Uma defesa primária
Cristina Drummond
AME da EBP/AMP
paixao.bhe@terra.com.br
Resumo: O texto aborda a importância do conceito de defesa primária como norteador da clínica freudo-lacaniana. Freud situa a noção de defesa em primeiro plano nas psiconeuroses e delineia a própria concepção do funcionamento da vida psíquica, marcando sua oposição em relação aos seus contemporâneos. Desde o texto “Projeto para uma psicologia científica”, a defesa primária é percorrida tanto através da busca por sua origem quanto pela diferenciação entre defesa normal e patológica. Avançando pelo ensino de Lacan, argumenta-se que a defesa diz respeito à dor, ao corpo, e como cada um pode se virar com esse encontro. A partir dessa premissa, esse conceito é apresentado como orientador na direção do tratamento, seja em casos nos quais a formação do sintoma se estrutura pelo recalque e é passível de decifração, permitindo a desmontagem de sentido, seja nos fenômenos de corpo, como as toxicomanias e anorexias, seja quando a desmontagem da defesa faz emergir a pulsão encoberta. A construção pela defesa primária permite buscar, por trás das manifestações sintomáticas, o sujeito do gozo.
Palavras-chave: defesa; direção do tratamento; formação de sintomas.
A PRIMARY DEFENSE
Abstract: The text addresses the importance of the concept of primary defense as the guide of the Freudian-Lacanian clinic. Freud puts the notion of defense at the foreground in psychoneuroses, and outlines the very conception of the functioning of psychic life, marking his opposition to his contemporaries. Since the text Project for a scientific psychology, the primary defense is covered both through the search for its origin and the differentiation between normal and pathological defense. Advancing through Lacan’s teaching, it is argued that defense concerns pain, the body, and how each one can deal with this encounter. From this premise, this concept is presented as a guide in the direction of treatment, whether it is in cases in which the formation of the symptom is structured by the repression and is subject to decryption, allowing the disassembly of meaning in body phenomena, such as drug addictions and anorexias, or when the disassembly of the defense brings out the covert drive. The construction by primary defense allows for finding the subject of jouissance behind the symptomatic manifestations.
Keywords: defense; direction of treatment; symptom formation.
Freud e a defesa primária
Ao colocar a noção de defesa em primeiro plano nas psiconeuroses, Freud delineou a própria concepção do funcionamento da vida psíquica em oposição aos pontos de vista de seus contemporâneos. Para investigar os primeiros usos do termo, vamos voltar à histeria e às hipóteses sobre a etiologia das psiconeuroses e ao “Projeto para uma psicologia científica”, escrito por Freud em 1895 em apenas três semanas. Ele faz parte dos rascunhos trocados em sua correspondência com Fliess, a qual durou de 1887 a 1902. O projeto ficou inacabado e foi engavetado por Freud, que só voltou a ter contato com o texto em 1937, por intermédio da princesa Maria Bonaparte, que o obteve com a compra das cartas Freud–Fliess. O texto só foi publicado em 1950, 11 anos após a morte de Freud, e ele tornou-se uma referência para o estudo da metapsicologia, pois contém a origem de muitos conceitos.
Apesar de ser um documento neurológico, o projeto mostra o esforço inicial de Freud para compreender a etiologia das neuroses, assim como traz o gérmen do que ele vai desenvolver mais tarde. No “Projeto”, Freud se propõe a formalizar uma doutrina que tem na mecânica newtoniana seus parâmetros científicos, buscando uma base orgânica para as descobertas clínicas oriundas dos atendimentos a pacientes com sintomas neuróticos graves.
Em seu “Projeto para uma psicologia científica”, Freud aborda o problema da defesa de duas maneiras. Em primeiro lugar, ele procura a origem daquilo que chamou de “defesa primária” numa vivência de dor. Em segundo lugar, ele procura diferenciar uma defesa normal de uma defesa patológica. A primeira opera no caso da revivescência de uma experiência penosa, e o ego já começa a diminuir a intensidade do desprazer quando a situação se repete.
