UMA LEITURA SOBRE O SINTOMA COMO ACONTECIMENTO DE CORPO[1]
ESTEBAN KLAINER
Psicanalista, membro da EOL/AMP
eaklainer@gmail.com
Resumo: O autor busca, no último ensino de Lacan, esclarecimentos sobre o que faria a diferença entre os chamados fenômenos de corpo e os acontecimentos de corpo. Baseando-se principalmente na conferência de Lacan em Roma, em 1974, “A terceira”, ele explora as noções de gozo fálico como um gozo fora do corpo, no enlaçamento simbólico-real, tendo como marca os objetos a, e um gozo no corpo, resultado do enlaçamento imaginário-real, gozo que situa o ser falante em relação a seu encontro com lalíngua.
Palavras chaves: fenômeno de corpo; acontecimento de corpo; sintoma; gozo fora do corpo; gozo no corpo.
A reading on the symptom as a body event
Abstract: The author pursues clarification in Lacan’s last teaching about what would be the difference between the so-called body phenomena and body events. Based mainly on Lacan’s 1974 Rome lecture, The Third, he explores the notions of phallic jouissance as jouissance outside the body, in the symbolic-real linkage, marked by the objects a. And jouissance on the body, as a result of the imaginary-real intertwining, a jouissance that situates the speaking being in relation to the encounter with lalangue.
Keywords: body phenomena; body event; symptom; jouissance outside the body; jouissance on the body.
O convite da COL (Colección de la Orientación Lacaniana) para escrever um texto sobre o sintoma como acontecimento de corpo implica o desafio de explorar uma noção do último ensino de Lacan. Do que se trata a seguir é fornecer uma leitura a respeito das últimas ideias de Lacan sobre o sintoma e do horizonte que aí se abre para a prática analítica.
Como apontado há alguns anos por Jacques-Alain Miller, se seguimos Lacan em seu último ensino, não é apenas por um gosto pelo deciframento, mas porque ali se encontram alguns destaques que podem orientar a clínica e permitem repensar a eficácia da nossa prática (MILLER, 2016).
Creio que o uso que fazemos da noção de “acontecimento de corpo” se presta a múltiplas leituras e equívocos que poderiam se resumir no seguinte problema: o sintoma como acontecimento de corpo remete ao acontecimento traumático, que desenlaça ou, pelo contrário, a um acontecimento que enlaça e que consegue fazer sentir que se tem o corpo.
Tentarei dar algumas respostas ao problema colocado, primeiros passos de uma elaboração em curso.
Fenômenos de corpo e acontecimento
De onde partir? Talvez começar por localizar que, no corpo, se sucedem permanentemente muitas coisas que o afetam: incômodo, angústia, medo, prazer, pranto, felicidade, etc., etc. Inclusive nos sonhos os afetos corporais estão em jogo. Já em Freud podemos ler que
“as manifestações afetivas no sonho não permitem o tratamento depreciativo com o qual, ao despertar, costumamos nos livrar do conteúdo do sonho: ‘Quando tenho medo de ladrões no sonho, os ladrões são imaginários, mas o medo é real’, e o mesmo acontece quando me alegro no sonho” (FREUD, 1900/2019, p. 506).
Pois bem, podemos pensar todos esses fenômenos de corpo como “‘acontecimentos de corpo”, no sentido que Lacan dá a essa expressão?
O termo acontecimento, desde sua etimologia, seus usos na linguagem ou seus usos históricos, faz referência a um fato particularmente importante. Sua etimologia se deriva do substantivo latino adventos, que significa “chegada” ou “vinda”, e teve um uso em latim eclesiástico para designar a chegada de Jesus Cristo (BLOCH, 2002). Também se aproxima do termo “contingência” na medida em que se trata de um fato que pode ou não acontecer.
Nessa perspectiva, e supondo em Lacan um uso preciso das palavras, podemos deduzir que nem todo fenômeno corporal toma o valor de um acontecimento. Cabe, então, perguntar o que dá valor de acontecimento a um fenômeno corporal.
Para avançar, parece-me necessário localizar alguns passos no último ensino de Lacan.
Um primeiro passo, que me parece importante assinalar, encontramos no texto “A terceira” (LACAN, 1974/2011). Pode-se considerá-lo um texto fundamental do último ensino e, nesse sentido, uma dobradiça no que diz respeito às elaborações de Lacan sobre a noção de sintoma.
