Função Tóxica Na Clínica Da Psicose: Remédio E/Ou Ruína?

FABIÁN NAPARSTEK

Sérgio de Mattos: Estamos aqui, hoje, no Freud Cidadão, instituição de saúde mental de Belo Horizonte, dando continuidade às atividades do Ateliê de Pesquisa Psicanalítica desenvolvidas neste semestre. O Ateliê vem pesquisando o tema psicose e toxicomanias, e, hoje, contaremos com a presença de Fabián Naparstek, que vem trabalhando muito cuidadosamente essa questão nos últimos anos. Passo a palavra a Fabián, e, a seguir, abriremos espaço para perguntas.

Fabián Naparstek: Vocês estão fazendo uma investigação em torno das toxicomanias e das psicoses. Vou falar a respeito de alguns pontos que venho trabalhando, especialmente sobre as elaborações que fiz em meu livro. O primeiro ponto, importante para as discussões atuais no campo freudiano, é que a tese da ruptura com o falo não serve para pensarmos as psicoses, pois, nesse caso, a ruptura é anterior e estrutural. A esse respeito, podemos nos remeter aos casos inclassificáveis e à noção de psicose ordinária, pois ela nos traz novas perspectivas para a clínica e abre caminhos para pensarmos as psicoses, não como uma ruptura, mas como modos de enlaces e desenlaces com o Outro. Essa maneira de pensar é um bom modo de entendermos as toxicomanias: como enlaces e desenlaces com o Outro, mesmo que, em alguns casos, a partir mesmo da droga. Em alguns casos, a própria droga pode ser uma maneira de enlaçar-se ao Outro. A partir da teoria dos “inclassificáveis”, nós devemos repensar as psicoses e as toxicomanias, principalmente a partir do último Lacan.

Outro ponto que trabalhei em minha tese de doutorado, em Paris, é a diferença entre a paranoia e a esquizofrenia. Pude perceber, através dessa investigação, duas maneiras diferentes, dentro das psicoses, de uso da droga. A partir da ideia de Miller, que ele próprio retira de Lacan, sabemos que o paranoico localiza o gozo no Outro, que o gozo vem do Outro. No caso da esquizofrenia, o gozo localiza-se ou retorna no corpo. Isso permite diferenciar duas maneiras de retorno do gozo e, portanto, duas maneiras de responder a esse retorno. Se o retorno do gozo vem do Outro, encontramos, em alguns pacientes paranoicos, o uso da droga como uma resposta que está atrelada ao significante. Por outro lado, muitas vezes, a droga é usada como uma maneira de pacificar, de acalmar o corpo, como um remédio corporal. Éric Laurent também faz referência a esses casos e não só se refere ao uso da droga, mas às toxicomanias de um modo geral.

Acompanhei um caso de um menino que vem ao hospital apresentando um quadro de mania que persistia há 10 dias. Ele não parava de caminhar pela rua, sem comer, sem tomar banho, e foi encaminhado ao serviço de toxicomania, porque dizia ser um toxicômano, mas, quando o psicólogo pergunta o que ele consumia, ele responde que não consumia nada: “Não uso nada”. O menino não consumia nenhuma substância. Então, ele explica que andava pela rua sem parar, não sabia há quanto tempo. Ele avistou um cartaz que dizia “toxicomania”, e, para ele, foi o mesmo que concluir “eu sou toxicômano“. Nesse momento, ele se identificou com o significante toxicomania, e isso serviu para que o menino saísse do quadro de mania. Recomendei, em supervisão, que o psicólogo o aceitasse como um toxicômano, pois ele havia tomado um significante da época atual que poderia frear a mania. Anos depois, disseram-me que ele se havia transformado em um ex-toxicômano e que ajudava os novos toxicômanos, apesar de nunca ter consumido nada.

Essa foi uma maneira que ele encontrou de “frear o Outro” ao se identificar ao significante toxicomania. Em Buenos Aires, durante uma época, havia uma discussão em que se pensava que deveríamos “desindentificar” o toxicômano de “ser um toxicômano”. Essa é uma discussão que merece prudência, pois, em muitos casos, uma identificação ao “ser toxicômano” pode ser uma resposta subjetiva que o sujeito encontra para responder a uma invasão de gozo que vem do campo do Outro.

Em outros casos, pode ser diferente. Um esquizofrênico pode consumir a droga para diminuir os pensamentos. Já relatei, em outro momento, o caso de um menino que usava cocaína para que o seu órgão sexual não se excitasse. Ele tentava driblar esse efeito de excitação de seu corpo e usava a droga para isso e somente isso, sem ligação significante. Isso abre um campo de investigação importante para entendermos os diferentes usos que o psicótico, principalmente o esquizofrênico e o paranoico, pode fazer da droga, diferentes modos de resposta à invasão de gozo.

Outro ponto importante para investigarmos é o diálogo que temos empreendido atualmente com a psiquiatria. Comumente se diz que a toxicomania esconde, “tampa”, a estrutura subjetiva. É muito comum que, em muitas clínicas, psicanalistas e psiquiatras falem de “limpar” a toxicomania, através da abstinência, para encontrar a estrutura subjetiva, com a ideia de que, se cessar a droga, vai aparecer a estrutura.Tenho uma posição muito diferente. No grupo TYA, do qual faço parte, e em minha tese de doutorado, não trabalhamos a partir dessa perspectiva. Penso que é preciso fazer um diagnóstico da função que a droga tem para cada sujeito, que é o que possibilita localizar um diagnóstico estrutural. Isso certamente não é fácil, nem rápido, mas a função que a droga tem para um sujeito permite localizar a estrutura e o diagnóstico de estrutura também. Ainda mais, penso que, para cessar a droga e levar o sujeito à abstinência, é preciso muito cuidado e prudência, pois, se fazemos cessar a droga, podemos nos deparar com o desencadeamento de uma psicose. Quando um sujeito busca a droga, ele procura uma solução. Uma solução que pode ser equivocada, mas é a que ele encontra. O que o analista precisa entender é que é preciso prudência para diagnosticar a função da droga para aquele sujeito e pensar o que seria melhor para ele. Se vamos fazer cessar essa solução, é preciso encontrar outra que possa tomar o lugar da droga, e que o sujeito mesmo vai ter que inventar.

A minha tese central é a de que a droga tem uma função singular para cada sujeito. É uma tese a partir do último Lacan, que considera esses usos particulares de cada sujeito como um uso sintomático da droga. Pensando, portanto, o conceito de sintoma a partir do último ensino de Lacan é que o primeiro diagnóstico que temos que fazer quando escutamos um sujeito toxicômano é precisamente a partir da determinação da função da droga para esse sujeito.

É um trabalho a mais, principalmente, nos hospitais e nas clínicas, porque isso nos permite pensar que não há nada mais diferente de um toxicômano do que outro toxicômano, o que vai contra toda uma cultura da saúde mental que considera que um toxicômano é igual a outro. Muitas clínicas e hospitais estão ancorados na ideia do consumo. É muito comum encontrar, em algumas comunidades terapêuticas, a separação do toxicômano que consome cocaína daquele que consome maconha ou álcool. O consumo de heroína não é habitual no Brasil e na Argentina, mas, na Europa, são separados, também, aqueles que consomem heroína. Nós pensamos que uma pessoa que consome cocaína pode consumi-la de uma maneira totalmente diferente de outra pessoa que consome a mesma droga.