Na carta do dia 20 de outubro de 1895, Freud, que ainda se encontrava esperançoso em relação ao “Projeto”, relata a Fliess de que modo sua psicologia tornara-se clara para ele:
[…] as barreiras ergueram-se subitamente, os véus caíram e tudo se tornou transparente — desde os detalhes das neuroses até os determinantes da consciência. Tudo pareceu encaixar-se, as engrenagens se entrosaram e tive a impressão de que a coisa passara realmente a ser uma máquina que logo funcionaria sozinha. Os três sistemas de neurônios; os estados livres e ligados de Qn; os processos primário e secundário; a tendência principal e a tendência de compromisso do sistema nervoso; as duas regras biológicas de atenção e da defesa; as características de qualidade, realidade e pensamento; o estado do grupo psicossexual; a determinação sexual do recalcamento; e, por fim, os fatores que determinam a consciência como função da percepção — tudo ficou e continua correto até hoje! Naturalmente, mal consigo conter minha alegria (FREUD, 1887–1904/1986, p. 147).
Nessa carta temos um resumo do projeto e ela mostra que Freud queria encaixar o organicismo à sua teoria do Inconsciente em formação. Na carta que inicia em 8 e continua em 10 de novembro daquele ano, ele diz de sua tristeza pela desistência do projeto: “A partir de agora minhas cartas perderão muito de seu conteúdo. Empacotei os manuscritos psicológicos e os atirei numa gaveta, onde dormirão até 1896. […] Desde que pus a ΦΨω de lado, sinto-me abatido e desencantado; creio não estar de modo algum à altura de suas congratulações” (FREUD, 1887–1904/1986, p. 151). E a sua própria avaliação não deixa dúvidas de que ele abre mão de uma relação de superposição entre a neurologia e o mecanismo de recalque:
“Não entendo mais o estado mental em que maquinei a psicologia; não consigo perceber como posso tê-lo infligido a você. Creio que você está sendo polido demais; para mim, parece ter sido uma espécie de loucura. A solução clínica das duas neuroses provavelmente se manterá, depois de algumas modificações” (FREUD, 1887–1904/1986, p. 153).
A primeira utilização do termo “defesa” ocorreu no texto “Neuropsicoses de defesa” (1894). Entretanto, antes disso, Freud já buscava compreender esse processo, mesmo que não o tivesse nomeado assim. O estudo das origens das concepções sobre defesa nos remete às suas investigações acerca do trauma. Freud afirma que as quantidades de energia com as quais um sujeito tem de lidar colocam o psiquismo em funcionamento, pois, das excitações que provêm de fora, o sujeito pode fugir, tal como no modelo do arco-reflexo; mas não pode fugir das excitações internas, o que acarreta a necessidade de estruturas capazes de dar conta da tramitação interna e da descarga adequada das quantidades de energia.
Para Freud (1893/1976, p. 42), a lembrança traumática possui ação contínua e intensa, que não se desgasta com o tempo, pois não houve perda do afeto que está investido nela. O momento que marca o surgimento da doença é aquele em que o indivíduo “se confrontou com uma experiência, uma representação ou um sentimento que suscitaram um afeto tão aflitivo que o sujeito decidiu esquecê-lo” (p. 55). É essa incompatibilidade entre o eu e uma representação que torna necessária a “divisão de consciência”, ou seja, a criação de um segundo grupo psíquico cujo núcleo é recalcado. Nesse momento inicial da concepção da defesa, esse processo é tratado como um ato voluntário de afastar algo tomado como desprazer do psiquismo, e ele não pode ser considerado patológico, já que esse ato de esquecimento intencional é bem sucedido para muitas pessoas. Por isso, Freud (1895/1977) inclui a defesa entre as tendências normais do indivíduo.
