Uma leitura do texto freudiano “Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico”[1] 

Cristiana Pittella
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
cristianapittella@yahoo.com.br

Resumo: A partir de uma leitura de orientação lacaniana do texto em que Freud procura transmitir o método psicanalítico, depreende-se a importância da formação do psicanalista para aqueles que querem se lançar na prática da psicanálise.

Palavras-chave: método psicanalítico; formação do psicanalista.

A READING OF FREUD’S TEXT “RECOMMENDATIONS TO THE PHYSICIAN FOR PSYCHOANALYTIC TREATMENT” 

Abstract: Based on a lacanian reading of the text in which Freud seeks to convey the psychoanalytic method, one can infer the importance of psychoanalyst training for those who want to embark on the practice of psychoanalysis. 

Keywords: psychoanalytic method; psychoanalyst training.

Imagem: Renata Laguardia

O poder da palavra

Lacan, em seu Seminário 1, Os escritos técnicos de Freud, ressalta que Freud dedicou-se de 1904 a 1919 a apresentar o seu método psicanalítico e que esses escritos têm um interesse particular para aqueles que querem se lançar na prática da psicanálise. Neles, podemos ler as noções freudianas fundamentais gradualmente e compreender o modo de ação da terapêutica analítica (LACAN, 1953-54/1986). Lacan afirma que Freud jamais cessou de falar da técnica analítica, como no tardio texto Análise terminável e Interminável de 1934, segundo ele, um dos artigos mais importantes quanto à técnica.

Os escritos de Freud reunidos pela Editora Autêntica no volume Fundamentos da Clínica Psicanalítica, que nos orienta nestas Lições Introdutórias, são de um frescor e vivacidade, de uma simplicidade e franqueza do tom que, por si só, são uma espécie de lição.

Lacan retoma esses escritos de Freud para reorientar a psicanálise e colocá-la no eixo. Ele propõe um retorno à Freud, ao campo freudiano, ao que há de subversivo e ético na psicanálise freudiana. A partir do inconsciente, o inconsciente estruturado como uma linguagem, ele procura responder à questão do que fazemos quando fazemos análise.

Assim, passo a passo, ele critica os rumos e desvios que a prática freudiana tomou com os pós-freudianos, como, por exemplo, a Psicologia do Eu e a análise das resistências. Ele vai minuciosamente demonstrar como foi em torno da concepção do ego que girou o desenvolvimento do que se dizia a técnica analítica, cuja análise e intervenções são concebidas a partir da importância da contratransferência. O analista, como se fosse uma placa sensível, intervém a partir dos sentimentos e reações produzidas nele. Nessa inter-reação imaginária entre o analisado e o analista, as interpretações de “ego para ego” (LACAN, 1953-54/1986, p. 44) visam uma ortopedia, um reforço do ego, e o final de análise é concebido pela identificação ao analista.

Lacan vai progressivamente avançando da tópica do imaginário à ordem simbólica para demonstrar que a experiência analítica não se baseia numa relação dual, intersubjetiva. Se a linguagem é tomada como ela deve ser, Lacan formula, a experiência analítica se passa então numa relação a três – a palavra faz mediação entre o sujeito e o eu.

Assim, o analista não fala do lugar de sujeito. Interpretar é técnica de enunciação, orienta J.-A. Miller (1997) no texto “O método psicanalítico”, referência para estas Lições Introdutórias.  As questões técnicas são éticas, pois o analista se dirige ao sujeito.

A interpretação é um significante enigmático que se oferece à interpretação do analisante e possibilita uma mudança na modalidade subjetiva. Ela abre à questão do desejo: o que isso quer dizer? O que ele quer?

Esse não saber, enunciado indizível (recalque), causa do sintoma, é assimilável a um enunciado escrito no sujeito e que não se poderia ler, ele se equivale, nos diz J.-A. Miller (1994/2023) em “Como começam as análises”, a um texto escrito indecifrável.

Numa experiência analítica tratar-se-ia menos de lembrar e reviver do que reescrever a história. O mais importante é a leitura e a escrita, como orienta Lacan (1953-54/1986) em sua leitura de Freud: o que conta é o que o sujeito reconstrói.

Passamos dos fatos aos ditos, ao uso da palavra. E, por mais estreita que seja a porta, ela pode fazer passar um elefante.

Palavras não-toda

O texto freudiano acerca dos fundamentos da clínica psicanalítica, cuja leitura fazemos aqui, é o “Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico”, que data de 1912. É um dos textos mais pragmáticos na obra de Freud.