Uma clínica tem que trabalhar a partir da diferença de cada sujeito. É muito comum, nas comunidades terapêuticas, que todos os pacientes sejam convocados a fazer as atividades propostas: eles tem que fazer esporte, literatura, grupo de leitura, de reflexão, etc. Em uma ocasião, perguntei à coordenadora de um grupo por que motivo ela esperava que o paciente viesse até o seu grupo, o que ela queria alcançar com esse paciente singular. Ela se queixava de que havia um paciente que ia ao grupo de reflexão e não queria refletir. Então, se não queria refletir, era preciso dizer ao paciente que ele teria que ir embora. Eu disse que, para esse paciente, podia ser muito bom se ele ficasse no grupo escutando a reflexão dos outros, e que não havia nenhuma contraindicação para deixá-lo participar.

E o último ponto é uma discussão que diz respeito à época atual. Em minha tese de doutorado, afirmei que há uma relação muito estreita entre a época atual e as psicoses, mas não podemos dizer simplesmente que a época atual está maluca. Não se trata disso. O que quero dizer é que há uma relação estrutural entre a época atual e as psicoses e, ao mesmo tempo, há um empuxo ao consumo como um único modo de se fazer frente ao mal-estar da cultura, ao mal-estar da civilização. Seria interessante fazer uma investigação dessa relação entre a época atual e a toxicomania, principalmente quando pensamos na ideia já difundida por Ernesto Sinatra de que somos todos toxicômanos, somos todos consumidores. Assim, teremos que fazer uma diferenciação entre a época dos consumidores e o que pensamos que é a toxicomania enquanto tal.

Adriana de Vitta: Temos nos ocupado do seu texto e das suas elaborações, no Freud Cidadão, para pensarmos a direção do tratamento dos pacientes que frequentam a instituição. Temos nos apoiado no diagnóstico da função da droga para cada sujeito, como premissa básica no tratamento, o que também permite localizar o diagnóstico estrutural, como você nos esclarece. Temos trabalhado com sujeitos esquizofrênicos, que fazem uso excessivo de alguma substância, e nos chama a atenção a precariedade das soluções que encontram. Como um paciente cujas soluções são tão fugazes que já chegamos a denominá-las de “castelos de areia”. Isso causa muita angústia na equipe, que, com seus ideais de resposta ao tratamento, acaba por se cansar e, muitas vezes, até contribui para esse desenlace. O que temos pensado, basicamente, é que a relação da droga com o sexual deve ser algo priorizado em nossa escuta. O sexual, interrogando o corpo, provocando esse corpo, leva esse sujeito ao consumo. Como dar lugar para que esse sujeito fale desse incômodo, tirando o olho da regulação e focando naquilo que é tóxico para ele próprio? Sérgio de Mattos nos trouxe uma questão importante, que é a possibilidade de concentrarmos nossas intervenções a partir da escuta do delírio e daquilo que o sujeito traz como solução para a vida, o que fica um pouco de lado quando a equipe entra com seus ideais normalizadores. Queria saber sua opinião sobre isso.

Fabián Naparstek: Efetivamente, na esquizofrenia, a solução é sempre muito fugaz e, comumente, dura muito pouco tempo. É uma coisa muito difícil de encontrar, na esquizofrenia, uma solução que servirá para toda a vida. É preciso fazer um trabalho contínuo e, em muitos casos, nós utilizamos, na esquizofrenia, especialmente, uma terapia de substituição. Não é uma política de substituição, mas devemos observar que, em certos casos de esquizofrenia, há certas drogas que são usadas com um objetivo específico, por exemplo, é muito habitual que alguns esquizofrênicos consumam maconha para frear o pensamento. Em alguns casos, nós, psiquiatras, damos ao esquizofrênico uma medicação que pode ser melhor que a maconha. Se o sujeito encontrou essa solução, que seja ela. Na esquizofrenia, a solução será sempre uma solução temporária, e eu sempre digo que “dura o quanto dura”. Enquanto dura, dura, e quando acabou, acabou.

Camila Nuic: Quando você diz que é preciso distinguir “Todos somos toxicômanos”, que é quase um axioma da nossa época atual, da toxicomania enquanto tal, fiquei pensando se esta última efetivamente existiria. Essa seria minha primeira questão, e a segunda diz respeito ao uso maníaco de uma droga. Nesse caso citado por Adriana, esse sujeito, um esquizofrênico, faz uso maníaco do crack. Em outros casos, o uso é mais localizado, não é compulsivo, como observamos em alguns casos de neuroses.

Fabián Naparstek: Eu falei, em outro momento, de uma ideia que é também trabalhada por Éric Laurent, ao fazer referência a um termo da psiquiatria: monomanias. Éric Laurent fala de monotoxicomanias, termo que busca marcar formas localizadas de consumo. Este não seria um consumo de qualquer coisa, de qualquer substância, em qualquer momento. É um consumo localizado que, efetivamente, em algumas psicoses, não se liga ao delírio ou a um uso em particular, como anestésico para o corpo, e isso funciona somente com uma só droga. Por exemplo, um rapaz que consumia uma medicação que era um derivado de morfina. Esse rapaz sofreu um acidente de carro, teve um trauma muito grande e teve que passar por uma longa cirurgia. No momento posterior à cirurgia, os médicos prescreviam morfina para alívio da dor ou uma medicação que continha morfina. Depois de toda essa experiência, vimos que esse rapaz se transformou em um monotoxicômano desse mesmo medicamento. Somente desse medicamento, pois ele não consumia cocaína, nem crack, nem maconha. Era como se o rapaz estivesse, a todo o tempo, com o trauma presente, como se não houvesse uma maneira de elaborar o trauma, então, seguia consumindo o mesmo medicamento contra a dor do trauma. Esse rapaz havia desenvolvido uma monomania, uma mania de consumir muito esse medicamento, mas somente esse. Um consumo localizado.

A segunda pergunta, sobre a “toxicomania enquanto tal”, a verdadeira toxicomania, acho que isso não existe. A toxicomania começa na cultura, no momento em que a ciência descobre a síndrome da abstinência. É um momento pontual da história do consumo das drogas. O homem consome drogas há milhares de anos e não havia a toxicomania. Quando a ciência descobre a síndrome de abstinência, a ciência chama isso de toxicomania. Em nome da ciência, no momento em que se fala da toxicomania, começam a existir muitos toxicômanos. Como na época atual, em que muitos têm ataques de pânico, que é uma enfermidade nomeada por Freud como neurose de angústia, e, agora, todo mundo fala de ataque de pânico. E, assim, para todos que vão aos hospitais com sintomas de aceleração e excitação, o médico fala de ataque de pânico. É a ciência que inventa um nome, mas, em nome da ciência, o sujeito mesmo se identifica ao nome de toxicômano, e, assim, ele se diferencia. É o mesmo que eu afirmei sobre a função da droga para cada sujeito. Uma coisa é o nome que a ciência confere a uma determinada prática, e outra coisa é a maneira que cada sujeito tem de ligar-se a essa droga. Nas psicoses, é muito comum encontrar, nas monomanias, uma forma de resolver um trauma, uma maneira de se ligar ao Outro.

Helena Greco: Se considerarmos o último Lacan e a ideia de engates e desengates com o Outro, até que ponto essa tese da ruptura com o falo ainda é válida para pensarmos tanto a toxicomania na neurose quanto na psicose, e como poderíamos pensar esse uso maníaco em relação às psicoses ordinárias?

Fabián Naparstek: As psicoses ordinárias têm, como diz Miller, duas caras, dois aspectos. As psicoses ordinárias são muito mais delicadas que as psicoses extraordinárias, muito mais frágeis, mas, ao mesmo tempo, são muito mais elásticas, mais flexíveis. Há um provérbio francês que escutamos também na Argentina que pode ser útil aqui. Existem aquelas árvores que são muito grandes, muito fortes, que precisam ser golpeadas com um instrumento para parti-las ao meio. O que é diferente da cana-de-açúcar, por exemplo, que é muito frágil, de forma que, quando bate um vento, ela cai, mas, no outro dia, ela se levanta normalmente, pois ela é muito mais flexível.