Para formular o modelo do funcionamento psíquico, Freud (1895/1977) propõe uma concepção quantitativa dos processos psíquicos com duas noções fundamentais: a de neurônio e a de quantidade (Q). A quantidade é a energia que circula pelos neurônios, podendo ser deslocada e descarregada. A energia transita através dos neurônios, que são capazes de armazená-la. Assim, um neurônio pode estar ocupado, com uma quantidade de excitação, ou desocupado. O sistema nervoso recebe estímulos do mundo externo. A tendência é descarregar-se das quantidades de energia que ingressam pela fuga, seguindo o modelo do arco-reflexo. Mas o sistema nervoso recebe também estímulos endógenos, que precisam ser descarregados, e dos quais o organismo não pode se esquivar. Esses estímulos criam as grandes necessidades, tais como a fome, a respiração, a sexualidade. Diante desses estímulos, o aparelho não pode descarregar toda a quantidade de excitação presente no neurônio, pois é necessário que este sustente um acúmulo de Q, em função das ações necessárias para pôr fim a eles. A partir disso, Freud (1895/1977) diz que a estrutura e o desenvolvimento, assim como as funções dos neurônios, devem ser compreendidos com base no princípio de inércia, que é a tendência a evacuar as quantidades de energia que recebem do mundo externo, com o objetivo de diminuir a excitação presente no neurônio. Com o fracasso dessa evacuação, a tendência do psiquismo passa a ser manter a energia no nível mais baixo possível, o que constitui o princípio de constância.
No início da vida, devido a seu estado de desamparo, o ser humano não consegue provocar uma ação capaz de diminuir a tensão vinda de excitações endógenas. O alívio da tensão só pode ser alcançado se for eliminado o estímulo na fonte endógena. Nesse momento, o sujeito precisa ser auxiliado por outro, que realize uma ação para acabar com o estado de tensão. Quando isso ocorre, essa ação diminui a tensão interna, produzido uma sensação de prazer na consciência. Essa ação é independente da Q endógena, e Freud a chama de ação específica, aquela que possibilitará o que Freud denomina vivência de satisfação. A vivência de satisfação deixa uma marca e fará com que o sujeito, diante de novo estado de tensão, queira que essa se repita. É pela vivência de satisfação que serão construídos os traços mnêmicos. Por meio da vivência de satisfação, devido a um movimento mecânico, a notícia da eliminação da tensão chegará a outros neurônios formando uma trilha preferencial entre neurônios que contêm a imagem mnêmica do objeto da satisfação. Quando outra situação de tensão ocorrer, a imagem do objeto é reinvestida e ocorre algo análogo à percepção, ou seja, uma alucinação. O psiquismo não contém mecanismos internos suficientes para discriminar entre a presença real do objeto da satisfação e a alucinação deste. Assim, torna-se necessário que se adquira um critério para verificar a presença real do objeto da satisfação, a fim de que seja efetuada uma descarga de Q na presença do objeto de desejo, o que efetivamente levaria à satisfação. Do contrário, diante da alucinação, a descarga de Q levaria ao desprazer.
Freud (1895/1977) afirma que as ações humanas se constituem em duas vivências fundamentais: buscar o prazer e evitar a dor. A busca do prazer é indicada como vivência de satisfação. Tanto na vivência de satisfação quanto na vivência de dor, há uma memória que, em determinadas circunstâncias, é acionada. Na busca do prazer, a imagem do objeto de satisfação é reinvestida. No entanto, para que haja de fato uma satisfação da tensão, o objeto tem de estar presente. No caso de um objeto causar dor ao psiquismo, há uma sensação de desprazer, e esse aumento quantitativo induz a eliminação da Q para consequente alívio da tensão. Ocorre ainda um trilhamento entre a tendência à descarga e uma imagem-lembrança do objeto que provoca a dor. Se a imagem do objeto hostil é reinvestida, surge um estado de desprazer com uma tendência à descarga. Esse estado não é propriamente a dor, mas algo que se assemelha a ela e que Freud chama de afeto. Na recordação da dor, há desprazer. O desprazer tem uma origem dupla: no ambiente externo, pelo objeto hostil; internamente, pela recordação. Portanto, evitar a dor terá relação com o não-investimento da imagem mnêmica do objeto hostil.
