Um corpo de angu1
Nathália Temponi Natal
Psiquiatra das Redes de Saúde Mental de Itabirito, Mariana e Ouro Preto
nathtemponi@uol.com.br
Cláudia Reis
Psicanalista, membro da EBP/AMP
claudia.r.reis@terra.com.br
Resumo: Este escrito se constituiu a partir de uma apresentação na Seção Clínica do Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo, na qual Nathália foi a responsável pela escrita do caso clínico e ,Cláudia, pelos comentários. Nosso campo de interesse foi investigar a relação que um sujeito pode manter com uma substância tóxica e a posição do analista na condução do caso clínico, e, em consequência, verificar os efeitos desse encontro.
Palavras-chave: Toxicomanias; psicose; instituição; analista.
A BODY OF ANGU
Abstract: This writing was constituted from a presentation at a Clinical Section of the Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo, in which Nathália was responsible for writing about the clinical case and ,Cláudia, for the comments. Our field of interest was to investigate the relationship that a subject can maintain with a toxic substance and the analyst’s position in conducting the clinical case and, consequently, verify the effects of this encounter.
Keywords: Drugaddictions; psychosis; institution; analyst.
Rogério foi acolhido na instituição de Saúde Mental em 2007, encaminhado pela Unidade Básica de Saúde com relato de que havia chegado agressivo e alcoolizado. Quando lhe perguntado o motivo do encaminhamento, respondeu:
“eu bebo desde o dia em que nasci, minha mãe colocava cerveja na mamadeira e me dava. Meu pai que mandava ela fazer isso, porque eu era muito agitado. Bebo para ver se alivia minha cabeça e se diminui meu estresse. Acho que tô piorando minha cabeça; já tentei parar de beber várias vezes e não consigo. Não consigo resolver meus problemas. Tem hora que eu penso que vou machucar alguém de tanto estresse. Quando a pessoa fala que vai parar de beber, morre; todos os meus amigos que pararam morreram. Quero parar! Ninguém gosta de cachaceiro!”
Relata que, quando criança, via pouco o pai; sentia sua falta e, quando o encontrava, este lhe dava cerveja.
Assumo esse caso em 2019. A todos os plantões, ele chegava alcoolizado, falava muito alto, entrava nos consultórios e interrompia os outros atendimentos. Traz no corpo diversas escoriações, marcas de cortes e cicatrizes de suturas em sua face, por vezes fraturas de partes dos membros superiores, costelas e dentes quebrados. Sua marcha é atáxica, devido a sequela em trauma do quadril na ocasião de um acidente. Observa-se uma piora de sua marcha nos dois últimos anos, provavelmente pelo consumo acentuado do álcool.
Tem chegado cada vez mais machucado; a cada dia, um corte e uma nova sutura em alguma parte do seu corpo, geralmente no rosto e couro cabeludo, por consequência de quedas da própria altura pelo consumo intenso de álcool. Costuma dizer: “o cadáver chegou!”.
Em março de 2020 eclodiu a pandemia do coronavírus e Rogério acentuou o uso do álcool. Ao ser acolhido pela instituição, conseguia passar o dia sem beber, fazendo uso apenas quando chegava em casa e aos fins de semana. A equipe observou o quanto foi importante esse acolhimento devido à urgência que se apresentava nesse caso.
Destaca-se da fala de Rogério sua revolta na infância por ver pouco seu pai e a afirmação de que, quando se encontravam, este lhe dava cerveja. Dos prontuários da instituição, extrai-se, já no acolhimento, que, em sua realidade psíquica, mamava cerveja. Quando se refere a parar de beber, nos traz uma colagem com a morte: “quando a pessoa fala que vai parar de beber, morre; todos os meus amigos que pararam morreram”. Mais adiante: “Eu já estou morto, quem bebe esse tanto já está morto”.
Tem-se uma queixa da falta do pai, relatos de um sentimento de abandono e desamparo e nota-se a presença da pulsão de morte. Esses pontos nos levaram a tomar o Lacan do início de seu ensino, em Complexos Familiares (LACAN 1938/2003), em que relaciona a toxicomania com o desmame. Aponta que o desmame representa a forma primordial da imago materna e que é um momento fundador dos sentimentos mais arcaicos e mais estáveis que unem o indivíduo à família. Portanto, instaura marcas importantes na formação do sujeito. Segue suas elaborações afirmando que, traumatizante ou não, o desmame deixa no psiquismo a marca permanente da relação biológica que ele interrompe. O desmame é aceito ou recusado, e a continuação do desenvolvimento evocará as marcas daquela crise. É a recusa do desmame que tende a restabelecer esses primeiros conteúdos experimentados. Importante destacar que se trata de um período anterior ao advento do objeto. Diz ainda que esses conteúdos moldam as experiências psíquicas posteriores e são reevocados por associação. Quanto à imago, cito:
“tem que ser sublimada, para que novas relações se introduzam com o grupo social e para que novos complexos se integrem no psiquismo. Na medida em que resiste a essas novas exigências […] a imago, salutar em sua origem transforma-se num fator de morte. […] Essa tendência psíquica para a morte, sob a forma original que lhe dá o desmame, revela-se nos suicídios […] naqueles que se evidencia a forma oral do complexo: a greve de fome da anorexia nervosa, o envenenamento lento de certas toxicomanias pela boca, o regime de fome das neuroses gástricas. A análise desses casos mostra que, em seu abandono à morte, o sujeito procura reencontrar a imago da mãe” (LACAN, 1938/2003, p. 41).