Sua atualidade reside no chamado que ele faz tanto ao modos operandis da psicanálise, quanto à importância e responsabilidade de se cuidar da formação do psicanalista e de sua transmissão. Desse modo, evidencia-se a diferença da Psicanálise em relação à medicina e às ambições da educação e da psicoterapia.

Freud já havia nessa ocasião publicado Dora, O Homem dos Ratos e O pequeno Hans, casos clássicos de Histeria, Obsessão e Fobia. Embora não houvesse ainda uma sistematização das diretrizes da técnica analítica, é desses casos tomados em sua singularidade – entre outras experiências clínicas – que Freud retira o material para tentar sistematizar a sua experiência clínica nessas recomendações. Ele tenta responder à questão de como nos transformamos em analistas (FREUD, 1912/2017).

Ainda que Freud desejasse formalizar esse material nessas recomendações – nomear algo do real de sua clínica para a transmissão da psicanálise –, ele hesitou muito em publicá-las com receio de que elas pudessem ser tomadas como regras rígidas, como um saber dogmático, que mais faria consistir um ideal e instaurar uma relação que engessa o praticante.

Freud nos alerta sobre o quanto as regras standards, inflexíveis, servem muito mais para defender o praticante do real que a matéria da psicanálise coloca em jogo, a saber, a palavra (o significante) e as pulsões (o gozo), que Lacan nomeou em seu último ensino com o neologismo moterialité (palavra e matéria).

Em uma ocasião, comentamos no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Psicose do IPSM-MG, quando este acontecia no CERSAM Noroeste nos primeiros anos do Instituto, uma vinheta clínica apresentada por uma colega com experiência clínica na saúde mental e formação na psicanálise de orientação lacaniana. Uma paciente psicótica havia recebido alta do tratamento, já que ela fora acolhida na urgência quando em crise e agora encontrava-se estável. Esse sujeito não tinha construído outros laços nem lugar no Outro, apenas com essa técnica e com esse espaço. Não conseguindo separar-se, a paciente solicita continuar o tratamento ali, ao ponto de não sair da frente da instituição. Para além dos significantes mestres (S1) que orientam a instituição – urgência e crise –, a técnica, preocupada com a transferência maciça estabelecida pelo sujeito, e ancorada no saber clínico da importância de se manter um laço frouxo e uma pluralização da transferência numa clínica com vários, decide não acolher o sujeito. A jovem, para encontrar um lugar nesse Outro, faz um acting-out, ao escarificar no braço a palavra “crise”.

Na oportunidade, verificamos o quanto o saber, face ao real em jogo, estava servindo de resistência ao desejo do analista e às invenções que ele nos convoca na clínica, impedindo-a de acolher o sujeito. É nesse sentido que Lacan afirma que a resistência é do analista.

Por conseguinte, no texto que lemos, Freud pretende transmitir recomendações não-toda, lógica que dá lugar às invenções e à singularidade do modo de satisfação (gozo) daquele que nos procura em sofrimento, num encontro que acontece a cada vez, em cada sessão e sempre único.

Mesmo que o saber clínico nos oriente e nos permita fazer uma avaliação clínica, as mutações do Outro e as respostas do real nos colocam em conversação permanente. No Campo Freudiano temos a prática das Conversações Clínicas, nas quais as questões e impasses são colhidos, debatidos, e algo do real em jogo pode vir a ser nomeado. Essa série de invenções em torno dos casos clínicos apresentados e publicados orientam e auxiliam na avaliação clínica, na estratégia e na condução de uma análise nos tempos atuais – temos a noção de pluralização da transferência (o trabalho com vários), os novos sintomas, a psicose ordinária.

A quem se destina

A Psicanálise é oriunda do campo da medicina e em seus primórdios apenas os médicos a exerciam. Freud endereça suas recomendações ao médico, no singular. E, quinze anos após, mais precisamente em 1927, Freud escreve “A questão da análise leiga. Conversa com uma pessoa imparcial”.

Na ocasião, seu aluno não médico Dr. Theodor Reik era acusado de charlatanismo e, nesse texto, Freud transmite não só o método psicanalítico – o que a psicanálise faz, suas indicações e contraindicações, a importância do período de preparação para uma análise (as entrevistas preliminares), quando e como uma análise opera, como uma análise se difere da confissão na religião –, mas, sobretudo, ele a distingue da medicina, para afirmar que não há nenhuma razão para que o exercício da psicanálise fique restrito aos médicos. Para tanto, Freud vai diferenciar o organismo do aparelho psíquico, o cérebro, com seus estímulos sensoriais, do significado e interpretação dos sonhos para o sujeito, o tratamento do sintoma na medicina e o sentido do sintoma para a psicanálise – cuja causa é um enunciado que subsiste no sujeito sem que possa ser por ele formulado (MILLER, 1994/2023) –, para afirmar que “a análise não dispõe de nenhum outro material além dos processos anímicos” (FREUD, 1927/2017, p. 276).

