Uma época fundamentalmente descrente – Dalila Arpin

Resumo
A autora distingue descrença de incredulidade, e mesmo de ateísmo, para mostrar que a descrença — a falta de uma crença ordenadora — dos dias atuais leva ao surgimento de sujeitos que demandam certezas. Pergunta-se como a psicanálise pode responder a isso, já que um de seus conceitos fundamentais, a transferência, é posto em causa por todos desejarem ser sujeitos supostos saber. Os escritos de Franz Kafka comparecem como exemplos desse mundo angustiado onde falta a crença no Outro.

Palavras-chave: crença, descrença, certezas, Outro, angústia.

Abstract
A fundamentally disbelieving age
The author distinguishes between disbelief and incredulity and even atheism to show that disbelief — the lack of an ordering belief — nowadays leads to the appearance of subjects that demand certainties. She asks how psychoanalysis can respond to that because one of its main concepts — transference — is questioned since everybody wants to be a subject supposed to know. Franz Kafka’s writings come up as examples of this anxious world in which belief in the Other is missing.

Keywords: belief, disbelief, certainties, Other, anxiety.

 


Foto de Nelson de Almeida

 

 

DALILA ARPIN
Psicanalista, membro da Escola da Causa freudiana – ECF/AMP

 

Em nossos dias, fala-se da falta de confiança, da incerteza, da perda das ilusões — várias tentativas de reestabelecer a crença no Outro da boa fé. Uma leitura atenta demonstra que alguns fenômenos contemporâneos não se explicam por uma perda de crença, mas pela presença da descrença — Unglauben —, uma noção que a psicanálise ampliou para além do terreno religioso.

O mundo não é mais o que era

Muitos filósofos assinalaram a descrença, o ceticismo e até a ausência total de crença em nossa época. Nesse sentido, Jacques Bouveresse afirmava:

Mesmo ao se dizerem descrentes, alguns intelectuais colocam-se hoje como defensores da religião em nome de coisas como a necessidade de sagrado e de transcendência, ou o fato de que o laço social só pode ser, em última instância, de natureza religiosa. Mas o que se observa atualmente corresponde sem dúvida menos a um ‘retorno do religioso’ do que ao que Musil chamou de a ‘nostalgia da crença’, que uma época de outro modo fundamentalmente descrente tem uma desagradável tendência a confundir com a própria crença. E o que enfrentamos, na realidade, é mais um novo uso da religião — naquilo que ela pode comportar de mais tradicional e até mesmo de mais arcaico — pelo poder e a política, do que um renascimento religioso propriamente dito (BOUVERESSE, 2007, texto da contracapa).

Por sua vez, Marcel Gauchet apontava, em O desencantamento do mundo (1985), o luto necessário após o desmoronamento das utopias de 1968. Ele indicava que a saída da religião não significa a saída da crença religiosa, mas de um mundo no qual a religião é estruturante, onde ela comanda a forma política das sociedades e onde ela define a economia do laço social.

Estamos, definitivamente, na época d’O Outro que não existe e seus comitês de ética. Se crer é crer no Outro, a crença está comprometida/prejudicada na sociedade contemporânea. “O Nome-do-Pai se trincou”, como disse Jacques-Alain Miller (2014, p. 22). As referências das quais dispúnhamos não estão mais ao nosso alcance, e assistimos à “grande desordem no real no século XXI” (Ibid., p. 23). Como psicanalistas, recebemos cada vez mais sujeitos que não creem no Outro, que demandam garantias, que são céticos, que exigem resultados… Na paisagem de descrença atual, a crença na psicanálise não constitui exceção. A transferência, conceito psicanalítico e pivô essencial de um tratamento, não é mais o que era. A questão se coloca agora: como operar nesse contexto com os meios da psicanálise?

