Psicose ordinária: paradigma da clínica contemporânea?

Edwiges de Oliveira Neves
Psicóloga clínica
Mestre em Psicologia (PUC/MG)
Ex-aluna do Curso de Psicanálise do IPSM-MG
edwigespsique@yahoo.com.br

Resumo: Há um consenso entre os analistas de que os sujeitos hipermodernos se apresentam na clínica um tanto refratários aos moldes de intervenção tradicionais, de uma clínica psicanalítica interpretativa, que tinha o Édipo como teoria central. Com a queda dos ideais, a transferência não opera da mesma forma, e os sintomas, não mais interpretáveis, vêm rotulados como distúrbios. Em tempos em que o Outro não existe, os sujeitos podem encontrar outras maneiras de se estabilizarem e de fazerem laço social para além do Nome-do-Pai. Nesse sentido, nos questionamos: como a psicose ordinária pode contribuir para a clínica contemporânea?

Palavras-chave: psicose ordinária; paradigma; clínica contemporânea. 

ORDINARY PSYCHOSIS: PARADIGM OF CONTEMPORARY CLINIC? 

Abstract: It is a consensus among analysts that hypermodern subjects present themselves in the clinic somewhat refractory to the traditional intervention patterns of an interpretive psychoanalytic clinic, which had Oedipus as its central theory. With the fall of ideals, transference does not operate in the same way and the symptoms, no longer interpretable, come now labeled as disorders. In times when the Other does not exist, subjects can find other ways to stabilize themselves and to form a social bond beyond the Name-of-the-Father. Therefore, we ask ourselves: how can ordinary psychosis contribute to contemporary clinical practice? 

Keywords: ordinarypsychosis; paradigm; contemporary clinic.

 

Imagem: Renata Laguardia

Há um consenso entre os analistas de que os sujeitos hipermodernos se apresentam na clínica um tanto refratários aos moldes de intervenção tradicionais, que a transferência não opera da mesma forma e que os sintomas se apresentam sob outras roupagens.

Em tempos em que o Outro não existe, os sujeitos podem encontrar outras maneiras de se estabilizarem e de fazerem laço social, para além do Nome-do-Pai. Nesse sentido, questionamos se a psicose ordinária seria o paradigma da clínica contemporânea. 

Psicose ordinária 

Fruto de um movimento iniciado em 1996, o termo criado por Jacques-Alain Miller, e que foi tornado público em 1998, questiona a clínica estruturalista inicialmente proposta por Lacan e estaria em consonância com seu último ensino.

A expressão “psicose ordinária” não possui uma definição rígida. Não se trata de um novo conceito, mas de um significante cuja aposta é fazer eco na prática clínica. Uma tentativa de resposta diante da impossibilidade de classificar alguns casos dentro do binarismo neurose ou psicose.

Na primeira clínica, Lacan admite a metáfora paterna como a operação que irá trazer uma estabilização ao registro imaginário no início da vida psíquica. Na segunda clínica, a metáfora paterna perde o status de nomeação e ganha o lugar de predicado, passando a designar uma das muitas possíveis amarrações dos três registros. O sujeito pode nunca desencadear uma psicose fazendo uso de outras soluções que fazem as vezes do Nome-do-Pai.

Nesse sentido, a introdução da categoria clínica “psicose ordinária” tem, segundo Miller (2010) duas consequências em direção oposta: por um lado, uma maior precisão no diagnóstico da neurose e, por outro, uma generalização do conceito de psicose.

No que se refere à primeira consequência, Miller (2010, p. 20) afirma:

Vocês precisam de certos critérios para dizer “é uma neurose”: uma relação com o Nome-do-Pai, não um Nome-do-Pai; devem encontrar algumas provas da existência do menos-phi, da relação com a castração, com a impotência e a impossibilidade. Deve haver – para utilizar os termos freudianos da segunda tópica – uma diferenciação nítida entre Eu e Isso, entre os significantes e as pulsões; um supereu claramente traçado. Se não existe tudo isso e ainda outros sinais, não é uma neurose, trata-se de outra coisa.

