TECH-NO-ME, TECH-TO-ME[1]
RENATA TEIXEIRA
Psicóloga e psicanalista. Membro do Lacanian Compass, Flórida, EUA |
renatastoppini@icloud.com
Resumo: A autora aborda, neste artigo, como a irrupção da pandemia do novo coronavírus afetou sua prática clínica com crianças e adolescentes e a faz se interessar pelo mundo dos jogos digitais como uma ferramenta possível para a continuidade do tratamento via dispositivos eletrônicos. A partir de alguns extratos clínicos, localiza como o analista pode se fazer presente, mesmo que virtualmente, acompanhando as invenções e os laços de cada sujeito.
Palavras-chave: coronavírus, clínica, infantil, tecnologia, jogos virtuais.
Abstract: The author discusses, in this article, how the outbreak of the new coronavirus pandemic affected her clinical practice with children and adolescents, making her interested in the world of digital games as a possible tool for the continuity of treatment via electronic devices. From some clinical extracts, she finds how the analyst can be present, even if virtually, following the inventions and bonds of each subject.
Keywords: coronavirus, clinic, child, technology, virtual games.
Antes da pandemia e do fechamento das escolas, estava trabalhando clinicamente com crianças de quatro a doze anos, na maior parte do tempo em seu ambiente escolar. Após a decisão do governo de fechar as instituições de educação, vi-me obrigada a iniciar atendimentos on-line utilizando dispositivos eletrônicos.
A psicanálise lacaniana implica o uso do corpo do analista como um instrumento para que o analisante construa semblantes de objeto a. Deparei-me, então, com uma pergunta: como interagir psicanaliticamente se minha presença se tornou filtrada pelas telas e microfones, especialmente com crianças e adolescentes que demandavam/exigiam o uso de jogos e engajamento físico durante suas sessões?
Observando o uso dos jogos on-line pelos jovens, incluindo a criação de avatares como novas modalidades de imagens do ego, decidi aprender sobre alguns desses recursos eletrônicos para interagir com eles enquanto temos nossas vozes conectadas durante as sessões. Aprendi a jogar Minecraft e Roblox.
Gustavo Dessal (2020), na conferência proferida ao ICLO-NLS (Irish Circle of Lacanian Orientation) no dia 23 de maio, intitulada “Nem anjos nem demônios: psicanálise e tecnologia”, comentou que, diferentemente da ciência, que postula os parâmetros do sujeito universal, as tecnologias estão interessadas nas individualidades. Elas tentam capturar algo das diferentes modalidades de gozo dos sujeitos traduzindo-as matematicamente pelo uso de algoritmos. Esses recursos, de acordo com Dessal, poderiam ter um ótimo nível de eficácia, similar à promessa de uma segunda vida, como a religião postulava no passado.
Enquanto me juntei a alguns dos meus jovens pacientes em seus jogos on-line favoritos, pude investigar como suas modalidades de gozo estavam implicadas na escolha de um determinado jogo e na maneira como o jogavam. É importante mencionar que nenhum deles apresentava uma adição aos jogos e que eram capazes de transitar entre um jogo e outro e de, eventualmente, parar de usar essa ferramenta nas sessões posteriores.
Com um paciente autista de doze anos, joguei Minecraft modo sobrevivência. Ele é um jogador habilidoso e algumas vezes me convidou para sua casa no jogo. Nós trocamos objetos simultaneamente enquanto jogávamos e ele mencionou, durante o jogo, que nunca expulsou ninguém de seu mundo e que não gostava quando jogadores avançados não conseguiam acolher os jogadores novos. Reconheci sua capacidade de aplicar as habilidades sociais criando um laço social com os jogadores. Essa habilidade não poderia ser muito explorada em sessões presenciais.
Outra paciente de onze anos, que apresentava uma relação conflituosa com sua mãe e que acabou por ir morar com o pai devido a explosões de raiva desta, escolheu jogar Adopte-me no aplicativo Roblox. Primeiramente, percebi que o título do jogo escolhido se relacionava com a relação materna conflituosa. Em seguida, percebi seu desejo de cuidar de mim e dos animais de estimação no jogo. Ela se encarregava de nos alimentar, levar os pets ao veterinário e levar todo mundo para diferentes lugares. Em uma sessão, mencionei sua posição materna no jogo e algo mudou na transferência. Ela decidiu parar de jogar esse jogo on-line e preferiu fazer slimes[2] durante as sessões me mostrando diferentes cores e texturas de suas produções utilizando a câmera.
Dessal (2020) também mencionou que os seres falantes são consumidores de metáforas. Mesmo antes da pandemia, os analistas podiam experimentar o uso massivo de jogos on-line pelas crianças e adolescentes para fazer amigos, inventar novas formas de laço ou usá-los de forma autoerótica. Minhas intervenções com esses pacientes visavam fazê-los falar enquanto jogavam. Aprendi somente o básico dos jogos, uma vez que minha intenção não era competir com eles. Por outro lado, deixava meus avatares serem guiados pelo terreno de seus jogos e, uma vez ali, deixava-os fazer uso de minha presença digital enquanto minha voz refletia os encontros nesses mundos imaginários.
Como tudo o que fazemos em psicanálise, investigamos os resultados, caso a caso, sem acreditar que estamos criando um método científico que trate da universalização do ser. Contudo, como praticantes da psicanálise lacaniana, temos que trabalhar com demandas e recursos de nossa época e estar abertos ao desenvolvimento de novas modalidades de gozo que traduzam as impossibilidades do Real (MILLER, 2013).