palavras das quais dependemos são, de algum modo impostas?
É justamente por isso que o que chamamos de doente vai algumas vezes mais longe do que o que designamos como um homem saudável. A questão é antes saber por que um homem dito normal não percebe que a fala é um parasita, que a fala é uma excrescência, que a fala é a forma de câncer pela qual o ser humano é afligido. Como pode haver quem chegue inclusive a senti-lo?” (LACAN, 1975, p. 92).
A interpretação como a instalação de um Outro e extração do sujeito
O caso de Sávio nos ensina que a invenção, mínima que seja, do campo do Outro, por meio da extração do gozo em excesso, permite ao falasser um pouco mais de mobilidade e menos petrificação em uma determinada posição. Sendo assim, diante da inexistência do Outro, é necessário inventar um Outro que possibilite retirar o ser falante da solidão de seu gozo.
O Outro, não sendo prévio, é um lugar produzido por meio do apagamento do Um original. De acordo com Miller (2011), a fórmula de Lacan indica que o Outro é “Um em menos”, ou seja, é somente com o apagamento do Um que se torna possível a constituição do lugar do Outro e a produção da cadeia significante. Sendo assim, na análise, busca-se restituir o dois, acrescentando ao Um sozinho o S2 que lhe permitirá, ao produzir a cadeia, fazer sentido e, posteriormente, se deparar com aquilo que não muda, insiste e itera (MILLER, 2011).