Isso é o que Freud caracteriza como defesa primária: a desocupação da imagem recordativa hostil. A defesa primária, que é acionada no caso da dor, cumpre a função de gerar uma aversão a manter investida a imagem mnêmica hostil. Portanto, a consequência da defesa primária é gerar prazer, evitando o desprazer. Freud afirma que, além da defesa primária, o psiquismo necessita de mecanismos internos para dar conta da insatisfação que seria gerada a partir da recordação da dor e da catexização da imagem mnêmica do objeto da satisfação sem sua presença real. Daí decorre a importância, para a estruturação psíquica, da vivência da dor e do estado de desejo. Se não existem estruturas internas capazes de inibir o processo alucinatório no caso da dor, há a geração de desprazer. Embora o objeto hostil não esteja presente, o desprazer sentido pela representação é como se fosse real e externo. Da mesma maneira, a catexização do objeto de desejo nos estados de desejo leva ao desprazer, pois há uma eliminação da tensão pelos caminhos facilitados, mas não ocorre a satisfação, pois o objeto de desejo não está lá para propiciá-la. Se a inibição, que é tarefa do ego, não se realiza, há naturalmente uma decepção. Dessa maneira, o ego é um conjunto de neurônios que tem por finalidade inibir a descarga da quantidade quando da ausência do objeto da satisfação. No caso da dor, precisa-se de um signo para a desocupação da imagem recordativa hostil. Essa tarefa do ego se dá pela inibição da descarga de quantidades, pelo processo que Freud denominou de ocupação das vias colaterais, que consiste em inibir a descarga da Q pelos caminhos facilitados, desviando-a para os neurônios colaterais. Se se conseguir realizar a inibição a tempo, não haverá liberação de desprazer. No caso contrário, haverá enorme desprazer e defesa primária excessiva. Esse é o papel do ego. A partir da postulação da inibição da descarga feita pelo ego, Freud distingue os processos psíquicos primários e os secundários. No processo primário, o estado de ligação do ego deixa de ser levado em conta e prevalecem as ligações associativas criadas pela vivência originária, havendo uma indiferenciação entre percepção e alucinação do objeto. Os processos psíquicos secundários se dão a partir da inibição produzida pelo ego. Nesse caso, verifica-se que a defesa primária é menos utilizada nos processos secundários devido à inibição.
A defesa primária é considerada, ao lado da atenção, regra biológica e definida como um repúdio a manter investida a imagem mnêmica hostil da dor, isto é, evitar o desprazer. Contudo, não se podem ignorar as reações de adoecimento encontradas em diversos pacientes, que se devem ao esquecimento ocasionado pela “divisão de consciência” (1894, p. 57). O que determina uma defesa como tendo um caráter patológico é o deslocamento. A ideia que causa desprazer é esquecida, mas outra representação irrompe repetidamente na consciência sem motivo evidente e desencadeia o afeto aflitivo (FREUD, 1895/1977, p. 405-406). Na tentativa de defender-se, o eu se obriga a fazer algo de que não é capaz: erradicar o traço mnêmico e o afeto ligado à representação, “mas uma realização aproximada da tarefa se dá quando o eu transforma essa representação poderosa numa representação fraca, retirando-lhe o afeto do qual está carregada” (FREUD, 1894/1976, p. 56). Para que a representação incompatível se torne verdadeiramente inócua, é preciso que a soma de excitação que dela foi desvinculada seja utilizada de alguma forma, seja pela conversão, seja pelas falsas ligações das ideias obsessivas, seja pela liberação de angústia.
Há ainda outro tipo de defesa, que, segundo Freud, é mais poderosa e mais bem sucedida do que naqueles casos em que a representação incompatível é separada de seu afeto. Nessa defesa, “o eu rejeita a representação incompatível juntamente com o seu afeto e se comporta como se a representação jamais lhe tivesse ocorrido” (FREUD, 1894/1976, p. 64). Quando isso acontece, o sujeito fica em um estado de confusão alucinatória que pode ser classificado como psicose. Nesse processo de “fuga para a psicose”, o eu rompe com a representação incompatível, que está ligada a uma parte da realidade e, dessa forma, ele acaba por romper com a realidade.
Freud (1895/1977, p. 374) constatou que o recalcamento incide sobretudo sobre as ideias provenientes da vida sexual do sujeito e que despertam no eu um afeto de desprazer. Essas ideias não são realmente extintas. Torna-se necessário que a força recalcadora que atuou no passado continue sua ação através da resistência que é dirigida contra qualquer pensamento que tenha relação com o recalcado. Esse processo é regulado pelo eu. Dessa forma, a defesa passa a adquirir um caráter contínuo, que tem como efeito a resistência evidenciada na clínica. Ao retomar o tema da determinação do processo defensivo patológico, Freud (1896) abandona a questão da hereditariedade como causa mais importante das neuroses e defende o papel da sexualidade na causação tanto das neuroses atuais quanto das psiconeuroses de defesa, ressaltando que, nestas, o psiquismo assume papel essencial através da defesa contra as lembranças traumáticas de experiências sexuais reais ocorridas precocemente.
