Sobre certa presença da psicanálise nas ruas

Clarisse Boechat
Psicanalista, doutora pelo Programa
de Pós-graduação em Psicanálise da UERJ
clarisse.boechat@gmail.com

 

Resumo: Retomo, neste texto, questões que surgiram da experiência de trabalho nas ruas da cidade do Rio de Janeiro, entre 2012 e 2019, e os ensinamentos que pude extrair daí, destacando especialmente a errância que as ruas me apresentaram como um dos nomes do real do nosso tempo. A partir disso, foi possível localizar e apontar o que, para cada um, funcionava como orientação, assim como sustentar a aposta nos “métodos errantes” daqueles com os quais me encontrei, o que se constituiu como um aprendizado coincidente com o que também encontro na clínica mais tradicional que acontece em meu consultório. A posteriori, depreendeu-se que, seja no consultório, seja nas ruas, a errância parece se apresentar como modalidade de funcionamento privilegiada em tempos nos quais o Nome-do-Pai já não faz mais as vezes de rodovia principal. Na medida em que vivemos em um mundo também errante, os pacientes que nos procuram em nossos consultórios são igualmente tomados por suas próprias errâncias e soluções atípicas, como um sintoma de nossa época.

Palavras-chave: Psicanálise; presença; ruas; errância.

ABOUT A CERTAIN PRESENCE OF PSYCHOANALYSIS IN THE STREETS

Abstract: In this text, I return to questions that emerged from the experience of working on the streets of the city of Rio de Janeiro, between 2012 and 2019, and the lessons I was able to extract from that. Highlighting especially the wandering that the streets showed me as one of the names of the real of our time. From that, it was possible to locate and point out what, for each one, worked as guidance, as well as sustain our bet on the “errant methods” of those I have met. The work turned out to be a learning experience, coinciding with what I also find in my, more traditional, clinical practice. Whether in the office or on the streets, wandering seems to present itself as a privileged mode of operation in times when the Name-of-theFather no longer serves as the main highway. As we live in a wandering world, the patients who come to us in our offices are also taken by their own wanderings and atypical solutions, as a symptom of our time.

Keywords: Psychoanalysis; presence; streetswandering.

 

 

CAROLINA BOTURA. S/T

 

Sobre certa presença da psicanálise nas ruas

Retomo, neste texto, questões que começaram a surgir a partir do trabalho iniciado em 2012, como psicóloga do Consultório na Rua do Centro do Rio de Janeiro. A primeira delas tornou-se mais consistente no título de minha tese de doutorado1: “Quando a psicanálise alcança as ruas, o que fazem os analistas?”. Para respondê-la procurei localizar o que houve de analítico naqueles encontros atípicos nas ruas, em configurações bem distintas do setting tradicionalmente clínico. Em outros termos, considerando as grandes diferenças entre os encontros que aconteciam nas ruas e uma experiência de análise, qual é a pertinência do interesse da psicanálise em relação a um campo, à primeira vista, tão distinto daquele das análises tradicionais? As experiências de errância das ruas nos ensinariam sobre a abordagem psicanalítica dos sintomas ou é muito mais a experiência com essa abordagem que pode orientar nossas intervenções nas ruas?

Tais questões se endereçaram ao Núcleo de Pesquisa “Práticas da Letra”, ligado ao Instituto de Clínica Psicanalítica da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio. A pesquisa do núcleo, coordenado à época por Ana Lucia Lutterbach-Holck, interrogava os “usos possíveis da psicanálise na cidade”, convocando-a a se fazer presente “nas ruas, de portas abertas a quem possa interessar testemunhar sua experiência” (LUTTERBACH-HOLCK, 2014, p. 43). Dessa aproximação surgiu, num segundo tempo, o ateliê “Escreve-se história”, que funcionou semanalmente em frente à Central do Brasil, entre 2014 e 2019, permitindo-nos estar em contato com o que me parece possível considerar como a presença do real na cidade.

Nesse ateliê, uma dupla de psicanalistas se colocava em uma calçada próxima a essa Central, sob o anúncio “Escreve-se história”, com um banquinho reservado a quem se aproximasse. A este, dizíamos algo como “caso queira nos contar uma história, podemos escrevê-la e entregá-la, ao final, para você”. Enquanto o primeiro integrante da dupla se oferecia como destinatário, ouvindo a história, o segundo operava como uma espécie de “escrevente” e, em silêncio, registrava os pontos que se destacavam quando um pedestre tomava a posição de narrador de sua experiência. Ao fim, oferecíamos o original, ficávamos com uma cópia do material e, caso houvesse interesse, dávamos um cartão com data e horário do próximo encontro.