A ideia de Miller é que as psicoses ordinárias têm muito mais flexibilidade. Tem a possibilidade de desenganchar e, ao mesmo tempo, no outro dia, se reenganchar. As psicoses ordinárias apresentam características que, por sua estrutura, não podemos falar de ruptura, como diz Lacan, não há um antes e um depois do desencadeamento. O Lacan, da primeira época, pensava que o momento do desencadeamento marcava a vida do sujeito com um antes e um depois. No caso das psicoses ordinárias, há momentos diferentes que podem se envolver. É muito mais flexível, nesse sentido, e mostra que algumas toxicomanias têm essa flexibilidade, que o terapeuta deve saber utilizar, para orientar o tratamento. É importante considerar o termo mania, pois a Rede do Campo Freudiano o conserva. Primeiramente, é um termo que vem da psiquiatria clássica, mas a ideia de Freud, assim como a de Lacan, é que a mania é uma ruptura com o Outro. Seja uma mania porque o sujeito consumiu uma droga, seja uma mania por um episódio maníaco. O que foi nomeado como episódio maníaco é o momento em que se pode romper com o Outro.

Então, quando falamos de algum episódio ou de uma monomania, pensamos que não se trata de uma ruptura total com o Outro. Há uma prática, um consumo excessivo da droga, mas dentro de certos limites que marcam esse consumo. Isso não é mesmo que falarmos da mania como uma ruptura total com o Outro. A monomania tem essa característica, há um excesso, mas ela tem uma forma limitada.

Falei, em Belo Horizonte, na XVII Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção MG, da festa totêmica como um exercício limitado. É uma mania, mas que dura um tempo preciso. Acontece no momento em que há um excesso que vem do outro e, ao mesmo tempo, é o outro mesmo que organiza esse excesso. Penso que, em certos sujeitos, há um excesso, mas que está dentro de certo limite, que se permite regular. Portanto, acho que, em algumas psicoses ordinárias, há um excesso, mas, ao mesmo tempo, ele é limitado. Não é um consumo de tudo, é uma limitação de um excesso, que é diferente da toxicomania, que quer tomar qualquer coisa a qualquer momento.

Sérgio de Mattos: Fiquei pensando em um caso acompanhado por você de um homem que se travestia diante do espelho e que, ao fazer isso, usava cocaína. Você comenta que, nesse caso, a função da droga era fazer desaparecer o pênis, minimizar o tamanho do pênis, de tal modo que ele se sentia menos incomodado em possuí-lo. Trata-se de uma função muito precisa da droga, mas você levanta outra questão: esse sujeito, que já consegue regular seu mal-estar com o órgão através da cocaína e dessa prática que você denomina “empuxo-à-mulher”, comenta que sentia que estava traindo sua própria mulher ao se travestir diante do espelho e quer contar a ela sobre sua prática.Você desencoraja-o e diz para ele que isso é da ordem de sua privacidade, de sua intimidade. Minha questão: parece que, nesse momento, você opera a partir de alguns índices do delírio dele em torno do “empuxo-à-mulher”. Você localiza que esse “empuxo-à-mulher” e a droga formam o arranjo que ele faz para apaziguar o mal-estar, o gozo invasivo. Parece que a intervenção só é possível porque você sabe que, se ele publica, se ele revela para a esposa essa solução, isso vai provavelmente se desarranjar. É um cálculo, você evita isso. Temos discutido, aqui no Ateliê, sobre o valor de localizarmos esses indíces no delírio de um sujeito que, se, por um lado, permitiriam entender a função da droga, por outro lado, nos dariam a possibilidade de não operar somente regulando o consumo, mas também moderando um certo modo de o sujeito lidar com aquilo que é da ordem do delírio, e que isso seria uma intervenção possível e desejável na maioria dos casos.

Fabián Naparstek: A neurose é uma maneira de localização do gozo. Uma maneira neurótica, mas uma maneira. O recalque indica que o gozo tem que estar escondido em algum lugar e que a lei funciona em outro lugar. A neurose separa a lei do gozo, então, só se pode gozar de uma maneira localizada, mas, ao mesmo tempo, de uma maneira escondida. O que Freud descobriu é que todo mundo goza, mas o neurótico goza na obscuridade, em lugares escondidos.

A diferença em relação às psicoses é que, nesse caso, o gozo invade por todos os lados, não há um lugar para o gozo e há uma invasão. Se o psicótico pode fazer uma pequena localização de gozo na intimidade, acho que é preciso preservar. Temos que encontrar um lugar no qual preservar o gozo, uma intimidade do gozo. Efetivamente, minha intervenção foi na direção de preservar a intimidade do gozo. Além do que, esse paciente estava em um momento em que não podia parar de consumir cocaína e que estava encontrando uma maneira de frear o consumo e, ao mesmo tempo, uma maneira de localizar o gozo. Bem, ele passou de uma situação em que consumia todos os dias sem parar, desaparecia de sua casa, de sua mulher, de sua família, para poder começar a fazer uma prática muito específica que é a de travestir-se para se transformar em uma mulher. Uma maneira muito localizada. Travestia-se sozinho, em frente ao espelho, e poderia manter isso dentro de uma intimidade.

A intimidade é uma maneira de preservar a localização do gozo. A definição de intimidade é essa: um gozo localizado. Quando não existe mais a intimidade, o gozo começa a aparecer por todos os lados, e isso é próprio da época atual. O reality show é uma maneira de ir de encontro à intimidade. A importância não é tanto o pudor, senão uma espécie de localização. O sujeito pode localizar o gozo em um momento, em um lugar específico. Por isso, muitos fenômenos das psicoses não têm a ver com a intimidade. Pelo contrário, o que há é uma perda de intimidade, e os problemas com vizinhos são muito comuns, por exemplo, nos paranoicos, que os transformam em perseguidores, como se não houvesse uma intimidade, assim como o fenômeno de telepatia, como se não pudesse ter uma intimidade com o próprio pensamento. Todos esses são fenômenos próprios da psicose. Se o sujeito não encontra uma solução para localizar o gozo, isso é problemático, porque é ao mesmo tempo em que se localiza o gozo, que se torna possível ao sujeito se ligar ao Outro. Quando o sujeito consegue localizar o gozo em algum lugar, é que pode, em outro lugar, falar com o outro.

Se o gozo aparece por todos os lados, é impossível falar com o outro. Esse homem mostra muito bem como, por um lado, é possível ter um gozo localizado e, em outro lugar, poder ter uma relação com essa esposa. Isso é muito importante, porque a intimidade é uma maneira de dizer não a essa esposa. Há algo que não, há algo que sim. É uma maneira de manter esse laço com o Outro e ao mesmo tempo de manter uma localização de gozo. Acho que isso é como uma regra: se há uma maneira de localizar a intimidade, há, ao mesmo tempo, uma maneira de se relacionar com o outro, que não é Outro, que sabe tudo, do qual é preciso desligar-se.

Letícia Soares: Quando começamos a pensar na proposta de pesquisa deste Ateliê, nos lembramos muito de uma demanda frequente da comunidade, principalmente dos planos de saúde, que é a procura por grupos específicos de tratamento para toxicômanos. A questão era saber, principalmente, em quais dispositivos a instituição se apoiaria para tratar a toxicomania. Nós recuamos, a princípio, frente a essa proposta de grupos de conversa para toxicômanos, apoiando-nos um pouco na ideia de deslocarmos o significante toxicômano. Gostaria de ouvir sua opinião sobre isso e como uma instituição, orientada pela psicanálise, poderia fazer uso desse dispositivo.