Tal como Virgínia Carvalho nos indicou na lição anterior, Freud separa e mistura os conceitos de defesa e recalque e, apenas no texto “Inibição, Sintoma e Angústia”, ele pode deixar claro que o recalque não é a mesma coisa que a defesa e toma o recalque como “um caso especial de defesa”, já que ele visa a proteção do eu contra as “exigências pulsionais” (1925–1926/1976, p. 159).
Carvalho retomou os efeitos do recalque separando afeto de representação e seus efeitos de conversão na histeria do seu processo em dois tempos, com deslocamento da representação na neurose obsessiva. O efeito do recalque é o sintoma, mas, nos processos de defesa primária, nem sempre a resposta é a constituição de um sintoma, já que o sintoma decifrável é um recurso do simbólico e ele depende do recalque de um significante.
Nesse sentido, o conceito de defesa não se restringiria ao simbólico, tampouco ao imaginário, já que podemos também tomar todo o recurso ao imaginário como uma defesa diante da precariedade e do desamparo do infans. Se a defesa é defesa ao real, ao encontro com o real, o imaginário e o simbólico se apresentam como maneiras distintas de recobri-lo.
Por isso o conceito de defesa primária, aquela que antecederia o recalque, nos é muito caro, pois ele nos indica que, quando o sujeito não conta com o recurso do sintoma, temos que nos dirigir ao que ele pode construir como defesa diante do primeiro encontro com o real da língua, a como a palavra tocou seu corpo. A defesa primária diz respeito à dor, ao corpo e a como cada um pode se virar com esse encontro.
Da importância de retomar o conceito de defesa
1) A defesa primária é a defesa do real da pulsão
Em primeiro lugar, perguntei-me a respeito da importância de tomarmos o conceito de defesa a partir de um texto que poderíamos dizer ser pré-psicanalítico, já que ele data de cinco anos antes de “A interpretação dos sonhos”. Nessas lições introdutórias, visamos tratar o conceito de defesa até chegar à proposta de Lacan de que a direção de um tratamento se orienta pela perturbação e desmontagem da defesa, o que demanda passar pelos diversos tempos da construção desse conceito. Como Virgínia Carvalho nos trouxe em sua aula anterior, desmontar a defesa é uma operação que incide sobre o gozo autístico, sobre o gozo do Um. É uma formulação de Lacan de 1976, que extrai do caminho de Freud uma indicação precisa sobre a direção do tratamento, e vamos ter que fazer um grande percurso teórico para dar a ela todo o seu valor de orientação.
Para vocês terem uma ideia do que vamos buscar construir nesse percurso, sugiro a escuta do vídeo de Esthela Solano no Boletim Punctum 31. Ali ela fala do que Lacan nos indicava como a direção de uma análise: recuperar um traço de gozo que ex-siste no nível do dizer. Ir além do simbólico e do imaginário para buscar o que uma análise deve visar e que ela chama de um acontecimento de sentido real, aquele que toca o corpo. Se a pulsão é definida como o eco no corpo do fato de que há um dizer, é esse nível real do pulsional que Lacan buscava tocar para além das palavras que o sujeito enuncia, e, para isso, é preciso perturbar a defesa. Perturbar a defesa implica em atrapalhar a homeostase do princípio do prazer ao fazer um sujeito falar sobre aquilo para o que ele se mostra menos disposto, isto é, de suas particularidades sintomáticas.
