Sobre Alucinações E Falas Impostas
VICTOR THIAGO AGUIAR
Historicamente, tanto a psiquiatria quanto a psicanálise interessaram-se pela psicose. Cada uma dessas disciplinas, a seu modo, sistematizou um conjunto de saberes visando a compreender o fenômeno da alucinação. Este trabalho pretende fazer uma breve apresentação das principais concepções acerca desse fenômeno no intuito de articulá-lo com a noção de falas impostas, evocada por Lacan no Seminário, livro XXIII, no contexto de sua investigação acerca da obra do escritor irlandês James Joyce.
No campo da psiquiatria, uma das mais célebres definições para o conceito de alucinação indica que se trata de uma percepção sem objeto. Cunhada pelo psiquiatra Esquirol, discípulo de Pinel, essa definição aprofundou o campo da clínica psiquiátrica ao fixar um campo semântico, até então amplo e difuso. Esquirol afirmou o caráter central ou psíquico desse transtorno, produzindo um corte em relação às teorias prévias que associavam os fenômenos alucinatórios a transtornos dos órgãos sensoriais. Para tal, recorreu a exemplos de surdos e cegos que alucinavam. A consequência dessa compreensão implicou a necessidade teórica de supor uma instância capaz de constituir-se como locus do transtorno. Foi assim que surgiu a ideia de um centro integrador das sensações, cuja alteração explicaria a emergência do fenômeno alucinatório.
Algum tempo depois, Baillarger, discípulo de Esquirol, foi responsável por isolar aquilo que chamou de alucinações psíquicas, ou seja, fenômenos alucinatórios desprovidos de sensibilidade e que, como ele mesmo destacou, “parecem relacionar-se quase exclusivamente com a audição” (GOROSTIZA, 1995, p. 128), distinguindo-as das alucinações psicossensoriais, que indicavam uma dominância do sensorium visual. Recolheu dos próprios alienados e de testemunhos dos místicos algumas descrições minuciosas, tais como “vozes interiores”, “vozes sem som que conversam de alma a alma por inspiração”, “vozes interiores, secretas, que não fazem ruído” e “vozes que a carne e o sangue não compreendem”, dentre outras. Percebe-se, assim, uma progressiva inclusão da linguagem no campo das alucinações.
Jules Séglas, considerado o clínico mais fino que a escola francesa produziu, desenvolveu seus estudos no contexto histórico que ficou conhecido como “a idade de ouro do localizacionismo cerebral”. A chave de compreensão das alucinações aqui podia ser explicada por meio do raciocínio de que, se uma lesão em uma região do córtex produzia um déficit funcional (afasia), então, uma excitação patológica e desordenada dos centros sensoriais produziria as alucinações. As formulações mais tardias de Séglas, contudo, representaram um progressivo abandono desse viés localizacionista, com a consequente incorporação de hipóteses psicológicas e o reconhecimento do lugar preponderante em relação à linguagem. Ilustra isso o que chamou de alucinação motriz verbal, definido como um fenômeno automático, carente de atributos sensoriais e que não tem outro caráter senão o de parecer ao doente como estranho ao eu. Asseverou ainda que o que caracterizaria esses fenômenos não é o fato de manifestar-se como mais ou menos parecidos com uma percepção exterior, e sim o de constituir-se como fenômenos de automatismo verbal, como um pensamento verbal separado do eu, um fato de alienação de linguagem (GOROSTIZA, 1995, p. 137).