Fabián Naparstek: Podem-se fazer todos os grupos possíveis, o grupo não é o problema. O problema é como se usa o grupo na instituição. Pode-se atender um grupo que fala da toxicomania, atender a família ou o que seja. O problema é como cada sujeito vai fazer uso desse grupo. Para que propósito vai um sujeito a um grupo? Se há um diagnóstico da posição subjetiva, pode-se pensar a partir daí por que o sujeito se liga a um grupo ou não. Se for ao grupo, com que propósito ele vai? Isso é o mais importante. O grupo pode ser um dispositivo que pode funcionar para alguns sim, mas para outros não, e, no momento em que o sujeito entra no grupo, é muito importante saber o que se quer desse sujeito nesse grupo, seja qual grupo for.

Dei um exemplo anteriormente de um menino que se mantinha num grupo em silêncio, e eu falava com o coordenador que, para esse sujeito, era muito importante que ele fosse ao grupo somente para escutar, que isso era muito bom para ele e que, a partir daí, ele poderia fazer uma elaboração de seu problema e de sua posição entre outros toxicômanos. Era uma solução para ele ir a esse grupo, e quando o coordenador “puxava” para que ele falasse, o problema surgia. Falei para o coordenador que aquele paciente não estava no grupo para falar. O problema não é tanto que tipo de grupo é, senão como cada sujeito vai participar do grupo que existe.

(1) Este texto é uma transcrição do seminário proferido por Fabián Naparstek em maio de 2013, com algumas modificações que não alteram o sentido do que foi dito, para conferir ao leitor uma melhor compreensão. Trata-se de uma publicação autorizada pelo autor, sem a sua revisão. Responsáveis pelo Ateliê: Adriana de Vitta, Camila Nuic, Letícia Soares, Marisa de Vitta, Sérgio de Mattos (coordenador). E-mail: freudcidadao@gmail.com.

 


Fabián Naparstek
Psicanalista, membro da EOL e AMP. E-mail: fabiannaparstek@hotmail.com.



Função Tóxica Na Clínica Das Psicoses

ADRIANA RENNA DE VITA

As descobertas sobre a origem da formação dos sintomas neuróticos levaram Freud a propor seu método de tratamento. Sua intenção era a de que, ao se depararem com a insensatez do seu sintoma, os pacientes se colocassem a falar à procura de sua verdade. O paciente supunha que tal verdade estivesse do lado do analista: momento fundante da descoberta da transferência e da possibilidade de decifração dos sintomas. O amor de transferência e a suposição de saber possibilitariam, então, o deciframento do sintoma.

Em nossa atualidade, a psicanálise se depara com algo novo: não se fazem mais sintomas como antigamente. O tempo atual é aquele do declínio da função paterna, da inexistência do Outro e de todas as consequências advindas disso, constatáveis em nossa clínica. E de que clínica se trata na contemporaneidade? Não mais aquela da época de Freud, em que a sintomatologia clássica — fobias, conversões, delírios e alucinações — fornecia ao analista a matéria-prima a partir da qual sua prática era orientada. Podemos constatar que, no mundo contemporâneo, não há mais, como na época da clínica clássica freudiana, crença na existência do Outro da civilização, orientando o laço social como um grande ideal simbólico.

Podemos observar uma precariedade simbólica, em que os sujeitos encontram na impulsão pelo ato, incluindo aí o uso da droga, uma saída para aliviar a angústia. Na era do Outro que não existe e do direito ao gozo, deparamo-nos com o surgimento de novos sintomas e um tratamento para o gozo que passa pelo real. Se a clínica contemporânea é essa da inexistência do Outro, na qual o “transbordamento”, o “desgoverno” se fazem cada vez mais presentes, qual tratamento possível para os casos em que a droga e o ato aparecem como únicos recursos para tratar o mal-estar?

Não recuemos, portanto, diante do contemporâneo e dos novos sintomas. Assim como Lacan nos ensina a não recuar diante das psicoses. Mas como abordar o sintoma em nossa atualidade? Como abordar o sintoma sem o estabelecimento da transferência, sem a suposição de saber? Como pensar o sintoma na clínica da violência, dos acontecimentos de corpo, na clínica da toxicomania? Como entender a função tóxica na clínica das psicoses e em nossa atualidade? Encontramos, cada vez mais, em nossa clínica cotidiana, sujeitos que fazem uso excessivo de substâncias, cujos sintomas, longe de se oferecerem à decifração, colocam o corpo na vertente da degradação e da devastação.

Este trabalho tem a intenção de levantar algumas questões referentes a essa clínica com sujeitos psicóticos que fazem, cada vez mais, uso de alguma substância tóxica. Além disso, pretende abordar a complexa relação sujeito-tóxico-instituição, na tentativa de esclarecer de que modo podemos operar, a partir da psicanálise, em uma instituição de saúde mental.

Se O Toxicômano Não Existe, Estamos Diante De Quê?

A clínica atual tem-nos confrontado, cada vez mais, com um grande número de sujeitos psicóticos que faz uso de substâncias, uso que nos leva a supor que a parceria entre o psicótico e a droga pode se constituir em um dos modos de entrelaçamento que a psicose mantém com a atualidade (GRECO, 2011). Apesar desse entrelaçamento, o uso da droga não pode ser pensado da mesma forma na psicose e na neurose. Como ele se daria no caso da psicose, então?

Com muita frequência, nos tempos atuais, encontramos sujeitos psicóticos que fazem uso de substâncias psicoativas como um recurso para tratar algo que não sabem muito bem nomear. No Ateliê de Pesquisa do Freud Cidadão, já citado em nota no título deste artigo, uma pergunta norteava nossa investigação: partimos da ideia de que o uso de uma substância tem, para cada sujeito, uma função específica, podendo se situar ao lado do remédio e/ou da ruína. Interessava-nos investigar como uma instituição, orientada pela psicanálise e pelas invenções ancoradas na singularidade, poderia operar e oferecer seus dispositivos no tratamento de um mal-estar insuportável que lança os sujeitos em usos excessivos.

A etimologia grega do termo Pharmakon nos fornece uma dupla significação. Ele designa tanto aquilo que cura, que pode situar-se do lado do remédio, quanto aquilo que pode aniquilar, matar: o veneno. O que estaria em jogo, portanto, seria o modo de utilização desse Pharmakon, a dose necessária para curar, aliviar, ou a dose que levaria à morte. Partindo da consideração de que o sujeito toxicômano não existe, a questão que se coloca é: que uso se situaria do lado do remédio e/ou da ruína? A partir dessas questões, é importante investigarmos de que modo poderíamos pensar a direção do tratamento das toxicomanias e alcoolismo nas psicoses, de forma a nos permitir avançar um pouco mais sobre o modo específico como o psicótico se enlaça à droga.

Sabemos que a tese da ruptura com o falo não serve para pensarmos as psicoses, pois, nesse caso, essa ruptura é anterior e estrutural (LAURENT, 1994). Em 1975, Lacan nos diz que a droga seria um modo de o sujeito romper o casamento do corpo com o gozo fálico, tese que parece ter-se constituído como norteadora no tratamento analítico das toxicomanias. Miller (1992) nos lembra, no entanto, que essa afirmação de Lacan não poderia servir para classificarmos e definirmos a toxicomania, sendo somente uma tentativa de definir a droga em seu uso. Pensar a toxicomania como ruptura com o gozo fálico não é pensar necessariamente em forclusão do Nome-do-Pai.