Acho que o exemplo relatado por Silvia Ons (2022), de um caso que ela acompanhou em supervisão, nos ajuda a entender melhor a maneira como tomamos a defesa na perspectiva de sua perturbação. Trata-se de uma mulher que, quando era criança, ganhou um frasco em forma de fada (hada) com granulados dentro. Ela o pede dizendo: “me dá o geladinha (heladita)?”. Nesse momento ela é corrigida. Dizem-lhe: “não é a heladita, é hada”. Ela leva a lembrança desse equívoco para sua análise perguntando-se sobre seu sentido. O analista lhe diz: “você já sabe o que tem que fazer com isso”, tomando esse equívoco como uma jaculatória sem sentido, puro gozo. Mas, numa segunda análise, ao puxar o fio simbólico, surge uma cena sexual infantil durante a qual ela fantasiava com uma geladeira e assim, geladinha, heladita, tem um caráter de defesa: esfriar o prazer desse encontro sexual mas, ao mesmo tempo, perpetuá-lo. Geladinha não é apenas uma representação, já que é também sintoma como acontecimento de corpo com suas duas caras: defesa diante do gozo e memória inapagável de seu encontro. Como castigo por seu erotismo infantil, ela imaginava que iriam trancá-la em uma geladeira, padecendo de uma rinite crônica e estando sempre resfriada. Seu ceticismo diante da existência, seu constante pessimismo, sua recusa em admitir que os acontecimentos pudessem ser distintos daquilo que ela imaginava, indicam como o heladita é também esse saber gélido que a acompanhava e mortificava. Isso indica que, para se perturbar a defesa, é preciso esgotar o sentido que ela encerra.
2) Quando o sujeito não conta com um sintoma
Em segundo lugar, tomar o conceito de defesa tem uma grande importância na orientação do tratamento psicanalítico nos casos em que as defesas não estão estruturadas a partir do recalque e dos sintomas passíveis de serem decifrados pelo simbólico. É um fato constatável que a psicanálise muda e que nos defrontamos em nossa atualidade com uma ordem simbólica e com um real distintos daqueles do final do século 19. Se a língua que habitamos muda, os sintomas e os fenômenos de gozo também mudam. Cabe ao analista lidar com a subjetividade de sua época, mas isso não nos leva a querer ser atuais e conformes a nossa época.
Ainda que a maneira de interpretar tenha mudado, buscamos fazer valer os princípios lógicos que orientam nossa prática da psicanálise, que é sensível ao mestre de nossa época, mas eles devem ser entendidos a partir da maneira pela qual Lacan nos ensinou a ler Freud. Tal como diz Max Jacob, o verdadeiro é sempre novo, e essa me parece ser a boa maneira de retornar a Freud naquilo que ele nos indica como insuperável. Lacan (1977) nos assinala o espírito com o qual devemos retornar a esses primeiros textos em sua “Abertura da sessão clínica”, em que ele nos diz que o analista tem que apresentar suas razões, até mesmo no mais ocasional de sua prática, e também tem que justificar a razão de Freud ter existido.
Freud não manteve as mesmas ideias em relação ao conceito de defesa e, durante sua obra, introduziu mudanças em sua teoria de acordo com as questões que foram suscitadas pela experiência do real de sua clínica. A teorização do conceito de defesa tem grande importância clínica, na medida em que foram as resistências, entendidas em um primeiro momento como reflexos clínicos da defesa, que mobilizaram as mudanças na técnica e as reformulações teóricas em torno da concepção do tratamento das neuroses. O conceito de defesa foi apropriado de forma equivocada por diversos psicanalistas, o que gerou um tipo de prática baseada na análise das resistências do eu, tendo como alvo o fortalecimento das defesas. É o viés da psicanálise tomada como a análise dos mecanismos de defesa que foi muito trabalhado por Anna Freud, segundo a qual tudo o que concorre para dificultar o processo analítico seria da ordem de uma resistência.
Essa ênfase dos pós-freudianos nos mecanismos de defesa e na análise das resistências é um ponto importante na distinção de nossa orientação lacaniana e da maneira pela qual tomamos os tratamentos. Isso torna o entendimento do conceito de defesa ainda mais essencial para fundamentarmos os princípios lógicos de nossa prática.
Retomar os caminhos desse conceito também nos leva a promover as maneiras iniciais de Freud e tomá-lo como uma defesa primária, que seria distinta do recalque. Esse retomar das primeiras observações clínicas de Freud se articula ao interesse pelas várias manifestações clínicas da contemporaneidade que se apresentam na clínica do narcisismo, assim como naquela da compulsividade desregulada e da descarga por meio das diversas atuações. Essas respostas não são construídas de modo sintomático, não são construídas a partir do recalque, e pensar sua organização a partir da defesa primária pode nos ajudar na abordagem desses fenômenos. Penso aqui na distinção entre fenômenos de corpo e acontecimento de corpo como respostas distintas que exigem modos distintos de tratamento e que talvez possamos articular com o conceito de defesa primária tal como Freud o pensou no início de seu percurso. Se as neuroses típicas se fundam pelo recalque, outros sintomas, tais como a anorexia, as toxicomanias, obesidades e outros fenômenos de corpo, podem ser iluminados em sua articulação com as defesas primárias.