Com a nova escrita do nó borromeano como o real da estrutura, Lacan pôde diferenciar radicalmente, no campo do gozo, duas modalidades absolutamente distintas. É assim que distingue um tipo de gozo que se localiza na interseção do simbólico e do real, o qual se caracteriza por ser um gozo fora do corpo, e outro tipo de gozo que se localiza entre o imaginário e o real, cuja característica é ser um gozo no corpo.
A escrita do nó borromeano permite não só a distinção entre esses dois gozos, como também mostra o que fica excluído para cada um deles. É assim que o gozo que se articula entre simbólico e real está fora do imaginário, e o que resulta da articulação entre imaginário e real está fora do simbólico.
Lacan nomeia gozo fálico o gozo localizado na interseção simbólico-real. Parece-me importante assinalar, nesse ponto, como entendo a expressão gozo fálico nessa altura do ensino de Lacan. Não creio que se refira ao gozo articulado ao significante fálico, isto é, à operação de castração simbólica ligada ao Nome-do-Pai, mas àquele que responde pelos efeitos da entrada de lalíngua no corpo vivo.
Pois bem, como entender que se trata de um gozo fora-do-corpo? Trata-se de um gozo que produz o simbólico, a entrada de lalíngua no corpo, e que é justamente esse efeito o que constitui os objetos a que se localizam nas bordas do corpo. J.-A. Miller, em seu curso Sutilezas analíticas, se refere ao gozo fora do corpo nestes termos:
[…] o significante afeta o corpo do falasser porque fragmenta o gozo do corpo, e esses pedaços são os objetos a. Então, se nos detemos nessa fórmula, supomos que há um primeiro estatuto do gozo, que eu chamava gozo da vida, e que, pelo fato de que esse corpo na espécie humana é falante, seu gozo se vê modificado na forma de fragmentação e de condensações no que são as zonas erógenas, segundo Freud, cada uma relativa a um tipo de objeto (MILLER, 2011, p. 278, tradução nossa).
É um gozo que se experimenta nas zonas erógenas e, portanto, nunca consegue se espalhar para o resto do corpo. Marca, assim, um regime de vazio e excesso, de um mais e um menos ilimitado, que, em seu funcionamento próprio, diz Lacan, reinventa a tela “porque não vem de dentro da cena” (LACAN, 1974/2011, p. 22). Se o seguimos em “A terceira”, quando assinala que
“o corpo se introduz na economia do gozo. Foi daí que parti. Se na relação do homem — do que chamamos por esse nome — com seu corpo, se há algo que destaca bem que ele é imaginário, é o alcance que a imagem aí adquire” (LACAN, 1974/2011, p. 22),
se se entende que o gozo fálico esteja fora do corpo porque, precisamente, é um gozo que está fora do imaginário, é contraditório com a sustentação da imagem corporal.
A novidade que aparece no último ensino de Lacan, mais além do que, a partir daí, numerosos antecedentes podem ser encontrados e relidos, é que o campo do gozo não se reduz ao gozo fálico-pulsional. A dimensão imaginária também tem seu real, um real diferente daquele que articula o simbólico. Trata-se de um gozo que, por definição, está fora da linguagem e que se experimenta, se sente, no corpo. É justamente esse enodamento, o de um gozo com o imaginário, o que dá consistência à imagem corporal, uma vez que lhe fornece uma sustentação real. É por esse gozo no corpo que o falasser sente que “tem um corpo”. Esse enodamento, que dá um peso real à imagem corporal, caso se produza, é logicamente anterior à montagem do Outro e ao recurso ao Ideal, que, a partir do “esquema óptico” do primeiro ensino de Lacan, era a maneira que tínhamos para entender como se sustentava o imaginário corporal.
Pensar que é o que mantém o imaginário enodado, creio ser uma boa via em direção às últimas elaborações de Lacan sobre o sintoma.
Reformulação da noção de sintoma
Um segundo passo, que me orienta nessa trajetória, consiste em assinalar duas novidades sobre o sintoma que encontramos também em “A terceira” (LACAN, 1974/2011).