Quanto à generalização do conceito de psicose, Miller (2010) nos esclarece que a concepção de Nome-do-Pai enquanto predicado implica em um apagamento das fronteiras entre neurose e psicose, uma vez que todo ordenamento é delirante: todo mundo é louco. Na neurose, a fantasia. Na psicose, o delírio.

Trata-se, então, de que alguns sujeitos encontram em outro significante uma suplência ao Nome-do-Pai, permitindo-lhes viver experiências no laço social com alguma estabilização. Neuróticos ou psicóticos, cada sujeito cria a sua solução, uma invenção.

Na perspectiva milleriana, seja na neurose, seja na psicose, o sujeito criará maneiras de se defender do real do gozo. Na neurose, o sintoma vem como suplência à insuficiência do pai real. Já na psicose, a solução vem em suplência ao Nome-do-Pai.

Uma vez que não será a presença ou a ausência do Nome-do-Pai que definirá se um sujeito é neurótico ou psicótico – mas, sim, sua posição de gozo no mundo, bem como aquilo que pode grampeá-lo ao seu corpo e permitir-lhe localizar-se no laço social –, interessa-nos saber o que as psicoses ordinárias podem nos ensinar sobre a direção do tratamento psicanalítico dos sujeitos sob transferência em tempos em que o Outro não existe.

Paradigma 

Agamben (2009), após vasta pesquisa sobre a utilização da terminologia “paradigma” por diferentes filósofos, define o conceito, aproximando sua pesquisa à de Michel Foucault. O paradigma agambeniano seria um exemplo, um modelo que, ao mesmo tempo em que expõe a categoria a qual pertence, não exclui sua particularidade. Exclui a dicotomia entre universal e particular. Trata-se de um método (de pesquisa) que não é dedutivo, nem indutivo, e que parte da singularidade em direção a ela mesma.

Tratar um fenômeno como paradigmático seria concebê-lo como uma figura epistemológica. Uma ilustração que explica, por si só, o conjunto do qual faz parte, sem, contudo, transformá-lo em regra geral ou em categoria replicável. Assim, o panóptico seria paradigma da sociedade de controle e o shopping center o paradigma da sociedade de consumo. Seria a psicose ordinária o paradigma de uma era que denuncia a falência do Nome-do-Pai?

O paradigma enquanto via alternativa que comporta um indecidível entre o particular e o universal, pode se alojar no intervalo, na lacuna que marca a condição de existência do sujeito freudiano. Como esclarece Miller […], por sujeito entendemos o “efeito que desloca, sem parada, o indivíduo da espécie, o particular do universal e o caso da regra”. Se no reino animal cada indivíduo é exemplar perfeito de sua espécie, realizando exaustivamente o universal, o ser atingido pela linguagem nunca realizará exaustivamente nenhuma classe nosológica. Se é justamente ao efeito deste hiato que chamamos sujeito, consideramos que o paradigma, ao se afastar do positivismo que explora a antítese entre o particular e o universal, resguarda o negativo que sustenta o sujeito do inconsciente. (CARVALHO, 2020, p. 60)

Inferimos que a psicose ordinária pode ser tomada como modelo paradigmático da clínica contemporânea, apoiados na seguinte declaração de Laurent e Miller (1998, p. 9):

Como operar todos os dias na prática, sem inscrever o sintoma no contexto atual do laço social que determina sua forma, na medida em que ele o determina na sua forma? Temos a intenção, Eric Laurent e eu, de afirmar este ano a dimensão social do sintoma. Afirmar o social no sintoma, o social do sintoma, não é contraditório com a inexistência do Outro. Ao contrário, a inexistência do Outro implica e explica a promoção do laço social no vazio que ela abre.