Que efeitos de sentido pode Rogério ter dado ao escutar que era cerveja que mamava?
Notamos uma desordem. Trata-se de um sujeito disfuncional. A forma como leva a própria vida, como não se conecta com o mundo que o cerca, o modo como experimenta seu corpo e o jeito de se relacionar com suas próprias ideias nos levam a tal afirmação. Não consegue ajustar-se socialmente, demonstra uma impotência em relação a conseguir encaixar-se num trabalho, suas relações são problemáticas. Seu corpo vagueia e tem a coordenação motora prejudicada. Um corpo que cai, corta, sutura, não se fixa; um angu, como bem nomeou a analista. Subjetivamente notamos um desenganche do Outro; a cabeça é ruim, porta um mal-estar, uma identificação com o objeto a como dejeto. Não se trata de uma identificação simbólica, mas real: “o cadáver chegou”.
A solução encontrada para todo esse mal-estar é beber. Poderíamos construir uma hipótese, a de que, diante da queixa da falta do pai, este lhe transmitiu esse modo de gozo? Ao aproximar a toxicomania da psicose, teríamos no gozar com o corpo uma forma de substituir o Nome-do-Pai?
Que lugar o objeto álcool ocupa para esse sujeito? O que essa substância representa, uma vez que sabemos que a intoxicação não é da substância, mas do significante?
Rogério está intoxicado pelo que essa droga representa para ele. Qual é o drama subjetivo que essa representação vem a responder?
Colhe-se em sua fala que se trata do encontro com o pai, o elo que os une. Desde seu nascimento (“a cerveja na mamadeira”), até a morte deste pai (“meu pai morreu bebendo comigo”), temos uma trajetória marcada pela presença dessa substância. Desde a falta do pai, sentida no início de sua vida, até a morte enquanto falta, Rogério encontra uma solução, um objeto que tampona, e até transborda: o álcool.
Como fazer desconsistir a droga e trilhar nosso objetivo, que é cavar a passagem do gozo da substância ao gozo pela palavra?
O gozo do toxicômano exclui o corpo do Outro, é autoerótico. Constitui-se como o suposto saber sobre o gozo, ou seja, tem-se uma certeza de gozo com a droga que é um objeto causa de gozo. A aposta da psicanálise é que existe o sujeito do gozo e o sujeito da palavra, e esta circula. Ao oferecer a escuta para que o toxicômano fale, pode despertar algo pulsional.
Nossa orientação teórica acredita que tem um sujeito do inconsciente no doente, por isso operamos a nível do sujeito, e não da droga, exigindo abstinência, por exemplo.
No que toca uma instituição para toxicômanos, sabe-se que esta precisa ser construída a partir do real e conviver com a ideia de que não há tratamento sem recaídas, e, exatamente por isso, tem que contar com algumas estratégias, como pudemos ver no relato do caso. Diante das transgressões do paciente, observa-se um vínculo, mas não muito apertado; um vínculo frouxo. Talvez por isso Rogério, aos trancos e barrancos do seu caminho, lá coloca seu corpo há 15 anos, e parece que ali endereça seu desamparo.
Tarrab (2000) fala da importância de se estar advertido e não ser tragado pelos discursos que circulam nas instituições. Deixar-se surpreender e apostar, sem garantias. Uma posição ética de escutar o sujeito mais além do nome que traz e o marca e dar lugar a sua particularidade. Delinear a entrada na transferência como uma possibilidade de saída.
Interessante o ponto de impasse da equipe diante da condução de tratamento. A solicitação de supervisão clínico-institucional foi uma saída importante. Encaminha-se, pela linguagem, o desafio de Rogério ao saber da equipe, que a colocava impotente e angustiada. Esta, a partir daí, sente-se mais segura para se posicionar e fazer o que precisava ser feito. Existem momentos em que as palavras faltam, e os pacientes passam ao ato para serem atendidos. Do ponto de vista terapêutico, é necessário realizar a internação, que muitas vezes lhes dará o limite corporal. As internações pontuais promovem um intervalo, um respiro.
Tivemos um dado importante que se deu durante a pandemia. Inserido como caso de exceção na PD, diminui o consumo. Nas enchentes deste ano, sem atendimento por duas semanas, a equipe o encontra com os cabelos e barba crescidos e humor deprimido. Poderíamos ter aí um indicador de que uma estratégia de mantê-lo em regime mais próximo poderia ser interessante?
Parece ser esse o desafio do caso. Algo da ordem de uma escuta mais regular, da construção de algum laço que lhe desse um lugar e possibilitasse modificar a posição do gozo desse sujeito, mais compatível com um corpo com outra consistência, que não a de angu.
Referências
LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003
TARRAB, M. Las salidas de la toxicomania. In: Más alla de las drogas: estudios psicoanalíticos. La Paz: Plural, 2000.
1. Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise nas Toxicomanias e Alcoolismo da Seção Clínica do IPSM-MG em 18/10/2022.