Esses processos anímicos é o que Freud nomeará de inconsciente, texto indecifrável, escrito que marca e ressoa no corpo (o sintoma como acontecimento de corpo) e que o analisando aprende com o analista a ler. E essa leitura implica a decifração (Sujeito Suposto ao Saber), mas, também, nos dizeres de Miller (1994/2023), o analista, ao guiar o paciente, esse intérprete, não é indiferente ao sujeito, o analista é um objeto de uma vinculação especial para ele, que atrai libido, aquela em jogo para o sujeito e seu Outro primordial.

Freud ressalta, assim, em suas recomendações, que, para um praticante de psicanálise, o mais importante não é, portanto, a formação acadêmica, se ele é médico ou não, mas, sim, uma formação permanente em psicanálise, que implica fundamentalmente a própria análise do praticante.

É uma experiência analítica que permitirá ao analista praticante que a leitura do sintoma de um falasser não fique contaminada pelas lentes dos seus preconceitos e preceitos, nem pelo texto, nem pela letra de gozo de seu próprio inconsciente, ou seja, pelo modo como ele enquadra e enlaça a sua realidade.

Freud destaca também mais dois pilares na formação do analista: o estudo teórico e a supervisão dos casos clínicos. Ele criará a Associação Psicanalítica Internacional em 1910, pois já se preocupava à época com a sua existência sempre ameaçada e com a sua popularização. Ele alerta para a importância de uma transmissão da psicanálise que a distinga de outras práticas, como a psicoterapia e a sugestão.

E que o laço de trabalho numa instituição permita que o analista praticante esteja constantemente em conversação com os colegas nos dispositivos institucionais, nos espaços de supervisão e formalização de sua clínica para que, agora com Lacan (1953/1998), o analista esteja à altura das questões em sua prática e alcance em seu horizonte a subjetividade da época.  Para tanto, esses lugares zelam pela ética e pela formação do psicanalista.

O que é um psicanalista?

As recomendações freudianas nos transmitem que essa é a questão central para a psicanálise e para a formação de um psicanalista: o que é um psicanalista?

No título da tradução que lemos aqui das Obras Incompletas de Sigmund Freud, a singularidade referente ao praticante, ao médico (“Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico”), encontra nela a sua razão (diferentemente da tradução da Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud: “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”).

Lacan (1956/1998) afirma que a psicanálise é o tratamento que que se espera de um psicanalista e define um psicanalista como o que resulta de uma análise. Cada um pode dar a sua resposta singular, se desejar, no dispositivo do passe inventado por Lacan, já que não há um universal: O Analista não existe.

Evoco um fragmento do passe de Sérgio de Mattos (membro Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise) que foi recentemente nomeado Analista da Escola (AE), tendo testemunhado como se tornou um psicanalista de sua própria experiência analítica.

Ao apresentar o tema para o próximo XI Enapol, Começar a se analisar, com o seu texto “A boa sorte de analisar-se”, e também em seu 1º testemunho intitulado “Nada melhor do que o vazio”, Sérgio de Mattos (2023) conta que, ao chegar em sua análise – já tendo tido outras experiências analíticas –, o analista pergunta-lhe o que ele pôde saber de seu inconsciente. Ele responde ao analista que havia conseguido saber qual era o desejo da mãe. O analista intervém dizendo-lhe, então, que a psicanálise não podia fazer nada por ele. Corta a sessão e marca outra para ele voltar. Esse ato do analista, ético, introduz o mal-entendido e faz uma cisão entre o dito e o dizer. O sujeito é levado a um questionamento de seu desejo e do que diz quando fala. Esse primeiro encontro com o analista “faz voar em pedaços”, segundo ele, o saber constituído, a resposta que ele havia elaborado ao que o Outro quer dele (MATTOS, 2023).

O analista, ao separar o enunciado e a enunciação, questiona a posição do sujeito, e essa localização subjetiva introduz o inconsciente (MILLER, 1997), um “não saber o que se diz”. Ele é levado a se questionar e a se situar concernente ao que ele fazia e desejava tão longe de sua casa (MATTOS, 2022).

