Será que o racismo mata? Implicações de uma clínica atravessada pelo racismo
Será que o racismo mata? Implicações de uma clínica atravessada pelo racismo1
Mônica Campos Silva
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
monica.camposilva@gmail.com
Resumo: Este texto é um comentário do caso clínico apresentado por Alessandro Pereira Santos no Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Segregação. A partir do título da atividade, “Será que o racismo mata? Implicações de uma clínica atravessada pelo racismo”, a autora faz um percurso que se inicia respondendo positivamente ao questionamento apresentado e advertindo que há uma mortificação subjetiva do sujeito por práticas racistas. Ao final, marca a posição radical do psicanalista que aposta nas soluções singulares de cada sujeito que apontam para a vida, fazendo assim um contraponto aos discursos e práticas racistas.
Palavras-chave: racismo; mortificação subjetiva; posição do psicanalista.
DOES RACISM KILL?
IMPLICATIONS OF A CLINIC CROSSED BY RACISM
Abstract: This text is a commentary on the clinical case presented by Alessandro Pereira Santos in the Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Segregação. From the title of the activity, “Does racism kill? Implications of a clinic crossed by racism”, the author follows a path that begins by responding positively to the question presented and warning that there is a subjective mortification of the subject due to racist practices. In the end, it marks the radical position of psychoanalysis that bets on unique solutions for each subject that point to life, thus providing a counterpoint to racist discourses and practices.
Keywords: racism; subjective mortification; position of the psychoanalyst.
Não é possível tomar o sofrimento do negro como algo maciço, homogêneo.
(Alessandro Pereira dos Santos)
Queria começar com o título proposto: será que o racismo mata? Sim, mata! Vemos todos os dias. Mas sugiro aqui dizer que, subjetivamente, há a mortificação do sujeito por práticas racistas.
Não ser racista é algo importante, para que não se reproduza indefinidamente a domesticação da qual se provém. Osvald de Andrade (2009, p. 282), ao falar sobre o preconceito, dispara: “os otários se reeducam”. Neste sentido, nos valemos ainda de Neusa Santos Souza (2021), que indica que, no discurso analítico, cada negro em particular vai elaborar suas questões “que lhe dê feições próprias” (SOUZA, 2021). Me parece que é fundamental essa colocação de Neusa, de cada um… isso não retira os efeitos mortíferos, nefastos do racismo, mas, de saída, não elimina o que há de singular e a possível mudança de posição.
Segundo Marie-Hélène Brousse (2004), ao tratar do tema da devastação, tornar-se ou não desejado é um ponto fundador, pois o sujeito busca saber o que orienta o desejo no campo do Outro e calcula seu lugar ali. Nessa interlocução dos discursos, em que o lugar no campo social para as minorias – não quantitativamente dizendo – ganha certa desqualificação, penso ser possível ampliar esse ponto para a questão do racismo. A cada caso, em sentido amplo, várias ações podem ter efeitos e manter a alienação ao discurso racista, criando um campo de segregação.
Do ponto de vista do racismo, aproximo os efeitos deste em um sujeito, pelo que Miller (2015) diz da devastação, como uma pilhagem, um saque, um roubo, que se estende a tudo, sem limites. O caso que Alessandro nos traz aponta os efeitos que se proliferam na vida do sujeito, sua grade de leitura para interpretar o mundo e seu lugar, como modo de responder.
Alessandro nos esclarece que é um analista preto e se pergunta se isso traz efeitos para o caso. Será que essa condição do analista trata de dar por entendido? Ou talvez seja o ponto transferencial o que permite a esse sujeito iniciar sua análise. Mas é importante mesmo estarmos advertidos de que não há afinidade com o inconsciente de outra pessoa, do analisante ao analista. Há uma diferença rigorosa da posição analisante e da posição do analista em uma análise.
Pensando no caso de Alessandro, sabemos que a fantasia, vista como o correspondente e o suporte do desejo, de acordo com Lacan é “uma tela sobre o qual o sujeito é instituído”. E, como comenta Naveau (2011): “é uma tela que fecha ao sujeito o acesso ao real e, inversamente, uma janela que abre, para o sujeito, um ponto de vista sobre o real em questão”, ou seja, ela tem a função de véu ao mesmo tempo que aponta o que está em jogo para o sujeito.