3) Quando a defesa se desmonta e surge a pulsão que a encobria
Penso que também seria importante pensar no que nos ensinam alguns casos em que as defesas são desmontadas a partir de um encontro com o real. Elas nos elucidam a respeito da função da defesa e de como as pulsões se apresentam a partir da desmontagem desse recurso. Vou tomar um exemplo que se aproxima daqueles relatados por Lacan sob o título de perversão transitória, perversão reativa diante de um impasse no simbólico, no qual a desmontagem da fantasia faz aparecer uma resposta da pulsão separada da defesa.
Trata-se de um caso relatado pela analista italiana Laura Storti em uma conferência proferida na sessão clínica de NUCEP em janeiro de 2022, um caso de psicanálise aplicada atendido no laboratório de homens que cometeram violência contra mulheres e menores, em um serviço localizado em Roma. Storti se refere a um homem de 58 anos que foi atendido durante um ano no âmbito desse laboratório. O serviço social o encaminhou buscando um especialista em pedofilia e ninguém tinha se colocado à disposição para tal tratamento. Ele havia ficado um ano na prisão e, depois, alguns dias em prisão domiciliar enquanto esperava uma sentença definitiva. Foi condenado por tentativa de violência contra duas menores e por possuir material pornográfico infantil. No primeiro encontro, ele coloca sobre a mesa da analista os vários documentos judiciais e conta que o incidente ocorreu em um sótão de um edifício residencial onde ele fazia serviços de inspeção. Diz que não fez nenhum tipo de violência contra as meninas, que só se masturbou na frente delas. Dois policiais o prendem um mês depois e um deles lhe pergunta se ele tinha material de pornografia infantil. Ele diz que sim e entrega espontaneamente o material. Essa admissão foi a causa de sua prisão. Ele não entende como chegou a essa situação e diz que é um homem justo, um homem casado, pai de duas filhas e avô de duas netas e que às vezes duvidava se tinha sido ele mesmo que havia feito isso. Passa por uma situação de ameaça na prisão e diz que os tratavam assim. Ao ser perguntado a quem ele se referia, ele sussurra: pedófilos. Tem insônia, fica confuso e muito angustiado. Na prisão, o guarda com um olhar perturbador lhe disse que ele deveria morrer. A perda de trabalho como eletricista e vagabundeio na internet o fizeram colecionar as imagens. Primeiro buscou trabalho na internet e, depois, imagens de mulheres, e, à medida que seguia sua busca, o computador lhe perguntava se queria mulheres mais jovens. Começaram a chegar imagens de meninas. De início, se masturbava, mas depois, não mais. Ele não conseguia entender o que acontecera, pois sempre gostara de mulheres. Quando a analista lhe pergunta se não se interessava nem em sua fantasia, ele se mostra confuso. Ele catalogou as imagens. Fala que a mãe era muito religiosa e rígida. Ele era o mais novo dos filhos e a mãe separava os meninos das meninas. O pai sempre estava fora de casa, trabalhando. Traz uma lembrança infantil: aos seis anos está em uma festa na sua casa e beija uma menina. A mãe entra pela porta e diz à menina que não volte à sua casa e bate muito no filho. Ele se pergunta se essa lembrança teria algo a ver com o que aconteceu com ele, já que ela tinha a mesma idade das meninas diante das quais ele se masturbou. Ele diz que, ao ver as meninas no marco da porta, algo fez click nele. Ele se pergunta pelo prazer em olhar as mulheres e as meninas, mas também pelo prazer em ser visto pelas meninas. Disse que talvez tenha feito isso para poder parar. Havia ali o olhar da mãe e o do guarda da prisão. Foi uma apresentação da cena fantasmática que o levou à atuação.
Creio que o conceito de defesa primária é aquele que nos permite nos orientar na leitura desse tipo de manifestação, fazendo-nos buscar, por trás delas, o sujeito do gozo, aquele que a defesa encobriu.