O analista, ao colocar entre parênteses o que o sujeito diz, faz com que ele perceba que pode tomar diferentes posições modalizadas para com o seu dito (MILLER, 1997, p. 247). Localizar o sujeito, é demarcar onde se inscreve as variações da posição subjetiva.

Entreabre-se a porta e a pergunta sobre o desejo do Outro.

Sérgio sai da 1ª sessão e tem um sonho com a morte de sua mãe, que é velada na garagem da casa da família. Recorda-se de uma cena traumática vivida aos 5 anos. Após uma briga dos pais, a mãe se tranca no quarto dizendo que se mataria. Frente à porta trancada, o filho grita e bate desesperado. Nenhuma resposta. O pai, perturbado, tenta arrombá-la. A criança, de joelhos, suplica para que o pai faça alguma coisa. Em seguida, um buraco negro, desfalecimento. Vai recuperar o sentido e a memória quando o médico sai do quarto e diz que a mãe estava dormindo.

Nessa cena, ele pôde ler sua identificação com o objeto de gozo do Outro. Chave de sua neurose infantil, experimentada com angústias intensas, terrores noturnos, nervosismo, doenças e dificuldade de encontrar seu lugar. Repertório que se repetiu sintomaticamente na sua vida nas ocasiões de separação e conflitos, nomeado pelo analista de patologia do fort-da.

Ele nos ensina, como nos diz J.-A.-Miller (1994/2023), que o candidato à psicanálise deve ser capaz de fornecer o texto a ler, a interpretar, e, mesmo, de o ler de diversas maneiras. É o que Freud chama de regra fundamental, a associação livre, que são as cadeias de significantes que o sujeito não controla, significantes sem mestre. A associação livre vai levar o sujeito a se dissociar da causa inventada que justifica a sua existência e que lhe tampa o vazio em que consiste (MATTOS, 2022).

Abre-se ao trabalho, à transferência, tanto na vertente do saber (Sujeito-Suposto-Saber) e do gozo (libidinal).

Ao final de sua análise, ao escutar uma intervenção do analista – “me chama” –, se escreve para ele uma nova relação com o Outro, que implica em não ter que responder fantasmaticamente, salvar a mulher, colocando em jogo um programa de gozo, de destruição, de desaparecimento e dano ao outro.

Parece-nos que o “me chama”, vociferado pelo analista ao final de sua análise, se articula com a abertura do enigma do desejo materno colocado à entrada de sua análise. Onde havia uma porta que não se abria, a análise faz passar por ela, entreabre-se ao desejo do analista que o possibilita a engajar-se na via do desejo, quando o gozo transborda no cotidiano da vida.

Lugares e laços

É só a partir de uma experiência analítica, da análise de seus próprios sonhos, nos diz Freud, que o praticante alcança e se orienta por um saber não-saber (douta ignorância), função do desejo do analista. Assim a análise se molda, sublinha Freud (1927/2017), a partir de sua matéria, daquilo que o paciente traz.

Recentemente, num dos espaços do IPSM-MG, o Atelier de Pesquisa em Psicanálise e Segregação, uma ótima conversa e discussão coloca em jogo esse tema. Um caso de uma criança, apresentado pela psicanalista Inês Seabra, membro da EBP/AMP – que também foi trabalhado anteriormente em outro espaço do IPSM-MG, o Núcleo de Pesquisa e Psicanálise com Crianças –, nos presentifica com sua transmissão a função do desejo do analista, que acompanha as respostas do sujeito e a temporalidade do trabalho de elaboração analítico dessa criança.

O analista não se precipita nem insere significantes, que fazem parte do Outro simbólico ao qual a menina pertence – ser preta, menina, racismo, exclusão. O analista também não insere na análise da criança a interpretação materna de racismo, em relação a uma experiência que a menina viveu na escola.  O analista acolhe o tempo do sujeito e a questão que o analisando trazia – “de onde vêm os bebês?” –, colocada pelo real do nascimento de um irmão.

As recomendações de Freud acentuam a importância de que muitas coisas que ouvimos, sua importância só se revelará a posteriori (nachtraglich). Que os analistas sejam pacientes. E, se ele não recomenda fazermos anotações para suprir a falta de evidências e comprovações para fins científicos, é porque passamos dos fatos para o dizer, das evidências para a construção.

Fundamento da regra  

A técnica simples que Freud destaca para o psicanalista nessas recomendações é a que chamamos durante anos de “atenção flutuante” e, na tradução que lemos, optou-se pelo neologismo “atenção equiflutuante”, justificado pelo termo em alemão utilizado por Freud, que contém a atenção continuada, flutuante e equitativa.