Assim, a fantasia é colocada “como o imaginário aprisionado num certo uso significante” (NAVEAU, 2011) no caso em questão o racismo faz a representação da subjetividade em jogo. A construção da fantasia no tratamento permite a apropriação, pelo sujeito, do objeto que lhe causa o desejo. Me parece que o analista coloca um bom ruído no significante que repete, um equívoco, permitindo que algo do gozo ceda ao desejo. Miller (2015) vai dizer da operação de redução como operação analítica, que se dirige a sua versão pequeno a, uma formalização determinante da escolha do objeto, mas que a análise não está terminada enquanto o sujeito não ceder ao gozo fixado a essa repetição. É preciso localizar, mas que não crie uma sutura. Seria aqui possível pensarmos na vacilação de uma fantasia tão consistente e que me parece ser onde o sujeito se alicerça, se defende? Como manejar? Pois, enquanto a fantasia encobre a realidade insuportável por meio da criação de uma realidade ficcional, a angústia sinaliza algo do Real.
Ao que parece, algo do objeto rasga o quadro da fantasia, que já não funciona para que esse sujeito se relacione com o mundo, o que possibilita uma invasão de gozo. É na análise, sob transferência, que algo pode condescender, algo da fixidez e que comporta um excesso. Encontra-se, assim, uma resposta para o que se experimenta sem mediação, fora do sentido, impossível de suportar.
Deparamo-nos muitas vezes com sujeitos fixados a um modo de responder, sem conseguir dar tratamento ao que excede. Como conduzir o que, embora atravesse a lógica civilizatória, a lei, se encontra fora da letra?
O paciente do caso apresentado por Alessandro adere ao significante “sentimento de indignidade”, dado por um outro. Ele consegue, a partir de uma acusação, deslocar e localizar que seu impasse maior é o racismo e a invisibilidade que experimenta em função dele. Para a psicanálise, a indignação surge quando o singular é rejeitado ou desconhecido e, com isso, algo da “conjuntura íntima do sentimento de vida” (VICENS, 2009) é tocado. Nesta via, a indignação está finamente ligada à dignidade – como o que não se tem em comum com nenhum outro, diferença, singular, inclassificável – e à indignidade – como posição inicial do sujeito em seus laços sintomáticos. Ou seja, a indignação estaria entre a singularidade e a perda dela, que o sujeito terá que tratar.
Diante do caso trazido por Alessandro, proponho pensar a indignação como um afeto que surge quando há um rechaçamento do núcleo do ser, mas que, por outro lado, é sua condição advertida em relação ao Outro, que impulsiona e permite perguntar pela dignidade, ou seja, por sua singularidade perdida, roubada, arrancada. Neste caso, o sujeito diz de sua identificação ao lugar de resto, como negro e homossexual (há um efeito segregatório calcado no social). No caso do racismo, e ao ser agredido verbalmente, no que tange à cor de sua pele, podemos considerar que, se o nada querer saber mantém o sujeito na posição de subordinado ao dito do Outro, o rompimento com essa posição, por sua vez, como responsabilização decidida, faria vacilar a posição vitimada, incluindo o sujeito, o querer saber. Ao “desconfiar” do gozo do outro e se perguntar pelo seu gozo, permitiria reencadear o que saiu da lógica simbólica. E aqui evitar o pior e a busca de uma solução radical.
Poderíamos pensar que existiria uma forma de dar tratamento ao indigno, ao racismo, ou seja, a partir de uma indignação “lúcida” que consentiria com uma recusa do gozo do Outro, com a sua inexistência, viabilizando uma extração de gozo como forma de poder se colocar, engajar, saber de si mesmo, pois a dignidade exige certa recusa de gozo. Isto é, a indignação como rebelar-se, como mudança de posição. De início, o paciente traz a invisibilidade, aliada ao desamparo, à censura e julgamento, propiciando um quadro de angústia, lançando-o na impotência radical.
Para saber do que sofremos, segundo Antoni Vicens (2009), criamos doenças. Essa produção sintomática permitiria melhor localizar, materializar o sofrimento, concernido, entretanto, por sua própria dignidade.
Neste contexto, o encontro com o analista pode causar e inaugurar a autorização do próprio destino pelo sujeito. Isso porque, no caso, ao melhor situar a demanda, diante do impossível de responder, o sujeito pode, então, esvaziá-la e alçá-la a um novo saber. Ao tocar o ponto em que o sujeito cristalizou sua defesa, calando-se, mortificando-se, é possível tratar o ódio de si, a assimilação ao ódio do outro como parte de si… É preciso, então, criar a distância.
Assim, a indignidade, o racismo, a sentença de um Outro e o aprisionamento podem cair, permitindo a diferença, dar à singularidade um lugar. De outra maneira, pode tratar a demanda de reparação que, uma vez depurada, faz aparecer a verdade do sujeito, o Um do gozo, enlaçando de uma boa maneira.