Essa crença a meio-mastro determina o surgimento da angústia diante de um real desregulado, o ponto exato em que Freud localizou o nascimento das religiões (FREUD, 1927/1996). O homem primitivo, confrontado com as forças indomáveis da natureza, talhou divindades capazes de vir em seu auxílio no seu desamparo. Essa invenção foi extremamente tranquilizadora e lhe permitiu suportar a inclemência da natureza. Uma vez que somos confrontados à grande desordem do real, as soluções contemporâneas dão conta não mais do surgimento de crenças, mas da busca de certezas. Seguindo Freud e Lacan, constata-se que a certeza se distingue da crença; ela é própria da descrença.

Uma descrença certa demais

O senso comum da descrença está relacionado à ausência de crença religiosa e é frequentemente considerado sinônimo de ateísmo (LE ROBERT, 1996). O termo “crer” (LE ROBERT, 1988) tinha, a princípio, significados profanos e se relacionava à confiança depositada em qualquer coisa ou pessoa. É a introdução do cristianismo que o circunscreve à esfera religiosa. O termo “descrença” é introduzido apenas no século XIX, pela mão de Chateaubriand. Essa palavra permanece pouco comum, frequentemente em concorrência com “incredulidade”, recusa a crer. O termo “descrente” fez sua aparição um século mais cedo, mas foi de repente abandonado em favor do termo “não-crente”. De tal modo que a descrença, termo tardio e pouco corriqueiro, não conseguirá, posteriormente, se livrar do sentido religioso. É a psicanálise que vai ampliar sua acepção para além do sentido religioso. Freud emprega o termo Unglauben — que é possível traduzir como descrença — a propósito da paranoia na qual, diferentemente da neurose obsessiva, nenhum crédito é dado à censura (FREUD, 1896/1996, p. 135). A censura volta-se para o exterior e o outro é considerado responsável por ela. O sintoma primário é, conforme o caso, a desconfiança. Na neurose obsessiva, mais caracterizada pela autocensura e pelo sintoma da escrupulosidade, a Unglauben aparece, então, como o que separa essas duas entidades clínicas.

Para Lacan, a descrença ocupa um lugar importante no início de seu ensino. No seminário sobre as psicoses afirma que o que caracteriza a psicose é que, entre as duas funções da fala, fides e fingimento, a segunda invadiu a primeira (LACAN, 1955-56/1988, p. 47). Na dimensão de um imaginário submetido, um exercício permanente do engano vai subverter toda a ordem, qualquer que seja. No Seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, a noção de Unglauben é mais bem esclarecida (LACAN, 1964/1996, p. 225). Na crença, dois elementos se separam: o sujeito dividido, que crê, e o sujeito suposto saber, aquele a que se dá crédito. Para um sujeito dividido — aquele para quem uma parte do aparelho psíquico é o inconsciente —, a crença nunca é plena nem absoluta. Ora, a descrença não é “não crer nisso”, mas a ausência do primeiro termo da crença: o sujeito dividido. Ela se define como uma apreensão em massa da cadeia significante que impede a abertura dialética própria à crença. A paranoia, que parece estar animada de crença, está mais do lado da descrença. Na medida em que a dialética está excluída dela, a descrença tende a deslizar em direção à certeza.

Assistimos atualmente a uma busca desenfreada de certezas. Assim como a escalada de fundamentalismos, que recrutam cada vez mais acólitos entre os jovens ocidentais. A religião é instrumentalizada em benefício de uma ideologia de dominação, de tal modo que aqueles que são seduzidos por ela seguem ensinamentos impregnados de certezas. A relação da certeza com a pulsão encontra sua expressão última na matança. A existência de enciclopédias na web constitui um outro exemplo. O leitor é também autor e pode modificar o texto que, em seguida, será compartilhado ou mesmo modificado por outros leitores dos quais não se requer nenhuma qualificação. Qualquer um pode contribuir para o saber planetário, de tal modo que somos todos sujeitos supostos saber.

