RACISMO, CORPO E TRAUMA NA CLÍNICA PSICANALÍTICA
NAYARA PAULINA FERNANDES ROSA
Psicanalista. Advogada atuante em conflitos agrários no Mato Grosso. Pesquisadora do núcleo PSILACS — Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo, da Universidade Federal de Minas Gerais. Integrante do cartel “Psicanálise e Segregação”, inscrito na Escola Brasileira de Psicanálise, seção Minas Gerais | paulinarosapsi@gmail.com
Resumo: O presente artigo discorre brevemente sobre a incidência dos efeitos psíquicos do racismo contra negros no âmbito da identificação imaginária a partir da teoria do estádio do espelho. Fragmentos de casos clínicos ilustram a proposição de que, no momento em que o sujeito é nomeado negro pelo outro, se dá conta de que esse significante conjuga a representação de todas as imagens com as quais aquele que foi nomeado branco não deseja se identificar. Ao ser classificado como negro, o sujeito é fixado em uma espécie de “inferioridade epidermizada”. A escuta desse tipo de sofrimento — que envolve corpo, cultura e palavra — envolve a sutileza na evocação da singularidade da experiência traumática aliada à assertividade de não se recuar na luta antirracista, compreendendo-a como causa que concerne a também a nós, analistas de orientação lacaniana.
Palavras chave: Imagem; corpo; trauma; identificação.
Abstract: The author relies on the tale Bartleby, the scrivener of H. Melville, to develop the notion of stranger based on the singularity of the main character and indicates how the presence of this real opacity participates in all existence and in humanity itself. His analysis is divided into three times and perspectives — irony, ethical dimension and tragedy — highlighting Bartleby’s subjective position in relation to the social bond. Bartleby represents this real excluded from the symbolic dimension, which never ceases to be written, not without consequences, and ironically exposes the essential uselessness of existence and its condition of similarity that affects everyone Abstract: This article briefly discusses the psychic effects of racism against blacks in the context of imaginary identification, based on Jaques Lacan´s theory of the mirror stage. Some fragments of clinical cases illustrate the proposition that at the moment when the subject is named by the other as “black”, he realizes that this signifier combines the representation of all images with which the white does not wish to identify himself. When being classified as “black” the subject is fixed in a kind of epidermized inferiority. Listening to this type of suffering — which involves body, culture and words — involves subtlety in evoking the singularity of the traumatic experience coupled with the assertiveness of not retreating in the anti-racist struggle, understanding it as a cause that also concerns us, Lacanian analysts.
Keywords: Image; body; trauma; identification
O objetivo do presente artigo é discorrer sobre alguns aspectos dos efeitos psíquicos da discriminação racial contra negros no Brasil abordando a dimensão traumática do processo de identificação imaginária desses sujeitos.
Para tanto, valer-me-ei de fragmentos de casos atendidos em consultório particular nos anos de 2019 e 2020 a partir da abordagem lacaniana da constituição do “eu”.
É corrente na fala de pessoas negras ouvidas em análise narrativas de sofrimento experimentado durante a infância, sobretudo em situações vividas nas escolas e demais ambientes de convivência entre crianças, professores e tutores, nas quais o sujeito foi impedido de representar determinados papéis em brincadeiras ou encenações teatrais sob o argumento de que sua imagem corporal não condizia com as características da personagem a ser representada.
Alguns desses relatos dizem respeito à impossibilidade de a criança interpretar, por exemplo, um anjo durante as celebrações cristãs, ou mesmo princesas e príncipes em peças de teatro escolar. A principal justificativa dada tanto por colegas quanto por tutores é que não existem anjos, príncipes ou princesas negros.
Essas experiências eram narradas como momentos angustiantes em que os sujeitos eram acometidos por um forte sentimento de rebaixamento e humilhação que, com frequência, eram trazidos nas sessões, como nos seguintes excertos clínicos:
A. 22 anos: “Em casa a minha avó me dizia que eu era bonita, mas na escola era diferente. Eu era feia. Riam do meu cabelo. No dia da formatura a professora pediu para eu molhar e prender meu cabelo para não atrapalhar a foto. Senti muita vergonha.”
I., 79 anos: “Quando eu era pequena não me deixavam participar da coroação de Maria. Onde já se viu anjo preto? Filho de negro é urubu, diziam.”