Ao que parece, o sujeito agalmatiza o dejeto e se separa da condição de rebotalho: “eu vou com o que eu tenho”. Na construção de um laço menos mortífero, busca-se realizar uma identificação, sem dúvida, que permita ao sujeito encontrar seu lugar em uma das múltiplas rotinas das quais é feita a organização social e que têm por propriedade estabilizar a relação do significante e do significado, a relação do sujeito com as grandes significações humanas, dando pertencimento. Entretanto, segundo Miller (2010a), não se trata somente de obter uma identificação significante do sujeito, sua inscrição sob um significante mestre: trata-se de desprender do gozo uma parcela que possa constituir objeto, sendo este incialmente objeto de uma narração, de um cenário que pode ter lugar de fantasia.
Aqui, gostaria de trazer alguns pontos do texto de Miller intitulado “A salvação pelos dejetos”, que permite uma leitura do caso. É um artigo que trata de forma preciosa e singular a segregação de cada um.
Miller (2010b) diz que a salvação pelos dejetos é o caminho. É também a maneira de fazer, de se colocar, de se deslizar no mundo, no discurso, no curso do mundo que é discurso. Tudo se passa, segundo Miller (2010b), como se a humanidade tivesse se situado diante dessa escolha: a salvação pelos ideais ou a salvação pelos dejetos. E, como por uma escolha forçada, poder-se-ia dizer que ela tivesse sempre escolhido a salvação pelos ideais até que Freud, o primeiro, lhe tenha aberto outra via, totalmente inédita: a da salvação pelos dejetos. Podemos pensar assim a questão do racismo, da segregação?
O que é o dejeto? Miller (2010b) nos esclarece que é o que é rejeitado, e especialmente rejeitado ao cabo de uma operação por meio da qual só se retém o ouro, a substância preciosa a que ela leva. É o que cai, é o que tomba quando por outro lado algo se eleva. É o que se evacua, ou que se faz desaparecer enquanto o ideal resplandece. O que resplandece tem forma. Pode-se dizer que o ideal é a glória da forma, enquanto o dejeto é in-forme. Ele prevalece sobre uma totalidade da qual ele é só um pedaço, uma peça avulsa. O dejeto teria o estatuto de dignidade como singular, como o que resta.
Quando o Outro designa o corpo social, se posso dizer, seu gozo, o gozo desse Outro, mantém-se como uma abstração ligada ao ideal. Um abstrato, uma ficção que se apoia no número, na massa. Entretanto, pode ser que o gozo do Outro social ganhe corpo, que o gozo consiga ser identificado no lugar do Outro, que ele não se evapore, que não se torne volátil e não se confunda com o esplendor vazio da Coisa. É quando se pode dizer, ou subentender, ou ser persuadido de que “o Outro goza de mim”. Aqui, a meu ver, conseguimos localizar o racismo, em seu pior, para o sujeito.
Para Miller (2010b), o que salva os psicanalistas é ter tido êxito em fazer de sua posição de dejeto o princípio de um novo discurso. De ter tido êxito em sublimar o suficiente sua degradação para elevá-la à dignidade de uma prática, ou seja, de um objeto de troca.
É interessante observar que, em seu caso, Alessandro adota um método de provocação visando suscitar as demandas, suprimindo os obstáculos que se poderia qualificar de imaginários.
Se o discurso do mestre procede exclusivamente pela identificação significante e a identificação reina sem divisão, deparamos com o sujeito de imediato identificado com seu sintoma e tornando-se o exemplar de uma classe, de uma categoria. De sua parte, o analista, convidado a se identificar com a boa vontade do terapeuta, com a sua função terapêutica, introduz o sujeito à experiência psicanalítica, introduzindo o laço social específico que se tece em torno do analista como dejeto, representante do que, do gozo, resta insocializável.
Cada um tem que inventar sua própria solução, seus regimes de experiência. Neste sentido, fazer corte na equivalência estabelecida entre a condição de rebotalho e a de dejeto torna-se a orientação, sendo este último o lugar que porta a diferença e a singularidade, o que cada um pode dizer de seu.
Segundo Lebovits-Quenehen (2020), a psicanálise deve recordar que cada fato é acompanhado pelas pulsões de vida e de morte. A psicanálise trata de buscar soluções que apontam para a possibilidade de vida.
Do lado do analista, é preciso que este assuma, também em ato, a singularidade com que trata seus pacientes. Há várias formas de ser racista quando se pretende fazer da função de analista formas de se defender da singularidade do analisante, como real: querendo seu bem, compreendendo-o, também crendo que sua normalização no curso da análise constituiria um progresso.
É preciso lembrar que o racismo tende a reabsorver a tensão entre o Um e o Outro, com desprezo pela diferença. Algo está em jogo em uma análise, de uma responsabilidade que a realidade impõe ao sujeito quando é praticante, de assumir o risco, sendo necessário orientar-se a partir da singularidade de seus analisantes e da sua própria.