Franz Kafka, poeta do extravio

Um escritor do século XX, pela errância que lhe era própria, soube antecipar nossa época fundamentalmente descrente. “Alguém certamente havia caluniado Joseph K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum” (KAFKA, 1997, p. 9). É assim que começa O processo, uma das obras-primas do escritor tcheco. Ele é confrontado com um mundo e um tempo que o deixam perplexo. Um mundo hostil, de pesadelo e arbitrário:

[…] absorvi vigorosamente o elemento negativo do meu tempo, um tempo que me é muito próximo, que não tenho que combater, mas tenho o direito, até certo ponto, de representar. Em seus poucos elementos positivos — como ao negativo extremo que se torna positivo — não tive participação hereditária. Não fui como Kierkegaard guiado pela mão já bastante debilitada sem dúvida do cristianismo e nem como os sionistas agarrei a custo a última franja do xale de prece judeu que esvoaça” (FRIEDLÄNDER, 2014, p. 220).

O apelo à religião, fosse ela judaica, fosse cristã, não lhe deu nenhum auxílio. O historiador Saul Friedländer constata que, se Kafka se documentou abundantemente sobre a literatura ídiche de sua época, foi em busca de uma fonte de inspiração literária. Esse historiador se pergunta sobre as fontes judaicas da literatura de Kafka e conclui que apenas a novela intitulada “Em nossa sinagoga” lhe faz uma referência explícita. Um animal de tamanho e cor imprecisos a elegeu como domicílio. Sua infelicidade é habitar um lugar que é animado apenas temporariamente e fadado a transformar-se em celeiro. Como Friedländer sugere, a história poderia representar “o aspecto indeterminado e a ’cor’ incerta da judaicidade, tal como Kafka a percebia”, assim como a erosão do judaísmo europeu (FRIEDLÄNDER, 2014, p. 98). Kafka ele próprio se considerava “excluído pelo seu judaísmo não sionista […] e não crente” (KAFKA, 1988, p. 696).

Numa carta a seu amigo e biógrafo Max Brod, ele expressa a grande angústia que se apoderara dele uma noite, impedindo-o de dormir. Ele tem a impressão de viver uma “descida em direção aos poderes obscuros” (KAFKA, 1984, p. 1.156), onde os espíritos naturalmente acorrentados se soltam. É então que “o diabólico da coisa lhe parece bem claro. É a vaidade e o apetite de prazer” (FRIEDLÄNDER, 2014, p. 224). É nesse momento que, buscando uma saída, ele se volta para a escrita. No entanto, mesmo ela lhe parece fraca comparada às “forças do Mal”, considerando-a “um salário a serviço do diabo” (FRIEDLÄNDER, 2014, p. 223). Ele se vê sobre um “solo tão frágil, talvez totalmente inexistente, por cima de um buraco de sombra, de onde os poderes obscuros saem à vontade para destruir [sua] vida” (KAFKA, 1984, p. 1.155).

O tom é desesperado: “Tudo é quimera, a família, o escritório, os amigos, a rua, tudo é quimera e quimera mais ou menos distante, a mulher; mas a verdade mais próxima é que você bate a cabeça contra a parede de uma cela sem porta nem janela” (KAFKA, 1984, p. 514).

A oposição é clara entre o fundo de angústia, de depressão, de desencanto e o aparecimento da certeza: ele é presa de forças maléficas que se imiscuem até mesmo na sua esperança de saúde, a escrita.

Seja em O castelo, seja em O processo, o personagem principal está às voltas com uma autoridade que ele não chega a identificar nem a enfrentar (FRIEDLÄNDER, 2014, p. 231). As prisões são arbitrárias, e, as condenações, inexoráveis. As narrativas descrevem o longo caminho do personagem, até sua queda. Nada pode ser contra a Lei, pois a própria existência da Lei pode ser questionada. Como sugeriu Éric Santner:

[O] discurso de mestre [que implica a existência da Lei] foi atenuado e disperso num campo de relés e pontos de contato que não possuem mais nenhuma coerência, nem mesmo na fantasia, como um “outro” consistente de possível endereçamento e reparação. Em Kafka, a Lei está em todo lugar e em lugar nenhum (SANTNER, 2006, p. 22).