Em primeiro lugar, Lacan assinala que chama “de sintoma ao que vem do real” (LACAN, 1974/2011, p. 17). Essa simples formulação é toda uma novidade da qual talvez ainda não tenhamos pesado todas as suas consequências. Dizer que o sintoma vem do real implica tomar muita distância de Freud e do próprio Lacan, no retorno a Freud. Em Freud, o sintoma era algo vinculado à ação repressora do pai, ou seja, a um produto do simbólico. A exigência pulsional se encontrava com o “não” da função paterna, que promovia o recalque, e o sintoma era o resultado de uma transação entre a exigência pulsional e a instância repressora, uma formação de compromisso. Redefinir o sintoma como proveniente do real o separa de toda referência ao Nome-do-Pai para deixá-lo no plano da contingência.
A segunda novidade que encontramos nesse mesmo escrito é que o sintoma, que vem do real, “não se reduz ao gozo fálico” (LACAN, 1974/2011, p. 25). Isso significa, nem mais nem menos, que o sintoma não apenas articula o gozo simbólico-real, fora do corpo, mas também esse outro gozo, imaginário-real, gozo no corpo.
Localizadas essas duas novidades na reformulação de Lacan sobre o sintoma, creio que posso entrar, sem me perder muito, na definição do sintoma como “acontecimento de corpo”.
Sintoma como acontecimento de corpo: a pista de Joyce
Como expressão de Lacan, encontramos, em seu escrito “Joyce, o Sintoma”, “Deixemos o sintoma no que ele é: um evento corporal […]” (1975/2003, p. 565).
Nesse ponto, e retomando a questão levantada no início do texto, em Joyce localizamos o acontecimento de corpo na cena de confronto com seus colegas de colégio, em que ele perde seu imaginário corporal, que cai como uma casca, ou, pelo contrário, na cena na qual conquista a certeza de ser “o artista”, na qual sente a entrada de um gozo que lhe permite recuperá-lo.
Se seguimos Lacan nesse mesmo escrito, ele afirma que o sintoma é um acontecimento ligado ao corpo que se tem; quer dizer, ligado a uma experiência de gozo a partir da qual sente-se que se tem o corpo. É interessante que ele se refira através de um jogo de palavras, do qual ele diz que, às vezes, se canta “[…] l’on I’a, I’on I’a de l’air, l’on l’aire, de l’on l’a”[2] (LACAN, 1975/2003, p. 565), com o qual ele parece aludir a essa experiência de gozo. Nesse sentido, parece que é justamente em Joyce que Lacan pode localizar a função do sintoma como acontecimento de corpo, como o recurso que lhe permite enodar seu imaginário corporal.
Em sua apresentação no Seminário 23 (LACAN, 1975-76/2007, p. 179), Jacques Aubert, guiado por Lacan, localiza, em uma passagem de Ulisses, aquilo que pode ser lido como o momento em que advém, para Joyce, o acontecimento que assume valor sintomático. O personagem de Stephen escuta, no jornal onde trabalha, o relato que seu sócio, J. J. O’Molloy, faz da alegação de um advogado em um caso de fratricídio, em que se cita Moisés de Michelangelo, no Vaticano:
Ele disse sobre isso: aquela efígie de pedra numa música congelada, cornífera e terrível, da forma humana divina, aquele eterno símbolo de sabedoria e de profecia que, se alguma coisa daquilo que a imaginação ou a mão de um escultor talhou no mármore da almatransfigurada e da almatransfigurante merece viver, merece viver” (LACAN, 1975-76/2007, p. 179).
No justo momento em que O’Molloy pronuncia as palavras “deserves to live” (merece viver), ele as dirige a Stephen, que sente uma emoção que se manifesta como um “rubor”. Efeito de comoção corporal ligado a ser “o artista”, que Aubert se ocupa em rastrear em outras obras de Joyce e que enodam para ele a questão “da validade e também a da certeza” (LACAN, 1975-76/2007, p. 180).
Poderíamos ler ali o acontecimento de corpo que, para Joyce, implicou a certeza que lhe deu um corpo e lhe permitiu sustentá-lo frente aos efeitos intrusivos que sofria de lalíngua.
Então, nessa perspectiva, seria precisamente Joyce — a quem Lacan não acidentalmente chama de “Joyce, o Sintoma” — quem mostraria que o sintoma como acontecimento de corpo tem uma função de enodamento que permite sustentar o corpo frente aos ataques mortificantes de lalíngua, como permite enodar um gozo no corpo e, assim, fazer sentir que, a esse corpo, se o tem.
Assim, a partir da leitura que proponho, um acontecimento assumiria um valor sintomático, caso se verifique o enodamento de um gozo no corpo, quer dizer, um Outro gozo diferente do gozo fálico.