Sobre A Cólera De Aquiles

JEAN-PIERRE VERNANT

 

Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida,
(mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueuse
tantas almas valentes de heróis lançou no Hades,
ficando seus corpos como presa para cães e aves
de rapina enquanto se cumpria a vontade de Zeus),
desde o momento em que primeiro se desentenderam
o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles.[1] 

 

Logo no primeiro canto da Ilíada, Aquiles, em sua cólera, se afirma como o homem da solidão, do heroísmo individual. Para preservar a ideia elevada de que ele tem do ideal heroico, postulado como absoluto de honra, ele se separa de seu grupo. Ao fazê-lo, retira-se da guerra que era sua razão de ser. Situação sem saída da qual sairá por motivos estritamente pessoais, para saciar sua sede de vingança contra aquele que, ao vencer Pátroclo, fez morrer um outro de si mesmo. Ao contrário de Heitor, Aquiles se afasta dos outros gregos associados a ele no combate para preservar até o fim sua identidade de herói singular, quase estranho à condição humana pela elevação de sua coragem e pela superioridade de sua força, para não falar em seu nascimento semidivino. Quando volta para a batalha, não aparece como um campeão do lado aqueu; é uma potência de destruição sem rédeas que guerreia como respira, naturalmente e sem esforço. Só sabe matar, matar sempre, até sua própria morte, não só prevista e aceita, como também assumida como a face secreta, o reverso de seu personagem heroico – essa visão lúcida do mundo da morte ao qual o herói se dedica ao escolher a glória e priva o jogo guerreiro de seu prestígio falacioso. A consciência desabusada de não passar de uma criatura perecível como as outras, até na façanha, torna fútil e derrisória a oposição entre vencido e vencedor, reunidos por destinos semelhantes. Ao contrário de Heitor, Aquiles não é um herói trágico em si: não sucumbe sob o peso de seus próprios erros, de suas ações. Porta-voz do ideal heroico, é mais uma voz que o relato empresta para dar a ouvir sua mensagem trágica, para sugerir, no fim da narração, como uma constatação final, a incompreensibilidade, a vaidade da existência humana mesmo quando, iluminada pelos fogos de artifício da glória, brilha com um esplendor que parece igualar aos deuses.

Entretanto, por ser expressa em uma obra que, devido a sua organização formal, constitui um mundo fechado e harmonioso, um cosmos, essa insignificância da vida humana, ao se ofertar à inteligência estética, é, ao mesmo tempo, deslocada e superada. Deslocada: doravante olhamos para ela de outro ponto de vista, como se estivéssemos ao mesmo tempo dentro e fora da vida, próximos e engajados como um homem, distantes e afastados como um deus. Superada: a insignificância do vivido sofre, na experiência imaginária da arte, uma transmutação, torna-se significação trágica. A desordem, a confusão, o disforme que toda cultura se esforça em rejeitar para fora dela na natureza, sem nunca conseguir plenamente, fornece aos homens a matéria para uma criação original em que tudo é ordem, forma, beleza, porque tudo está organizado no plano da ficção.

O relato da Ilíada, em sua progressão, ilustra o duplo movimento de desorganização e de reorganização, o ir e vir entre a ordem aparente da vida e a desordem que nela se dissimula e entre a desordem assim revelada e uma ordem nova, de um tipo muito diferente. No decorrer da intriga, assistimos a uma espécie de decomposição do mundo heroico. Seguindo a inclinação natural da violência, a guerra, primeiro nobre e cavalheiresca, com seu ideal elevado, suas regras, seus interditos, abre-se para o desencadeamento progressivo da selvageria. Quando a bestialidade a invadiu por inteiro, os heróis dos dois campos se transformam em animais selvagens, em aves de rapina predadoras que, em sua fúria guerreira, não tratam mais o inimigo como um parceiro em um confronto leal, como um homem diferente, mas como uma coisa, uma presa cuja carne crua se quer devorar. A carnificina que a guerra dissimula aflora, de certa forma, nas falas e nas condutas dos heróis que não se contentam em triunfar no combate, mas que maltratam o vencido, mutilam-no, despedaçam-no, dispersam seu corpo, privam-no de sepultura, entregam-no aos cães e às aves por não poder devorá-lo eles mesmos, como se, na guerra, a questão fosse menos vencer, ou até mesmo matar, e sim destruir no inimigo até o último rastro de seu aspecto humano, acabar com seu ser social e pessoal lançando-o para sempre para fora da cultura a que pertence, em um não-ser de caos.

 

[1] Homero, “Canto I”. In: Ilíada. Trad. Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 4ª. ed., 2010.