Clínica contemporânea 

Miller (2005, p. 7) considera que haveria um consenso entre os psicanalistas de que “os sujeitos contemporâneos, pós-modernos e até mesmo hipermodernos são desinibidos, neo-desinibidos, desamparados, desbussolados” e que, na tentativa de identificar um marco para o início deste desbussolamento ele acabou por levantar uma segunda questão: será que não temos bússola ou temos outra bússola? A partir dessa pergunta, ele levanta a hipótese de que a bússola atual é o objeto a e que, sendo assim, o discurso de nossa época remonta à estrutura do Discurso do Analista, assim como o discurso do inconsciente remonta à estrutura do Discurso do Mestre.

Para Miller (2005), à época de Freud, o mal-estar produzido pela civilização nos sujeitos vitorianos se devia à imposição de um recalcamento de gozo. Entretanto, o mal-estar que vivemos hoje diz respeito a um imperativo de gozo. A que se deve tal mudança? Segundo a hipótese milleriana, instituída a psicanálise com Freud, antecipa-se, de alguma maneira, a ascensão do objeto mais-de-gozar ao zênite social. A elevação do objeto a ao status de bússola em nossos dias seria uma das repercussões de um século de exercício da psicanálise.

As condições de possibilidade para a criação da psicanálise foi o sintoma histérico: um real que faz furo no discurso da ciência. Dar sentido ao real do sintoma, tomá-lo como verdade foi o saber-fazer instituído e transmitido por Freud. Entretanto, o sintoma não se apresenta mais da mesma maneira. Ali, o sintoma era o efeito de uma moral civilizada, o resto de uma operação que tentava domar as pulsões. Se hoje o imperativo é “Goze!”, os sintomas não se apresentarão da mesma forma:

Nos dias de hoje, acrescentando-se ao mal-estar da psicanálise, produziu-se uma cisão do ser no sintoma. […] O sintoma tinha algo a dizer. Era definitivamente a intencionalidade inconsciente que fazia consistir o sintoma. Pois bem, na palavra sintoma, o “sin” se foi e só restou o “toma”. Doravante, o sintoma foi reduzido a distúrbio. (MILLER, 2005, p. 15)

Segundo Laurent e Miller (1998), a subjetividade contemporânea está submersa, em escala industrial, por semblantes, sob um movimento difícil de ser resistido. Acrescentam que o simbólico contemporâneo está escravizado pelo imaginário, submetido a ele. À psicanálise resta convocar o real.

Se na era vitoriana havia uma identificação vertical ao líder, às instituições, o que vivemos no capitalismo tardio é uma identificação horizontal. Como ”sequelas da escalada do objeto a ao zênite social” (LAURENT; MILLER, 1998, p. 15), temos homens e mulheres determinados pelo isolamento, cada um com seu gozo, bem como a proliferação dos comitês de ética.

Se hoje “pode-se dispensar o Nome-do-Pai enquanto real com a condição de dele se servir como semblante” (LAURENT; MILLER, 1998, p. 6) e se uma psicose pode estabilizar-se através de um substituto do Nome-do-Pai, entendemos que a clínica pode se servir da psicose ordinária, em sua pluralidade de amarrações, como paradigma para o tratamento de sujeitos que apresentam sintomas decorrentes da queda do Pai.

Assim, a leitura binarista da clínica estrutural se mostra insuficiente para abordar os sujeitos hipermodernos e seus sintomas pulverizados. Laurent (2020) afirma que Lacan, em seu último ensino, nos deixa indicações para reinventar a psicanálise e compreendemos que nosso ponto de partida é, portanto, a clínica borromeana.

De acordo com Laurent (2020, p. 49, tradução nossa), Lacan nos aponta que há “uma estabilização da metáfora delirante graças a uma ficção não edípica” e que esse apontamento pode ser generalizado quando o relemos a partir da segunda clínica. Se na psicose não existe um Outro bem construído, a direção do tratamento dos sujeitos psicóticos nos serve como baliza para o manejo clínico psicanalítico dos sujeitos na contemporaneidade:

A notação do analista como aquele que segue o que o analisando tem a dizer, é consonante com a descrição da posição do analista como testemunha ou secretário da elaboração que conduz o sujeito psicótico, após a falência do Nome-do-Pai. (LAURENT, 2018, p. 49)

Se, na primeira clínica lacaniana, a psicanálise só seria possível a partir da transferência, que, por sua vez, só existe com um Outro bem estabelecido, como a psicanálise pode operar em tempos em que o Outro não existe? Isso significa dizer que o saber não está suposto no analista e que este, então, operará seguindo o saber do analisante.