Ofertávamos a escuta e a escrita daquilo que, na abertura ao imprevisto, em uma fala, se precipita, ressoa, causados pelo desejo de ler a cidade de nosso tempo, inventando formas de ocupá-la. Contudo, essa ocupação das ruas, embora tivesse como bússola a psicanálise, não deu margem a experiências que pudessem ser chamadas de análise. Do ponto de vista mais formal, que tampouco demarca o que é uma análise, havia uma radicalidade no despojamento do setting. Os atendimentos eram feitos em meio a carros e transeuntes; não havia pagamento nem como recolhermos os efeitos do só-depois — pois muitas vezes o depois não existia, devido ao trânsito mesmo daqueles com os quais pontualmente nos encontrávamos.

A oferta de escuta e registro das histórias que alguns teriam a nos contar foi o ponto de partida para que pudessem, cada qual a seu modo, e de formas muito distintas, servir-se daquela espécie de trabalho de “edição” que fazíamos sobre o que nos ressoava como orientação. Tanto o “ouvinte” das histórias quanto seu “escrevente” tinham a função de “editar” o “texto” que nos era endereçado. Por vezes, tal “edição” consistia em apontar o que se esboçava como uma localização subjetiva; em outras, havia a tentativa de instauração de um espaçamento mínimo, localizando frestas que furassem a consistência de um Outro invasivo, permitindo-nos apostas nas possibilidades de uma extração de algo perturbador; e ainda, em certas ocasiões, visávamos aos significantes que indicavam uma modalidade de gozo, seja pela possibilidade de ela se constituir como ancoragem, seja pela aposta de promover algum descolamento. Buscávamos extrair, da errância, uma leitura, na medida em que pudéssemos seguir o fio daquelas andanças, nos constituindo como lugar de endereçamento e, a partir daí, víamos se era possível apostar na localização de um fio, por vezes roto e puído, daquelas histórias.

Certa vez, perguntei a uma mulher o seu nome, ao que, de uma só vez, respondeu: “Maria da Silva. Vim do Maranhão depois que me tiraram à força pra fazer sexo. Minha irmã não conseguiu fazer nada (chora). Meu irmão mais velho morreu cortado pra me defender”. Interrogo: “Como você se virou?”. Ela diz: “Tomando distância. Porque eu meto a faca, se eu voltar é pra matar ou morrer”. Em casos assim, tentávamos recolher algo que funcionasse como uma espécie de orientação vital. Digo a ela: “sua vinda foi uma aposta na vida”, apontando, mesmo diante do horror, para a dimensão vivificante dessa escolha que se impôs.

Era recorrente que aquelas histórias fizessem referência a um antes e um depois de acontecimentos que desfizeram arranjos com os quais seus narradores se sustentavam, deixando-os sem uma rede de proteção e expostos à queda de identificações que os ligavam ao Outro, que os inseriam no laço social, levando-os, com certa frequência, a desmoronar feito um castelo de cartas diante do sopro de uma infeliz contingência. Acontecimentos dessa natureza parecem apontar para o furo de um real traumático, frente ao qual a rua responde como espaço para a errância.

Tocar em amarrações tão vitais requer um manejo delicado para, por exemplo, não destacar uma identificação mortífera, abrir buracos em estradas acidentadas demais, sob o risco de interditá-las. Diante de tamanhas devastações, estávamos atentos ao que despontava como recurso, orientação, extraindo os “pontos cardeais” que o “escrevente” tomava como norteadores naquelas histórias. O que chamamos de “pontos cardeais” são os arranjos e soluções que apostávamos fazer a função de ancoragem diante daquilo que, para cada um, apresentava-se como deriva: pequenas bússolas que operassem como orientação.

Em “O exílio e a identificação”, Cristiane Alberti aborda questões relativas ao exílio estrutural do falasser em relação à linguagem, mas também quanto à perspectiva mais radical do exílio, que nos chamou a atenção pela proximidade com o que as ruas apresentam: “Destaquemos aqui que alguns sujeitos estão sempre fora de, jamais em casa, um exílio existencial, nenhum lugar, parte alguma” (ALBERTI, C., 2020, n.p.). Entendemos que “nenhum lugar”, “parte alguma” apontam para uma metonímia incessante, marca do que não se localiza, excesso de extravio. O que chamamos de errância relaciona-se a essa deriva pulsional, em que o circuito da fantasia, a formalização de um sintoma, ou mesmo a consistência de um delírio, não se apresentam de forma tão localizável.