Os avanços trazidos a essa clínica se fizeram notar a partir do momento em que a psicanálise passou a trabalhar com a noção de psicose ordinária. Tal noção nos abre caminhos para pensarmos as psicoses não como uma ruptura, mas como modos distintos de enlaces e desenlaces com o outro. Essa maneira de pensar nos ajuda a entender as toxicomanias: enlaces e desenlaces com o outro, mesmo que, em alguns casos, a partir mesmo da droga. Naparstek (2013) nos lembra de que, em alguns sujeitos, a própria droga pode servir para enlaçar-se ao Outro.

Em sua tese de doutorado, defendida em Paris, Naparstek buscou elucidar ainda mais essa questão. Ele nos esclarece, por exemplo, que há uma diferença importante no uso da droga, dentro do quadro da psicose. Ele se referiu às diferenças entre a paranoia e a esquizofrenia. Entendemos, a partir de Lacan, que o paranoico localiza o gozo no Outro, que o gozo vem do Outro, enquanto, na esquizofrenia, o gozo localiza-se ou retorna no corpo. Isso permite diferenciar duas maneiras diferentes de responder ao gozo que vem do outro. Se o retorno do gozo vem do Outro, encontramos, em alguns pacientes paranoicos, uma resposta atrelada ao significante, a droga atrelada ao significante. Do lado da esquizofrenia, encontramos, muitas vezes, o uso da droga como uma maneira de pacificar o corpo, uma utilização da droga para acalmar o corpo, como um remédio corporal.

Naparstek ainda acrescenta que, durante muito tempo, havia uma ideia amplamente difundida de que devíamos trabalhar no sentido de produzir uma “desidentificacão” ao significante toxicômano, como direção do tratamento clínico. O autor pede prudência quanto a isso e sugere pensarmos o caso a caso. Em muitos casos, uma identificação ao “ser toxicômano” pode ser isso mesmo, uma resposta subjetiva que um sujeito encontra para responder a uma invasão de gozo que vem do campo do Outro. Em outros casos, um esquizofrênico pode consumir a droga, por exemplo, para diminuir os pensamentos, pacificar o corpo, dentre outras estratégias de alívio. Essas elaborações nos remetem à dinâmica institucional com seus ideais e sua “missão”.

A Instituição No Caso A Caso: A Invenção Pela Exceção

Fernanda Otoni de Barros-Brisset, em um interessante texto intitulado “O jogo da casa vazia. Não há sujeito sem instituição” (2011), nos lembra de que, quando um sujeito procura uma instituição, “[…] não é qualquer uma. Algo de sua causa mais íntima o dirigiu até lá, guiado pelo que supõe poder encontrar por ali. A instituição é um Outro: o Outro daquele sujeito. A instituição não é a mesma para todos: cada um tem a sua” (BARROS-BRISSET, 2011, p.2). Isso permite que nos desloquemos da prática dos protocolos institucionais, do universal para todos; trata-se da escuta do sujeito que para ali se endereça, com o que há aí de mais singular.

No trabalho institucional com sujeitos que fazem uso de substâncias, é prudente estarmos atentos a uma discussão que a psicanálise tem empreendido com a psiquiatria acerca do tratamento das toxicomanias. Comumente, ouvimos que a toxicomania “esconde” a estrutura psíquica. Como tratamento, então, propõe-se, em muitas clínicas, “limpar” a toxicomania, através da abstinência, para encontrarmos a estrutura subjetiva. Naparstek nos aponta uma outra direção e sugere que, quando fazemos um diagnóstico, é preciso ir em busca do diagnóstico da função que a droga tem para cada sujeito, pois essa função também permite localizar o diagnóstico estrutural. Cessar o uso da droga a qualquer custo pode então ser extremamente perigoso para alguns sujeitos, pois, muitas vezes, podemos nos deparar com o desencadeamento de uma psicose ou um desarranjo na solução que o sujeito encontrou.

Podemos nos apoiar, então, na ideia de que, quando um sujeito vai em busca da droga, ele vai em busca de uma solução. Se pretendemos cessar um uso, é preciso prudência para encontrarmos o diagnóstico da função que a droga tem para aquele sujeito e prudência também para encontrarmos uma nova solução que possa tomar o lugar da droga.

A esse respeito, Naparstek nos fala, no Ateliê de Pesquisa do Freud Cidadão, sobre um caso, acompanhado por ele, de um homem que se travestia diante do espelho e que, ao fazer isso, usava a cocaína. Em um ritual solitário inventado por ele e não revelado a ninguém por sugestão mesmo de seu analista, esse sujeito parece fazer um arranjo, uma pequena “localização do gozo”.[2] Naparstek pontua com precisão a função muito importante da droga para esse sujeito, função que teria a ver com aquilo que ele chama de “localização de gozo”

Acerca da clínica da psicose, parece-nos importante poder pensar em como localizar o valor de alguns índices no delírio de um sujeito, pois localizá-los poderia permitir, por um lado, entender a função da droga, e, por outro lado, operar não somente através da regulação do consumo, mas também moderando um certo modo de o sujeito lidar com aquilo que é da ordem do delírio. Se o sujeito puder fazer uma pequena localização de gozo na intimidade, é preciso preservar isso. Podemos tomar a definição da intimidade como um gozo localizado: “quando não existe mais a intimidade, o gozo começa a aparecer por todos os lados, e isso provoca um desenlace com o Outro. Se o gozo aparece por todos os lados, é impossível falar com o Outro. Se o outro sabe tudo, é preciso se desligar dele” (Naparstek, 2013).

Se, para cada sujeito, a droga exerce sua função, não seria então na via da supressão e da abstinência que apostaríamos. Desde Freud, sabemos dos riscos e dos efeitos nefastos de tentar eliminar aquilo que o sujeito tem de mais precioso, a saber, seu sintoma. No entanto, se a droga aparece como elemento que permite uma amarração, ainda que frágil, por se tratar da psicose, ela revela sua face mortífera quando o que aparece são corpos devastados e lançados ao abandono. Em nossa clínica cotidiana, nosso desafio tem sido, cada vez mais, nos encontrarmos com sujeitos que pouco respondem às intervenções, com corpos que parecem ocupar-se deles mesmos, em um gozo monótono, sem sentido. Fernanda Otoni de Barros-Brisset, em seu seminário, no Ateliê,[3] nos chama a atenção, entretanto, para o fato de que as rotinas e ideais institucionais não servem mais como referência, e que, diante disso, o analista deve dizer sim ao gozo localizado e inconfessável, “pois escutar esses corpos é escutar o que se cala no sintoma” (BARROS-BRISSET, 2013)

Lacan nos recomenda não recuar. Entendemos, no entanto, que é preciso pensarmos nas possibilidades de trabalho de uma instituição sem tomarmos essa recomendação como um imperativo, pois, em muitos casos, o recuo calculado pode produzir mais efeitos que o oferecimento excessivo de recursos ou dispositivos.