A classificação entre raças não tem qualquer embasamento biológico ou científico, mas funciona como um marcador social que determina quais lugares os corpos não brancos são autorizados a ocupar e a quais imagens tais corpos podem se identificar.
Como podemos observar nas narrativas acima, desde as experiências infantis, as imagens popularmente representativas de bondade, nobreza e pureza — como evocam as figuras de anjos e princesas — são retiradas do horizonte de identificações imaginárias de pessoas negras.
Para nos debruçarmos sobre o atravessamento racial na constituição subjetiva a partir da orientação lacaniana, na qual o eu é uma instância eminentemente imaginária, tomaremos como referencial teórico o estádio do espelho.
Essa proposição se baseia em experiências empreendidas no campo da ótica tomando como referência o modelo dos espelhos côncavos. O espelho representaria o olhar do outro materno, uma vez que, entre esse outro e o bebê, há uma espécie de sincronia corporal (LACAN, [1966], 1998):
O espetáculo cativante de um bebê que, diante do espelho, ainda sem ter o controle da marcha ou sequer da postura ereta, mas totalmente estreitado por um suporte humano ou artificial (o que chamamos, na França, um trotte-bébé, um andador), supera, numa azáfama jubilatória, os entraves desse apoio para sustentar sua postura, numa posição mais ou menos inclinada e resgatar, fixá-lo, um aspecto instantâneo da imagem.
De maneira bastante sintética, podemos afirmar que o estádio do espelho é constituído por três tempos. Em um primeiro momento, a criança olha para a imagem refletida no espelho e experimenta um estranhamento, pois a imagem visualizada não corresponderia à imagem de si mesmo, mas a outro bebê, dado que seu nível de maturação psíquica não permite ainda a apreensão da imagem virtual como correspondente ao corpo próprio.
Já o segundo momento é marcado pela confusão entre a imagem refletida e a própria criança. Seu corpo é contemplado através de partes dissociadas, prevalecendo certo transitivismo entre o reflexo e o eu próprio.
No terceiro tempo a criança é capaz de perceber a correspondência entre a imagem refletida no espelho e seu corpo, apreendendo o valor simbólico da imagem como representativa de si, havendo, enfim, a integração entre a imagem virtual e a imagem real (LACAN, [1966], 1998):
A função do estádio do espelho revela-se para nós, por conseguinte, como um caso particular da imago, que é estabelecer uma relação do organismo com sua realidade — ou, como se costuma dizer, do Innwelt com Umwelt. Mas essa relação com a natureza é alterada, no homem, por uma certa deiscência do organismo em seu seio, por uma discordância primordial que é traída pelos sinais de mal-estar e falta de coordenação motora dos meses neonatais. O estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação. Desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica. O rompimento do círculo do Innwelt para o Umwelt gera a quadratura inesgotável dos arrolamentos do “eu”.
É relevante considerar que a integração simbólica da imagem depende do olhar do outro materno como confirmação do reflexo visto no espelho pela criança. É através do olhar do Outro que a criança se reconhece, pelo que a alteridade é uma condição fundamental de constituição do eu enquanto instância imaginária.
Os excertos das narrativas dos pacientes descritos acima dizem respeito ao valor simbólico da imagem corporal apreendido após o estádio do espelho. Esses acontecimentos são vividos pelos analisandos como momentos de intensa angústia, em que a imagem própria adquirida pelo sujeito é tida como incompatível com a representação de certos papéis que estariam reservados para indivíduos de pele branca.
Segundo os relatos, no instante em que eram confrontados com essa suposta incompatibilidade — enunciada tanto por outras crianças quanto por alguns tutores —, os sujeitos se davam conta de que portavam em seu corpo a materialização de algo tido como indesejável: a pele escura, o cabelo crespo, o formato dos lábios e do nariz passavam a ser tomados como características representativas de um suposto excedente, do resto repulsivo e inconciliável com a imagem ideal da branquitude.
Seguindo a perspectiva lacaniana, podemos considerar que o enunciado dessa suposta incompatibilidade entre o eu e o ideal imaginário representativo das personagens citadas adquire, para o sujeito, um valor traumático, na medida em que “o verdadeiro núcleo traumático é a relação com a língua” (MILLER, 1997). Com efeito, é o choque entre o significante e o corpo do falasser que confere o valor traumático às experiências narradas.