A errância no ensino de Lacan não possui o estatuto de um conceito nem é um tema recorrente em seus seminários. Mas podemos nos ater aqui à menção que lhe é feita no título de seu Seminário 21: les non-dupes errent, que joga com a homofonia que remete tanto aos “não-tolos erram” quanto à pluralização de “Os Nomes-do-Pai”, apontando para as soluções atípicas que um sujeito pode lançar mão para se virar na vida. A temática da errância, tal como Lacan a esboça ali (1973-74, inédito), pode constituir-se como fio condutor de uma clínica que precisa se haver com impasses e soluções surgidas quando o Nome-do-Pai não se faz estrada principal que orienta os caminhos. Ao contrário, na errância há a iteração insistente do Um do gozo desarticulado de um itinerário ou mesmo do que pode se apresentar como montagem da pulsão.

Tal errância se traduz como certo “desenraizamento” e nos evidencia o que se passa quando um sujeito perde o que poderia ter-lhe sido referenciais, vendo-se ultrapassado pela iteração do Um do gozo, sem sentido. Os não-tolos, segundo Lacan, são aqueles que se apresentam como errantes, porque se fixariam à pretensão de seguir sempre a direção inequívoca que a iteração comporta, ou mesmo nos mandamentos provenientes do supereu e nas rotas determinadas pelo Nome-do-Pai.

Fernanda Otoni-Brisset, em “O povo e a peste”, testemunha, de sua prática na rede pública “junto a pessoas sem renda, sem documentos, sem trabalho, sem família, sem teto, sem lei, sem razão, sem muita coisa” (OTONI-BRISSET, 2020, n.p.), e situa que eles têm muito a dizer quando encontram um analista: “Diria que portam sem saber, um saber que não é suposto. Um saber a forçar suas escolhas, de forma irrecusável” (OTONI-BRISSET, 2020, n.p.). Otoni parece também se encontrar com o que nomeamos como a dimensão da iteração presente na errância, que, em seu texto, tender-se-ia a localizar como “esse saber a forçar suas escolhas” (OTONI-BRISSET, 2020, n.p.).

Eis o desafio: como nos incluirmos como destinatários do endereçamento de um saber que se sabe sozinho, que não é suposto? Diante da dimensão implacável da iteração do gozo descolada da suposição de saber no Outro, cabe, ao analista, a aposta de fazer incluir nesses circuitos, a fim de se constituir como parceiro, por exemplo, na relação com o gozo opaco do Um, que itera, instaurando uma modesta margem de manobra a partir do saber que se recolhe.

Quando Claudionor pergunta meu nome e lhe respondo “Clarisse”, ele observa: “Olha! 2 C: Claudionor e Clarisse”. Em seguida, diz que gostaria de escrever um livro com dedicatória para 3 K. Destaco: “Você gosta de letras!”. Ele diz que sim, me mostra uma tatuagem com o 3K, explicando se tratar da inicial dos nomes das três filhas. A letra K surgiu quando aguardava o nascimento de sua primeira filha na maternidade, ao ler uma revista em quadrinhos em que tinha uma mulher chamada Kelly: “Fiquei com o K e escolhi o nome de Késia pra ela”. Ou seja, esse K ele extrai no momento do nascimento de sua primeira filha, parindo um significante que lhe permitiu ser pai. Desse K, retirado da revista, partirão os nomes das demais filhas: Késia, Keyla, Kamile — 3K. O que recolhemos dos encontros, que duraram cerca de um ano, nos ensina sobre o uso sinthomático do 3K, invenção marcada pela tolice de se deixar guiar por essa espécie de Um sozinho, que lhe orienta a deriva, a lógica de sua errância, funcionando à semelhança de um itinerário.

Seguíamos aqueles sujeitos em seu ir-e-vir, às vezes sem rumo, buscando fazer ressoarem as formas pelas quais eles poderiam se valer de seus próprios arranjos, inventando ou aprimorando modos de lidar com o gozo que itera sempre em suas derivas.

Jacques-Allain Miller, em O parceiro sintoma (2008), considera o sinthoma, no último Lacan, como uma construção que envolve uma parte de gozo solta e uma parte de gozo apreendido no âmbito do discurso. Nessa dimensão sinthomática, os itinerários, as montagens, podem ser variados — são formas de dar lugar à errância inerente ao gozo, que é sempre singular.