Como operar então no trabalho institucional? Talvez possamos acolher as atuações como demandas, ficarmos atentos ao que se repete e tentarmos entender o que aparece através do ato. Quem sabe assim possamos permitir que se inaugure o enigma “O que ele quer de mim?”. Abre-se, dessa forma, uma via possível para fazê-los responsáveis pelo que dizem. A equipe clínica deve, para isso, estar preparada para a surpresa. Para ir em direção ao sujeito, é preciso então acolher o que se apresenta, a princípio, como únicos recursos: a droga e o ato. Para o que não tem governo, tampouco cura, há tratamento, pois ainda nos restam a palavra e a nossa aposta no inconsciente.[4]

(1) Durante o primeiro semestre de 2013, realizamos, no Freud Cidadão, nosso IV Ateliê de Pesquisa Psicanalítica. As atividades desse Ateliê estavam concentradas em investigar as peculiaridades da clínica com sujeitos psicóticos que fazem uso de alguma substância tóxica. Tema da pequisa: “Função tóxica na clínica das psicoses: remédio ou ruína”. Responsáveis: Adriana de Vitta, Camila Nuic, Letícia Soares, Marisa de Vitta, Sérgio de Mattos (coordenador). O presente texto buscou aprofundar algumas das questões trabalhadas durante os seminários.
(2) Remetemos o leitor ao seminário proferido pelo autor no Ateliê de Pesquisa do Freud Cidadão.
(3) Fernanda Otoni de Barros-Brisset, psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e Associação Mundial de Psicanálise, esteve presente no encerramento do Ateliê, comentando um texto coletivo produzido pela equipe responsável pela pesquisa e intitulado “Toxicomania na clínica das psicoses: a invenção pela exceção”.
(4) Essas elaborações finais fazem parte de uma reflexão feita em conjunto com Camila Nuic, psicóloga do Freud Cidadão e uma das responsáveis pelo Ateliê, a partir de suas anotações pessoais do seminário de Musso Greco.

 


 

Referências
BARROS-BRISSET, F. O. de. “O jogo da casa vazia. Não há sujeito sem instituição”, Almanaque on-line, Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.8, p. 2, jan./jun. 2011.
BARROS-BRISSET, F. O. de. Seminário proferido pela autora por ocasião do encerramento das atividades do Ateliê de Pesquisa Psicanalítica do FREUD CIDADÃO. Belo Horizonte, 3 de julho de 2013.
BATISTA, M. do C.; LAIA, S. (Orgs.). “A Neoconversão”. Secção clínica de Bordeaux. Relatores: Carole Dewambrechies-La Sagna e Jean-Pierre Deffieux. A psicose ordinária. Belo Horizonte: Scriptum, 2012, p. 99 a 151.
GRECO, H. “Os usos que o psicótico faz da droga”, Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v.17, n.2, p.261-277, 2011.
LACAN, J. (1975). “Intervenção no encerramento das jornadas de cartéis”. Disponível em: <http:www.ecolelacanianne.net>. Acesso em: 14 set. 2013.
LAURENT, É. “Como recompor os nomes do pai”, Curinga, Belo Horizonte, n.20, p.17-26, 2004.
LAURENT, É. “Falar com seu sintoma, falar com seu corpo”. Argumento publicado no site do VI ENAPOL (VI Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana. XVIII Encontro Internacional do Campo Freudiano).
LAURENT, É. “Tres ovservaciones sobre la toxicomania”, In: SINATRA, E.; SILLITTI, D.; TARRAB, M. (Orgs.). Sujeito, goce y modernidade II. Buenos Aires: Atuel, 1994.
LAURENT, É. “Ato e instituição”, Almanaque on-line, Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.8, p. 1-6, jan./jul. 2011.
MILLER, J.-A. “Para una investigación sobre el goce auto erótico”, In: SINATRA, E.; SILLITTI, D.; TARRAB, M. (Orgs.). Sujeito, goce y modernidade: fundamentos de la clínica. Buenos Aires: Atuel-TyA, 1994, v.I, p.13-21.
NAPARSTEK, F. Introduccíon a la clínica com las toxicomanias Y alcoholismo III. Buenos Aires: Grama, 2010, p.92-93. (Serie TEMPS).
NAPARSTEK, F. Seminário proferido no Ateliê de Pesquisa Psicanalítica do FREUD CIDADÃO. Belo Horizonte, 9 de maio de 2013.

Adriana Renna De Vita
Psicóloga em formação psicanalítica pelo Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, Mestre em Teoria Psicanalítica (UFMG), Diretora clínica do Freud Cidadão. Cidadão. E-mail: adrianavitta@terra.com.br.



Almanaque V. 7 – Nº 12 1º semestre de 2013

TRILHAMENTO

A educação e os corpos de hoje – Hebe Tizio

ENTREVISTA

Almanaque on-line entrevista – Sérgio Laia – Diretor executivo do VI Enapol pela EBP

INCURSÕES

O corpo da criança e os discursos – Andrea Eulálio de Paula Ferreira, Margaret Pires do Couto e Tereza Cristina Côrtes Facury

A exceção que depõe a regra – Bernardo Micherif Carneiro

ENCONTROS

Apresentação de pacientes: dispositivo e discursos – Cristiana Miranda Ramos Ferreira

O objeto autístico e sua função no tratamento psicanalítico do autismo – Paula Ramos Pimenta

DE UMA NOVA GERAÇÃO

Elaborações psicanalíticas sobre a melancolia e a mania – Adauto Clemente

Que lugar para o analista na experiência com a psicose? – Fernando Ferreira Linhares




A Educação E Os Corpos De Hoje

HEBE TIZIO

 

O presente trabalho toma como ponto de partida a desregulação dos corpos na escola e em outros espaços educativos como decorrência da mudança das coordenadas que organizavam esse espaço e a consequente perda da função educativa. Nesse sentido, tomam-se esses problemas como sintomas sociais na medida em que assinalam uma disfunção no mencionado aparato educativo.

Isso não implica esquecer a determinação individual que se encarna em cada sujeito, e, nesse sentido, deve-se estabelecer uma diferença entre sintoma social e sintoma subjetivo. O sintoma social dá a aparência de homogeneidade e é aí nesse ponto que devemos isolar o singular de cada caso para desagregá-lo do conjunto.

Para desenvolver o tema proposto, buscou-se lançar sobre o assunto um olhar retrospectivo, a fim de verificar o que se conhecia sobre ele no passado e constatar o que se concebe a seu respeito no presente, com vistas a apresentar algumas propostas para sua abordagem.

Retrospectiva

Tradicionalmente, a escola necessitou de corpos regulados para poder levar adiante seus objetivos curriculares. Porém não só se tratava de que a criança tivesse alguns hábitos adquiridos que lhe permitissem ficar tranquilamente sentada em sua carteira. A escola sabia que, para manter essa regulação, era preciso desenvolver um trabalho permanente, e isso se atingia, por um lado, por meio das mesmas aprendizagens e, por outro, por intermédio do controle disciplinar.

Tome-se como exemplo a leitura. Nela, a pontuação determina que, se há uma vírgula, deve-se fazer uma pausa, ou, se se depara com um ponto e parágrafo, isso implica que se deve dar uma parada mais demorada e lançar um olhar para o mundo. Com base nessas determinações se observa que a respiração, a voz e o olhar são afetados pela leitura em um esforço civilizatório sobre o pulsional. A partir dessa perspectiva, pode-se entender a leitura como uma regulação desses objetos pulsionais, a fim de poder entender o texto. Se isso não se realiza, não se entende o que se lê, e muito menos os ouvintes compreendem o que se deseja comunicar.

Na escola do passado, a disciplina se encarregava de reduzir o que resistia e se sustentava em uma autoridade reconhecida como tal porque se assentava no valor do saber que prometia um futuro. A regulação se dava, então, pelas vias do interesse e do castigo.

Progressivamente, esse exercício foi abandonado em função das mudanças sociais que se produziram. A regulação do corpo pelos métodos tradicionais passou a não mais funcionar. A disciplina, no sentido kantiano, como regulação do capricho, não se exerce em um mundo que promove o consumo e, portanto, o apetite desmesurado. E também porque a oferta educativa não se utiliza mais para esse fim, e o ideal do esforço foi substituído pela busca da felicidade.