Nos fragmentos de casos anteriormente relatados à nomeação de cada sujeito enquanto “negro”, acarretou um problema central no caminho de suas identificações, decorrente da disjunção entre a imagem especular e o real de seu corpo.
O significante “cor negra”, em tais casos, evoca uma angústia que retorna na forma de ódio sobre o corpo próprio e nas constantes tentativas de adequá-lo ao ideal branco. Com isso, podemos nos indagar se a nomeação dada pelo outro exerceria um efeito de retroação desintegradora às primeiras fases do estádio do espelho, pois os afetos experimentados pelo sujeito parecem incidir sobre seu corpo no limiar de uma ruptura. Ilustramos essa proposição com o seguinte fragmento de caso:
Não é difícil para mim, enquanto psicanalista, enumerar situações em que pacientes, em suas sessões, expressam esses fantasmas. Como M., que me dizia: “Precisava quando criança tomar vários banhos para tirar a minha sujeira”. Ou C., uma secretária negra: “Preciso estar sempre apresentável e ser eficiente, para que não me chamem de negra; não suportaria. Quando imagino essa situação, sinto meu corpo rachando e sumindo no chão, como nos desenhos animados (NOGUEIRA, 1998).
O sujeito se constitui através do olhar do outro, que lhe fornece o horizonte de identificações possíveis. Para alguns sujeitos negros, esse horizonte de identificações é reduzido na medida que, desde a infância, lhe é recusada a possibilidade de ocupar espaços e representar papéis que seriam exclusivos para pessoas de pele branca.
Não se pode negar a raríssima presença de pessoas negras em cargos de notoriedade e liderança nas instituições, nas campanhas publicitárias e nos espaços frequentados pela elite. Nesses locais, os poucos negros presentes na cena estão geralmente numa posição servil, uniformizados para se integrarem ao ambiente como parte do serviço oferecido: manobristas, babás, faxineiras, garçons.
Na conjectura econômica, política e cultural brasileira, a palavra “negro” remete não apenas a uma categoria social, mas também a uma categoria imaginária que passa a se confundir com o real na medida em que a cor da pele e o desenho de seus traços é o estigma da diferença: a epidermização da inferioridade (FANON, 1952).
É recorrente, portanto, que o sentimento de humilhação e de ódio contra o corpo próprio estejam presentes nessas narrativas do sofrimento desses analisandos.
O que está em jogo é, sobretudo, a dimensão traumática do choque entre corpo e significante. A nomeação “negro” nos casos acima citados culminou na percepção do corpo próprio como inadequado, repulsivo, objeto de ódio e recusa.
As experiências de segregação racial levam a um tipo de sofrimento bastante específico que envolve cultura, palavra e corpo e, no caso do racismo contra negros, especificamente, a marca da discriminação é visível aos olhos posto que concerne exatamente à imagem de seu corpo — no que diz respeito à dimensão traumática do choque entre o corpo e o significante.
Contudo, é importante sublinhar a dimensão da singularidade no processo de constituição de cada sujeito na medida em que o significante tocará cada um de uma forma peculiar, diversa e única. A psicanálise não se coaduna com postulações totalizantes e seria incorreto afirmar que, para todos os negros, a experiência formativa da subjetividade se inscreve da mesma maneira.
Ressaltar a dimensão da singularidade da experiência, todavia, não importa que a psicanálise desconheça que o racismo concerne a todos nós enquanto sociedade, posto que seus efeitos deletérios se inscrevem continuamente, no campo público e privado.
Embora o setting psicanalítico não seja de modo algum um espaço de militância e de reparação de identificações fragmentadas pelo trauma, não se pode negar a potência revolucionária da palavra que dá testemunho e permite desenhar novos destinos.
Finalizo este artigo com uma precisa interpelação aos analistas, publicada na obra Racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise (KON et al., 2017), que nos coloca frente aos impasses e à urgência em aliar ações antirracistas e a práxis psicanalítica:
É preciso a inauguração de uma psicanálise brasileira comprometida com a construção de uma clínica que não recuse a realidade histórico-social de nosso país e que leve em consideração o impacto dessa história na construção das subjetividades.