Em Investigações de um cão, um dos últimos textos do escritor, um velho cão busca compreender diversos aspectos da “raça canina”, examinando o maior número de elementos que a concernem. “Onde estão, portanto, meus congêneres? Sim, esta é a queixa — precisamente esta” (KAFKA, 2002, p. 174), exclama o cão com amargura. O cão aqui pega o bastão de Diógenes, pois, em alemão — bem como nas línguas latinas —, uma aproximação é possível entre as palavras cão (Hund) e cínico (hündisch)[2] (KAFKA, 2002, p. 176). Por meio dessa parábola, o autor exprime sua incapacidade de reconhecer o mundo dos homens e de suas convenções. Essa história visa a provar, como sustenta Saul Friedländer, os limites do entendimento humano, a incapacidade de perceber certos aspectos da existência: “Essa busca pode não ter sido abandonada, mas ela tornou-se de agora em diante interminável, fonte de mais ceticismo ainda, de desencanto e ironia” (FRIEDLÄNDER, 2014, p. 235).

O cão constata: “Não; o que também objeto à minha época é que as gerações anteriores não foram melhores que as mais novas; num certo sentido foram muito piores e mais fracas. […] mas os cães ainda não eram – não consigo exprimi-lo de outro modo – tão caninos[3] como hoje em dia…” (KAFKA, 2002, p. 176). Atualmente, não obstante as tentativas de redourar o brasão da crença, reinstalar o Nome-do-Pai não é mais possível. Tornou-se difícil situar o Outro na cultura. Como consequência, é a busca de certezas que ameaça o sujeito. A descrença é, então, o destino comum dos sujeitos contemporâneos. Quase ouviríamos Kafka dizer que a ordem simbólica não é mais o que foi

 

 

Tradução: Ana Helena Souza
Revisão: Michelle Sena

 

 

 


Referências
BOUVERESSE, J. Peut-on ne pas croire? Sur la verité, la croyance et la foi. Marseille: Editions Agone, 2007.
FREUD, S. (1896). “Manuscrit K”. In: Naissance de la psychanalyse, Paris: PUF, 1996.
FREUD, S. (1927). “O futuro de uma ilusão”. In: Obras completas de Sigmund Freud. vol XXI, Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FRIEDLÄNDER, S. Kafka, poète de la bonté. Paris: Seuil, 2014.
GAUCHET, M. Le désenchantement du monde. Paris: Gallimard, 1985.
KAFKA, F. Investigações de um cão. In: Narrativas do espólio. (Trad. Modesto Carone). São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
KAFKA, F. Oeuvres completes III, Bibliotèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 1984.
KAFKA, F. Oeuvres completes IV, Bibliotèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 1988.
KAFKA, F. O processo. (Trad. Modesto Carone). São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
LACAN, J, (1955-56) O Seminário, livro III: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988.
LACAN, J, (1964) O Seminário, livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.
Le Robert, dictionnaire de la langue française. Paris: Dictionnaires Le Robert, 1996.
Le Robert, dictionnaire historique de la langue française, sous la direction d’Alain Rey. Paris: Dictionnaires Le Robert, 1988.
MILLER, J.-A. “O real no século XXI: Apresentação do tema do IX Congresso da AMP.”, In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. L. A. Um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
SANTNER, E. On creaturely life, Rilke, Benjamin, Sebald. Chicago: The University Chicago Press, 2006.cado em La Cause Du Désir, nº 90, jun. 2015.
[2] Na edição em português, as palavras usadas são “cão” e “canino”. A tradutora manteve a palavra “cínico” por causa da referência ao filósofo cínico Diógenes. O termo grego kunikós, que originou o termo latino cynicus, significa “o que concerne a cachorro; cínico”. Os filósofos receberam esse nome porque viviam nas ruas “como cães” (N.T.).
[3] Ver nota 2.