Ao nos fazermos presentes nas ruas, com a psicanálise, nos acostamentos e “quebradas”, no burburinho caótico da cidade, às margens da rodovia do Nome-do-Pai, aprendemos a garimpar os “pontos cardeais” que podem fazer as vezes de caminhos, conforme Sérgio Laia nos indica mostrando que as errâncias possuem seus próprios métodos sinthomáticos. Fora da estrada principal, mas também não deixando os falasseres imersos na solidão do Um-sozinho, podemos encontrar invenções marcadas por esse norteamento de se fazer tolo de um real, para que se possa dar outro lugar a um gozo que é errante e próprio de cada um. Nos casos que acompanhamos, buscamos situar nossa aposta quanto a um norteamento, ainda que esse trabalho não tenha passado, necessariamente, pela construção da fantasia ou de uma estabilização via construção delirante. Esse norteamento pôde, em alguns casos, fazer as vezes de um itinerário, acolhendo a errância do gozo em vez de pretender, em vão, contê-la. Essa era a parceria a que nos oferecíamos: seguir os indícios — que, com o Lacan do Seminário, livro 23, podemos situar como sinthomáticos — daqueles sujeitos que se endereçavam a nós para que lhes escrevêssemos suas histórias errantes.

Seja nas ruas, seja no consultório, a psicanálise se vale dos desarranjos da rotina; é nessa lacuna que relampeja o que mostra a efetividade do discurso analítico em sua via de extrair, onde quer que ele se aplique, enunciações com efeitos de verdade, ancoragens, deslocamentos, leituras, enfim. Também no consultório testemunhamos do mal-estar próprio ao nosso tempo, da iteração do gozo mais além de qualquer enquadre ou norma, quando a estrada principal do Nome-do-Pai já não faz mais tanto as vezes da grande rodovia.

Então, abordamos a errância como um dos nomes do real que as ruas, ao mesmo tempo, acolhem e dispersam, mas, na medida em que vivemos em um mundo errante, os pacientes que nos procuram em nossos consultórios são também tomados por suas próprias errâncias, como um sintoma de nossa época. A errância diz respeito ao que, do gozo, não se normatiza nem se normaliza, não sendo propriamente específica da neurose ou da psicose, embora possa ser mais disruptiva nos contextos em que o Nome-do-Pai não faz as vezes de norteador.

Em A sociedade do sintoma, Éric Laurent propõe que, “quando o laço se rompe, a cidade se torna o império do vazio, escavado pela escritura, gozo fora do sentido que circula na cidade” (2007, p. 110). As ruas são labirintos por onde o extravio do gozo circula, mas onde ele também se enlaça em arranjos muito singulares, como pude verificar em minha experiência de alcançar as ruas com a psicanálise. Essa presença permitiu-nos testemunhar as formas pelas quais o mais singular de um gozo, que, muitas vezes, dá lugar à segregação, pôde se relançar e até encontrar algum lugar no coletivo em uma renovada, embora muitas vezes lábil, forma de laço social dessegregativo (LAIA, 2020). Um laço que, intermitentemente, pode se enganchar e se desconectar do Outro, compondo diferentes soluções provisórias. Nas ruas ou no consultório, nossa tarefa consiste em instalar pequenas brechas porosas à passagem das operações singulares de cada sujeito, que portam a vitalidade de uma ação psicanalítica extensiva ao campo social. Situado na conjunção entre a clínica e a política, o analista tem como incumbência apostar na emergência da diferença, na abordagem dessegregativa do gozo errante, na diversi-cidade dos laços, tornando-se “aquele que segue” as soluções atípicas (LAURENT, 2018).

 


Referências:
ALBERTI, C. O exílio e a identificação. Disponível em: https://ebp.org.br/rj/2020/10/19/o-exilio-e-a-identificacao/. Último acesso em 09/04/2021.
LACAN, J. (1973-74). O seminário, livro 21: les non dupes-errent. Inédito.
LACAN, J. (1975-76). O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
LAIA, S. O ventríloquo e a biruta analítica: das versões do corpo falante… no momento de conclui. In: Curinga. Nº 49, 2020.
LAURENT, É. A sociedade do sintoma. Rio de Janeiro: Contracapa, 2007.
LAURENT, É. Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência. In: Opção Lacaniana. Revista Internacional Brasileira de Psicanálise, n. 79. São Paulo, 2018.
LUTTERBACH-HOCLK, A. L. Sobre o método e o objeto. In: LUTTERBACH-HOLCK, A. L.; GROVA, T. [orgs.] Ao pé da letra: leituras e escrituras na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Subversos, 2014.
MILLER, J-A. Le partenaire-síntoma. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2008.
OTONI-BRISSET, F. O. O povo e a peste. Disponível em: http://lalibertaddepluma.org/fernanda-otoni- brisset-o-povo-e-a-peste/. Último acesso em: 09/04/2021.

1. Tese defendida pelo Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em 2020, que teve como orientadores Heloisa Caldas e Sérgio Laia.