Seguindo esta trilha, a posição de sujeito suposto saber é substituída pela posição daquele que segue o analisante. É o analisante quem sabe. Essa mudança de estatuto da transferência, relacionada à inexistência do Outro, implica em irmos na contramão da primeira clínica.

Baseado na fórmula geral da comunicação, de que recebemos a própria mensagem de maneira invertida, o analista será esse Outro que produzirá o efeito de retorno do saber que é próprio do analisante. Entretanto, nos adverte Laurent (2020, p. 44, tradução nossa), “isso só pode funcionar na condição de dar a esse saber seu alcance de singularidade radical. Não se pode saber o que é antes que esse saber chegue a ser recebido em sua forma invertida”.

Nesse sentido, necessita-se do analista para um acréscimo de sentido que faça verdadeiro o tropeço. Uma significação que provoque o despertar. Um significante novo. Assim, o analista secretaria o falasser:

Nos fazemos de destinatário do sujeito que nomeia o gozo não negativizável. Procedemos destacando as nominações mais singulares feitas pelo sujeito. […] Onde havia a hiância no Outro obstruída pelo objeto a não extraído, se constrói uma borda desse Outro pela série de nominações. A série responde ao real sem lei. (LAURENT, 2020, p. 51, tradução nossa)

Na primeira clínica, o analista se colocava como secretário do alienado no campo das psicoses; hoje, tal papel cabe também nas neuroses.

Considerações finais 

Vivemos em um momento em que as fronteiras entre neurose e psicose não são tão claras. A horizontalidade das relações no laço social faz com que o analista não opere mais a partir do lugar de suposição de saber, mas como aquele que secretaria o analisante, auxiliando-o a construir uma série de nomeações que façam borda em sua defesa contra o real do gozo, seja ele neurótico ou psicótico.

O analista, como aquele que devolve ao sujeito, de forma invertida, o que ele lhe diz, será o destinatário que fará um acréscimo de sentido que eleve o saber do analisante à sua singularidade radical, provocando-lhe um despertar, como um significante novo. Para cada sujeito, neurótico ou psicótico, a amarração dos registros real, simbólico e imaginário será uma invenção absolutamente particular. É o que nos ensinam os psicóticos ordinários.


Referências
AGAMBEN, G. ¿Qué es un paradigma? Fractal: Revista de Psicologia, n. 53-54, v. 14, 2009.
CARVALHO, S. O caso paradigmático e a nosologia estrutural. In: TEIXEIRA, A.; ROSA, M. (Orgs.). Psicopatologia Lacaniana II: Nosologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2020, p. 45-72.
LAURENT, É. Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência. Opção Lacaniana. Revista Internacional de Psicanálise, n. 79, p. 52-63. jul. 2018.
LAURENT, É. Tratamiento psicoanalítico de la psicosis e igualdad de las consistencias. In: MILLER, J.-A.; BRIOLLE, G. La conversación clínica. Olivos: Grama Ediciones, 2020, p. 41-54.
LAURENT, E.; MILLER, J.-A. O Outro que não existe e seus comitês de ética. Curinga, n. 12, p. 4-18, 1998.
MILLER, J.-A. Uma fantasia. Opção Lacaniana. Revista Internacional de Psicanálise, n. 42, p. 7-18, 2005.
MILLER, J.-A. Efeito do retorno à psicose ordinária. Opção Lacaniana On-line, n. 3, 2010. Disponível em: www.opcaolacaniana.com.br/nranterior. Acesso em: 14 set. 2021.