Insistindo nessa perspectiva clássica, cabe lembrar, ainda, a função do exercício físico como forma de cansar o corpo a fim de deixá-lo dócil para a aprendizagem. Sabia-se que as crianças deviam cansar-se para depois poderem aprender e então descansar, dormindo as horas necessárias. A escola era considerada o lugar de trabalho da criança, e o jogo, um dos entretenimentos no tempo livre. Sobre esse ponto, Hannah Arendt escrevia, referindo-se à crise da educação nos Estados Unidos, que a distinção entre jogo e trabalho foi apagada a favor do primeiro como uma forma insidiosa de promover a infantilização, já que isso não prepararia para o mundo adulto.

É verdade que um mundo que não pode oferecer muitas oportunidades laborais se volta cada vez mais para o entretenimento como forma de controle social. O notável, nesse ponto, é que se conta com o consentimento dos controlados, pois o entretenimento engata bem com o ideal de felicidade. Observa-se, assim, uma promoção do apetite em oposição ao trabalho, e a pergunta é como se produz a abertura ao desejo, pois, na perspectiva freudiana, a proibição era estruturante, nesse ponto.

Se aqui se faz referência a essa escola é porque, hoje, as formas de regulação que a sustentavam e as que lhe davam autoridade se modificaram. Não se remete, com isso, à escola da brutalidade, do castigo, mas à dos últimos 30 anos, que quis retomar suas raízes de renovação pedagógica e introduziu o consenso como forma de trabalhar a disciplina. Não se trata de nostalgia, mas de verificar como uma instituição criada sob determinadas coordenadas de funcionamento, hoje, tem dificuldades de cumprir seu encargo frente às mudanças operadas. Essa escola renovada necessitava de um corpo que respondesse ao que se entendia por solidariedade, um corpo que se tentava regular com os “bons modos” e a palavra, a realização de atividades conjuntas e o interesse.

Aquilo que a escola não pôde regular foi expulso para as redes de exclusão social, e foi aí que a educação social encontrou seu campo e onde se colocam interessantes questões para a psicanálise aplicada.

Miscelâneas

a) Hoje, aparecem, na escola, os corpos chamados hiperativos, o corpo ameaçado ou maltratado no que se conhece como bullying, os corpos anoréxicos, as bulimias, os sobrepesos, as drogas… Sintomas que produzem sujeitos pouco dispostos à aprendizagem porque a dificultam. Além disso, o encargo social que se atribui à escola aumenta dia a dia, e, agora, ela deve-se haver também com outras tarefas, como educar para a saúde, a sexualidade, as drogas… Em outras palavras, ela deve regular os corpos — porém, como, se não há, hoje, espaços para o saber que é sua única possibilidade de operar? A escola vai-se inclinando perigosamente para o controle social direto dos corpos e para um futuro de administradora de fármacos, como já acontece nos Estados Unidos.

Se se passeia pelas cantinas escolares, pode-se verificar as dificuldades existentes em relação à alimentação. O que as crianças de hoje querem comer? Batatas, pizzas, macarrão… e a famosa dieta mediterrânea se transforma em medicação… Fala-se muito sobre educação para a saúde, mas, em geral, nas cantinas, vigora a economia, que se esconde, às vezes, por trás do capricho da criança, pautando-se por ele as propostas de cardápios.

A alimentação carrega as marcas da época, mais precisamente, as formas de comer. A geração dos pais dessas crianças da atualidade devia comer de tudo que se punha no prato, porque nada se podia descartar, sobretudo se se pensasse nos que não tinham nada para comer, as crianças famintas do mundo, as crianças das guerras. E se forçava a comer, não importava o tempo que demorasse a criança em amassar o bolo que fazia com a comida em sua boca, acabaria engolindo. Hoje, basta observar os pratos para perceber que a desconstrução da comida é uma nova vertente que se apresenta, e, à diferença dos cozinheiros famosos, os sujeitos de hoje produzem restos. A decomposição da comida nos elementos que a compõem deixa uma coroa de restos, ao redor do prato, e um vazio central.

Não se trata de apressar-se em tapar esse vazio com o significante anorexia, mas de interrogar-se sobre sua função. Por que não pensar em formas de recusa difusas frente a um “demasiado cheio de porcaria”, como dizia uma menina. Pois isso é, muitas vezes, a comida das cantinas escolares.

Poder-se-ia fazer um novo estudo sobre as particularidades do gosto em um momento em que tudo “sabe” igual, e isso as crianças o sabem, pois saber e sabor se homogeneízam cada vez mais e por isso se recusam. A atrofia do paladar gera recusas ou ingestão indiscriminadas porque se perdeu a bússola do prazer que leva ao objeto oral. É curioso que hoje seja o mercado o que trata de “educar” o gosto, ou deveria dizer: colonizá-lo para o consumo? Observa-se que, cada vez mais, são abertos cursos de “degustadores” de vinho, azeite, chocolate, águas!

Na prática, o não comer se modaliza de diferentes formas. Pode-se tratar de um “comer nada” que funciona em relação ao Outro. Esse objeto “nada” é produzido como anulação simbólica do objeto real. Nada como resposta ao excesso. E esse nada é muito ativo, hiperativo, às vezes, e tem, especialmente quando se trata de comportamentos transitórios, a função de uma recusa facilmente situável.

Pode-se ler também como uma luta para não desaparecer como desejante. O esmagamento na satisfação mata o desejo, e, por isso, há discordâncias. Os imperativos sociais atuais têm a força de uma demanda insaciável: consuma! E o excesso de objetos extermina o desejo, produzindo um tipo de “anorexia generalizada”. Não é casual que a metade do mundo morra de fome e a outra metade de excesso, e que isso se sintomatize nos transtornos da moda. Sem dúvida, existem diferentes formas de relacionar-se com a comida, porém todas encarnam modos de tratamento do objeto e do vazio.

b) A escola se apoiava na família, que lhe dava crianças disciplinadas, com hábitos adquiridos e necessidades atendidas, e, além disso, dava suporte nas tarefas para casa, sustentando e fixando as aprendizagens… Hoje, essa relação se inverteu, e à escola se solicita, em muitos casos, que seja o suporte da família. A família mudou, e isso repercute na forma de alimentar-se, nos hábitos e costumes, nas horas de sono, produzindo efeitos sobre os corpos.
Isso mostra que, na realidade, muitos desses sintomas em adolescentes — que costumam aparecer de maneira muito espetacular — constituem apelos à regulação, no momento em que se dá o encontro com o gozo sexual.

Os “meninos do garrafão”ii ocupam a rua para mostrar a conformação de um particular objeto oral que coloniza um espaço que não é seu e no qual deixam, por essa via, suas marcas. Não se trata de judicializá-los nem de dar tanto espaço a tertulianos que pregam o pior sobre eles. Deve-se oferecer a eles lugares habitáveis que sejam capazes de regular ao seu modo. Os jovens de hoje se queixam de que não podem aceder a certos lugares por falta de recursos. Por acaso, o incipiente movimento pela moradia não diz algo sobre isso? Esses jovens sabem que correm o risco de transformar-se em resto social e contra isso lutam, ainda que, às vezes, de maneiras confusas. Não querem ser o resto no prato dos políticos neoliberais.

c) Hoje, pode-se ver que, por detrás da promoção da imagem do corpo, há uma profunda recusa do mesmo. O individualismo crescente e a solidão que dele deriva não expõem as palavras que são o caminho necessário para o encontro com o outro. O celular, que é o parceiro da moda, cada vez menos é usado para falar. Mais além da economia nas contas telefônicas, “fazer uma perdida” é quase um modelo de comunicação: a comunicação com chamadas perdidas. Deve-se assinalar que o amor se nutre de palavras e que sempre operou como véu sobre o gozo para assegurar o encontro com o parceiro. A dimensão do amor aparece, hoje, modificada, o que torna, às vezes, mais difícil o contato corpo a corpo.