Em uma nota, os editores das Obras Incompletas de Sigmund Freud referem-se à tradução proposta por Paul-Laurent Assoun (2009) – “equiflutuante” –, pois o seu sentido abarca um para além da mera flutuação e designa as pequenas batidas de asas suficientes para que um pássaro possa planar.

Esse batimento de asas evoca a linguagem com o seu batimento, aquele da articulação dos significantes, assim como as ressonâncias e ocorrências da língua que produzem algo novo, que tanto surpreende o analista e o analisando na leitura e na escrita do inconsciente.

Esse modo de atenção, a sua importância, enfatiza a não seleção prévia, que o psicanalista não se fie em seus valores ou teorias pré-concebidas. No dizer de Freud (1912/2017, p. 94): “se seguimos as nossas inclinações e expectativas, corremos o risco de nunca encontrarmos algo diferente do que sabemos”. O sujeito é suposto ao saber inconsciente que se desprende das cadeias, das associações do analisando, e é a partir do que lhe é dito que o analista interpreta.

A contrapartida para a “atenção equiflutuante” é exigirmos, nos dizeres de Freud, que o analisando conte tudo o que lhe ocorre, sem crítica ou seleção. Trata-se da regra psicanalítica fundamental da psicanálise, que já comentamos aqui, a “associação livre”.

O lugar do analista

Para finalizarmos, voltamos ao início de nossa leitura.

Freud (1912/2017, p. 102) adverte para que o psicanalista não ambicione a cura e o bem para seu analisando, assim como não tenha compaixão e empatia: “o médico precisa ser opaco para o analisando”, ele recomenda.

É o lugar e a função do analista que ele procura nesse texto formalizar, retirando-o do eixo imaginário, especular, e do campo da sugestão. Assim, trata-se de desvalorizar a transferência sentimental e empalidecer a transferência imaginária, nos diz Miller (1994/2023), pois elas não favorecem o desenvolvimento da cadeia significante nem possibilitam ao sujeito responsabilizar-se pelo próprio gozo.

O valor disso que ele destaca é o que chamamos de segunda regra da análise, a regra da abstinência, que completaria a primeira regra, a da associação livre. O que está em jogo é não se satisfazer com uma satisfação de ordem sexual com o analista.

O lugar do analista no discurso do analista enquanto objeto a, invólucro do nada da significação inconsciente. Lacan (1973/2003, p. 518) situará o analista em “Televisão” pelo que antigamente se chamava “ser santo”. O santo não faz caridade; antes, presta-se a bancar o dejeto: ele faz descaridade, o que permite ao sujeito tomá-lo como objeto causa de seu desejo.


 

Referências
ASSOUN, P.-L. Dictionnaire des oeuvres psychanalytiques. Paris: PUF, 2009.
FREUD, S. Recomendações ao médico para o tratamento psicanalíticoIn: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da clínica psicanalítica. Vol. 6. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 93-104. (Trabalho original publicado em 1912).
FREUD, S. A questão da análise leiga. Conversas com uma pessoa imparcialIn: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da clínica psicanalítica. Vol. 6. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 93-104. (Trabalho original publicado em 1927).
LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original publicado em 1953).
LACAN, J. O Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986. (Texto original proferido em 1953-54).
LACAN, J. Situação da psicanálise em 1956. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Texto original proferido em 1956).
LACAN, J. Televisão. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1973).
LACAN, J. (1956). Situação da psicanálise em 1956. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
LACAN, J. (1973). Televisão. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. 
MATTOS, S. de. Rien comme un vide. Revue La Cause du Désir, n. 111, jun, 2022.
MATTOS, S. de. A boa sorte de analisar-se. In: XI ENAPOL: Textos de Orientação. 2023. Disponível em: <http://enapol.com/xi/wp-content/uploads/2023/04/ENAPOL-Sergio-de-Mattos-PT-2.pdf>. Acesso em: 25 mai. 2023.
MILLER, J.-A. O método psicanalítico. In: Lacan Elucidado: palestras no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
MILLER, J.-A. Como começam as análises. In: XI ENAPOL: Textos de Orientação. 2023. Disponível em: http://enapol.com/xi/wp-content/uploads/ 2023/04/ENAPOL-Jacques-Alain-Miller-PT.pdf. Acesso em: 25 mai. 2023. Trabalho original publicado em 1994).

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[1] Texto apresentado nas 59ª. Lições introdutórias à Psicanálise em 28 de março de 2023.