Por sua vez, para Gatian de Clérambault, a alucinação, em sua forma clássica de alucinação verbal, se distinguia radicalmente dos fenômenos que foram isolados na sua renomada síndrome de automatismo mental. A essa síndrome estão associadas ocorrências tais como antecipação de pensamentos, enunciação de atos, impulsões verbais e tendências a fenômenos psicomotores, ao passo que às alucinações auditivas estão associadas vozes objetivadas, individualizadas e temáticas. A despeito da dificuldade de se definir o conceito de automatismo mental, pode-se afirmar que se trata de uma síndrome clínica caracterizada por três traços. O primeiro deles, caráter não sensorial, é evidenciado pela presença de pensamentos com forma indiferenciada e abstrata, sem forma sensorial definida. O segundo, teor essencialmente neutro, alude ao fato de que não há uma tonalidade afetiva, assim como não há hostilidade. O que se pode perceber, às vezes, é um estado levemente eufórico, sendo esse o único estado afetivo congruente com o automatismo mental. E, por fim, o terceiro traço refere-se ao caráter atemático ou anideico, isto é, não conforme a uma sequência de ideias presente, por exemplo, nos jogos silábicos. Esses três traços definem o que se pode considerar a qualidade específica desses fenômenos: sua origem mecânica e sua etiologia orgânica (GOROSTIZA, 1995, p. 68). Em um determinado momento de suas elaborações, Clérambault estabeleceu que os fenômenos de automatismo mental seriam primários ou iniciais, comparativamente às alucinações objetivadas e verbais e aos delírios que seriam fenômenos secundários ou tardios. Os mecanismos mais delicados do intelecto seriam afetados em primeiro lugar e, só depois, isso se daria com as faculdades sensoriais específicas. Todavia, é importante destacar que as relações entre automatismo, alucinações e delírios não se modulam da mesma maneira nos diferentes momentos da obra de Clérambault. O próprio psiquiatra admite certa dificuldade para encontrar uma designação adequada para a síndrome. A multiplicidade de nomeações que foram forjadas ao longo do tempo, tais como pequeno automatismo, síndrome de passividade, síndrome de interferência e síndrome de parasitismo, dentre outros, ilustra esse aspecto.
Em seu texto intitulado “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, Lacan questiona todas as posições existentes até aquele momento acerca do fenômeno alucinatório. Considerando-as todas tributárias do sintagma de que se trata de uma percepção sem objeto, o psicanalista denuncia o ponto crucial de sustentação dessas concepções, a saber, a existência de um sujeito da percepção primariamente unificante. Nesse sentido, é útil relembrar a definição de dois termos de origem latina: percipiens e perceptum. O percipiens refere-se ao sujeito do ato da percepção, ao passo que o perceptum alude à consequência desse ato, isto é, a uma percepção plena de realidade. De acordo com a perspectiva psicopatológica clássica, em uma percepção normal, um determinado objeto da realidade é apresentado aos sentidos, e o sujeito da percepção – o percipiens – dá ativamente unidade ao que foi percebido – o perceptum. O que ocorre em relação à percepção alucinatória é que não há objeto na realidade para ser percebido, mas, não obstante, um perceptum – nesse caso, alucinatório – é produzido. Assim, se o perceptum depende da atividade do percipiens, deve-se pedir razões sobre essa anomalia a esse sujeito da percepção. Lacan subverte essa concepção e reconhece uma causalidade no dito perceptum, concebido agora em termos de fato de linguagem. Já não se trata de um sujeito ativo da percepção, mas sim de um sujeito que padece os efeitos de divisão do significante e que, mais ainda, é um efeito do mesmo. Opera-se aí uma inversão da atividade atribuída ao percipiens unificante para a passividade de um sujeito que padece os efeitos do significante, o que implica em uma primazia do perceptum alucinatório sobre o sujeito (GOROSTIZA, 1995, p. 121). Lacan argumenta que o sujeito é dividido pela alucinação verbal e que o fenômeno alucinatório revela a céu aberto a estrutura mesma do significante que causa a divisão do sujeito (GOROSTIZA, 1995, p. 131).
Em sua tese de doutoramento, Lacan havia declarado o parentesco da interpretação com as alucinações. No Seminário, livro III, atribui o aspecto de significação pessoal tanto para as alucinações quanto para as interpretações. Ou seja, tanto em um quanto em outro desses fenômenos o sujeito tem a certeza de que o que está em jogo ali lhe concerne. Isso constitui o que ele chama de fenômenos elementares. Retomando o texto “De uma questão preliminar…”, pode-se dizer que ali a alucinação verbal constitui o paradigma do sintoma psicótico (GOROSTIZA, 1995, p.115). Quando Lacan examina e classifica as diferentes formas das alucinações verbais relatadas por Schreber, distingue nelas os fenômenos de código e os fenômenos de mensagem, constatando que as diferenças em jogo aí se prendem à estrutura da fala (LACAN, 1957-1958, p. 543). Aos fenômenos de código pertencem as vozes que se servem da língua fundamental do sujeito, que Schreber descreve como “um alemão um tanto arcaico, mas ainda rigoroso, que se caracteriza principalmente por uma grande riqueza de eufemismos” (LACAN, 1957-1958, p. 544). Situam-se ali as locuções neológicas, criações que submetem a linguagem a variações de formas (novas palavras compostas, mas numa composição conforme as regras da língua do paciente) e de emprego. As alucinações instruem o sujeito sobre as formas e empregos que constituem o neocódigo. Trata-se de algo bastante próximo das mensagens que os linguistas chamam de autônimas, na medida em que é o próprio significante (e não o que ele significa) o objeto da comunicação. Lacan declara:
“estamos na presença desses fenômenos erroneamente chamados de intuitivos, pelo fato de o efeito de significação antecipar-se, neles, ao desenvolvimento desta. Trata-se, na verdade, de um efeito do significante, na medida em que seu grau de certeza (segundo grau: significação de significação) adquire um peso proporcional ao vazio enigmático que se apresenta inicialmente no lugar da própria significação” (LACAN, 1957-1958, p. 544).
Por sua vez, os fenômenos de mensagem referem-se às mensagens interrompidas. A voz alucinada limita sua mensagem a um começo de frase do tipo “Agora eu vou me…” ou “Você deve de fato…” ao qual o sujeito, nesse caso, Schreber, retruca com o suplemento “render-me ao fato de que sou um idiota”, por exemplo. O complemento de sentido a que Schreber não se furta a produzir dá testemunho de sua valentia quando se considera o aspecto ofensivo e provocativo da emissão alucinada. Lacan observa que a frase se interrompe no ponto preciso que indica a posição do sujeito a partir da própria mensagem. Pode-se concluir, então, que tanto os fenômenos de código como os de mensagem impressionam pela predominância da função do significante.
Em seu curso Piezas sueltas, Miller nos aponta que Lacan, em uma apresentação de pacientes, encontra um sujeito que “sofre de falas impostas, de ecos de palavra, esses ecos dos quais Joyce soube fazer uma arte” (MILLER, 2013, p. 74). O sujeito em questão, tratado como Gérard Primeau, define assim o que ele mesmo chamou de fala imposta:
“fala imposta é uma emergência, que se impõe ao meu intelecto e que não tem significado, se considerado o senso comum. São sentenças que emergem, que não são refletidas, que ainda não foram pensadas, mas são uma emergência, expressando o inconsciente. (…) Emergem como se eu fosse talvez manipulado […]. Eu não sou manipulado, mas não posso me explicar. Tenho muito problema ao explanar coisas. Tenho problemas para dominar a questão, esta emergência. Não sei como surge, como se impõe no meu cérebro. Tudo surge de uma só vez: “Você matou o passarinho azul”. É um sistema anárquico. Sentenças que não tem sentido racional na linguagem comum e que se impõem no meu cérebro, no meu intelecto. Há também uma espécie de contrapeso. Com o médico chamado Dr. D., tenho uma sentença imposta, que diz: o Dr. D. é simpático, e, então, tenho uma sentença que contrabalança, que é fruto da minha reflexão; há uma disjunção entre a sentença imposta e a minha sentença, que é um pensamento reflexivo. Eu digo: mas eu sou insano. Digo: o Dr. D. é simpático (sentença imposta), mas eu sou insano (sentença reflexiva)” (LACAN, 2000, p. 5).
Em outro momento da mesma apresentação, o paciente fornece mais um exemplo: “’Eles querem governar meu intelecto’ é uma emergência. ’Mas a realeza está derrotada’ é uma reflexão’” (LACAN, 2000, p. 12). Imediatamente depois disso, Lacan lhe pergunta: “O que quer dizer que é sua, que você a elaborou?” Ao que Primeau responde: “Sim, enquanto a emergência se impôs sobre mim. Acontece em mim assim: são como direcionadores intelectuais que vêm a mim, que nascem brutalmente e se impõem ao meu intelecto” (LACAN, 2000, p. 12).
Considerando o que foi abordado até este momento, algumas questões já podem ser colocadas, tais como: as falas impostas do mencionado paciente poderiam ser consideradas alucinações? É legítimo supor que se trata de vozes? O próprio paciente entrevistado por Lacan afirma que “há muitas espécies de vozes” e acrescenta que as chama de vozes porque as ouve internamente.
Numa primeira abordagem dessa problemática, parece não haver dúvida de que tanto alucinações quanto falas impostas referem-se a fenômenos de linguagem. Além disso, parece claro que em ambas o sujeito sofre a incidência de algo que lhe é imposto do exterior, algo do qual ele sabe que participa, embora não possa reconhecer como própria a sua produção. Retomando o caso do paciente mencionado anteriormente, o próprio Lacan, no Seminário XXIII, explicita: “É difícil não evocar, a propósito do caso de Joyce, meu próprio paciente, considerando como isso tinha começado nele. No que concerne à fala, não se pode dizer que alguma coisa não era, para Joyce, imposta” (LACAN, 1975-1976, p. 93).
Sendo assim, é na trilha de Joyce que Lacan desenvolve sua investigação acerca do fenômeno das falas impostas. Não deixa de ser interessante constatar que nela Lacan não faz uso do termo alucinação. A despeito disso e admitindo a ideia de que o que está em jogo ali alude à relação de um sujeito com a linguagem, é possível localizarmos alguns pontos de convergência entre esses dois fenômenos. Dentro desse contexto, talvez seja razoável compreender a nomeação evocada pelo próprio paciente entrevistado por Lacan, a saber, “O Gérard Primeau é o do mundo comumente chamado de real, enquanto que, no mundo imaginário, sou Geai Rare Prime Au” (LACAN, 2000, p. 7), como sugestiva daquelas produções encontradas nos fenômenos de código mencionados por Lacan. Outros neologismos, tais como écraseté, que é, ao mesmo tempo, écrasé (esmagado) e éclaté (esplendoroso), e choixre, para expressar a noção de “cair” e de choix (escolha), também poderiam estar circunscritos aí.
O que se pretende articular neste trabalho, a partir de agora, é quais seriam os pontos de divergência entre alucinações e falas impostas. Em sua tese de doutorado intitulada Os escritos fora de si, Sérgio Laia nos ajuda a identificar algumas especificidades existentes na posição do sujeito diante desses dois fenômenos de linguagem. Cabe fazer a ressalva de que a referida tese estabelece uma comparação entre a obra de Joyce e as produções delirantes dos sujeitos psicóticos. Tomarei a liberdade de transpor também para as alucinações nessa investigação aquilo que fora articulado como delírio na citada tese. Nesse sentido, nas alucinações, o sujeito revela-se numa posição de passividade diante da linguagem, vivenciando a incidência do gozo sobre o seu próprio ser de uma maneira intrusiva. O inconsciente a céu aberto da psicose evidencia que a linguagem joga com o sujeito. Seria ainda mais preciso afirmar que o sujeito é quem é jogado pela linguagem, isto é, “tragado pelas próprias palavras, engolido pelo uso por demais restrito” (LAIA, 2000, p. 214) que faz da língua. Por outro lado, no tocante às falas impostas, o sujeito encontra-se numa posição mais ativa diante da linguagem. Vale lembrar que Joyce chega a produzir uma obra a partir da incidência do gozo sobre o seu ser. Também Gérard Primeau nos sugere algo dessa ordem quando enuncia frases como “Tentei pela ação poética encontrar um ritmo balanceado, uma música” (LACAN, 2000, p. 9) ou “Estava também interessado na contração de palavras” (LACAN, 2000, p. 10). O que se tem nesses casos, portanto, não é tanto o caráter intrusivo da linguagem, mas sim a possibilidade de que o sujeito seja capaz de jogar com ela, de manipulá-la. É a obra de Joyce que joga com as palavras, ou seja, há um uso complexo da língua por parte do sujeito (LAIA, 2000, p. 215). Essa complexidade fica evidente quando se considera que Joyce vai fazendo um progressivo uso de lalíngua. Nas palavras de Laia:
“Joyce encarna, com sua obra, o sintoma desabonado do inconsciente, o sintoma que se apresenta mais na dimensão de um gozo inanalisável do que como mensagem a ser decifrada, o sintoma onde um hospedeiro da palavra pode concernir o seu ser para além da falta-a-ser que caracteriza sua posição subjetiva” (LAIA, 2000, p. 226).
Se, na loucura, o psicótico tem de se haver com um confronto com o não simbolizável, valendo-se de uma proliferação do imaginário e de um trabalho delirantemente interpretativo, Joyce, com seu trabalho de escritura, se endereça ao ilegível, àquilo que se furta até das interpretações delirantes. Ele “se interessa muito mais pelas palavras do que pela narratividade, muito mais pelo ritmo do que pelo sentido, muito mais pela ordenação das palavras em uma sentença do que pela adequação gramatical dessa ordenação” (LAIA, 2000, p. 200). É o que Lacan evidencia ao afirmar: Joyce tem uma relação com joy, o gozo… esse gozo é a única coisa que, de seu texto, nós podemos pegar (LAIA, 2000, p. 201).