Miller retoma o termo de Lacan “rechaço do corpo”, porém o modaliza em diferentes aspectos. O rechaço do corpo do outro como parceiro sexual e o rechaço do próprio corpo com todos os matizes que isso apresenta, inclusive, o filho… Creio que se pode falar também sobre o rechaço pelas crianças e adolescentes e por tudo o que encarna modalidades de gozo que questionam a ordem estabelecida.

A educação fazia, pela via da cultura, esse caminho de palavras que não só agita os corpos no abraço, mas também os pacifica. Hoje, fala-se, até a saciedade, sobre a violência na escola, sem se perceber que esse problema é efeito do desanodamento da educação e da subjetividade. Quando se perde o efeito regulador da educação sobre o corpo — não pela via disciplinar, mas pelo interesse, pela curiosidade, que promove o patrimônio cultural — só resta acionar o mero controle social. A disciplina sobre o corpo não golpeia mais com palmatória. Por trás da máscara do body building e da realidade dos corpos empilhados e desnutridos nos campos de refugiados e nos cayucosiii, atinge com as distintas estratégias da biopolítica, com as quais a educação frequentemente colabora sem sabê-lo. O cool é, hoje, farmacopeia, a Supernanny propõe castigos públicos, e, há pouco, foi denunciada uma residência para menores em Girona subvencionada pelo governo suíço. Os rebeldes, encerrados em jaulas como castigo, eram tratados fora das próprias fronteiras. O modelo guantânamo se estende e pede “time out”.

Propostas

É verdade que parece haver certa tendência catastrofista quando se reflete sobre as mudanças. Tudo o que não se entende seria um anúncio potencial de “fim do mundo” e, na realidade, o é… Trata-se de um “mundo” que acaba para dar passagem a um novo, que, embora não seja conhecido, se anuncia de muitas maneiras.

A autoridade modificou-se, já se disse, porém isso não pode ser visto como uma catástrofe; trata-se, apenas, de se verificar que modelo de autoridade convém para esse novo tempo. Sabe-se que vários modelos já caducaram, mas não há dúvidas de que limites são sempre necessários. A ideia de limite tem a ver com a possibilidade de se dizer não a isto, mas sim à outra coisa. Deve-se saber que tanto o autoritarismo, como o “deixar fazer sem limite” são as duas faces do pior, ou seja, de um funcionamento superegoico. Trata-se de conceber, então, a autoridade como um instrumento que só poderá ser reconhecido se ajuda o sujeito a construir algo a que possa agarrar-se e que lhe permita, dessa maneira, encontrar o caminho do desejo.

É verdade que o saber foi depreciado, entretanto, é bastante compreensível que isso tenha acontecido porque os atuais suportes de armazenamento o mantêm a nosso alcance, sem necessidade de fixá-lo. É o que faz uma adolescente que começa a escrever em seu celular durante uma das primeiras entrevistas. Quando lhe pergunto o que ela está fazendo, diz-me que guarda algumas das coisas que foram ditas durante a sessão em um arquivo, assim, poderá consultá-lo quando quiser, sem necessidade de usar a sua própria memória. Diante disso, que tipo de saber deve-se pôr em jogo? Pode-se pensar em um saber minimalista que permita construir redes, não somente conectar-se, mas ler de link em link, gerar produtos e saber alocá-los.

Fala-se muito sobre a função do educador que “causa” o interesse do sujeito para provocar seu consentimento à oferta educativa. Hoje, isso se obtém quando se consegue descompletar, quer dizer, produzir um vazio no campo do saber, nunca se colocando em situação de demanda, perguntando à criança o que ela quer. A anorexia de saber produzida pelo excesso só pode ser tratada com um “menu degustação”, pequenos pratos variados que o sujeito pode reconstruir com seus tempos tão diferentes da pressa do sistema. É interessante apreciar a resistência pela via do ritmo lento que muitos adolescentes e crianças apresentam, não querendo ser forçados pela voracidade do tempo que a eles se impõe.

Para a construção da subjetividade, é preciso haver um desejo que não seja anônimo, e se pode dizer que essa é uma questão crucial também para a educação. Isso tem como resultado a necessidade de contar com educadores que vivifiquem a transmissão e com sujeitos que possam saborear os saberes. Assim, abre-se para cada um a particularidade de seu regime de satisfações, e isso é o que se aproxima da felicidade. Afinal, como não perceber que a tão atual busca pela felicidade aponta para o fato de que, hoje, se vive com um menos de satisfação? Os corpos sofrem, assim, pela emergência de um gozo não regulado. Por isso, as políticas repressivas são caracterizadas pelo ódio ao gozo, e a psicanálise sabe que, se o gozo é atacado diretamente, produz-se a transferência negativa, em termos atuais, instaura-se a violência. O gozo deve envolver-se com palavras, interpelar-se com semblantes, distender-se com jogos e esportes, ressoar na música, e, ali, o sujeito elegerá, a partir da temática fantasmática, a que porto se atar, com que meios, sintomaticamente, se sustentar.

 


 

Referências
ARENDT, H. “A crise na educação”, In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 221-147.
FREUD, S. (1930). “O mal-estar na civilização”, In: ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1990, vol. XXI, p.81-171.
MILLER, J.-A. El Otro que no existe y sus comités de ética. Paidós: Buenos Aires, 2005.
NÚÑEZ, V. “Hacia una reelaboración del sentido de la educación. Una perspectiva desde la Pedagogía Social”, In: Educación no formal. Fundamentos para una praxis. Ministerio de Educación y Cultura de Uruguay, 2006.
Tradução: Kátia Mariás Pinto
Revisão da tradução: Márcia Mezêncio
1 “La educación y los cuerpos de hoy”. Conferência realizada na Universidade de Deusto em 7 de abril de 2006. Publicada originalmente em Freudiana, Revista de psicoanálisis de la ELP – Catalunya, n. 47, Barcelona, 2006. p.31-37.
2 N.T.: “Chicos del botellón”. Refere-se ao costume, principalmente entre os jovens, de consumir grandes quantidades de bebidas alcoólicas em vias públicas, comum na Espanha desde finais do século XX.
3 N.T.: Embarcação indiana muito pequena, menor que a canoa, na qual não cabe mais do que uma pessoa.

Hebe Tizio
Hebe Tizio – Psicanalista em Barcelona, Membro da AMP. E-mail: hebe@tizio.e.telefonica.net



Almanaque On-Line Entrevista

 SÉRGIO LAIA – DIRETOR EXECUTIVO DO VI ENAPOL PELA EBP

 

1) O Corpo Está Em Discussão. O IPSM-MG Tem-Se Ocupado Da Exploração Do Tema Do VI ENAPOL E Propõe, Para Esta Entrevista, A Articulação “O Corpo Sob Transferência”, O Corpo Tomado Pela Incidência Do Discurso Analítico No Século XXI. O Título Do VI ENAPOL, Falar Com O Corpo, E Seu Subtítulo, “A Crise Das Normas E A Agitação Do Real”, Apresentam, Segundo Seu Texto Publicado No Site Do Encontro (LAIA, 2013), Um Programa Da Psicanálise De Orientação Lacaniana, Frente Ao Desencanto Contemporâneo Com Os “Poderes Da Palavra”, Em Sua Decisão De “Falar Com O Corpo” E Persistir Na “Trama Corpo-Linguagem” Para Ler Os Sintomas E Abordar A Generalização Das Normas Como Uma Crise Das Normas, Uma Resposta Ao Seu Fracasso Através De Um Recrudescimento.

Que Tratamento A Psicanálise Pode Oferecer Ao Corpo, Considerando Os Novos Usos Que Se Apresentam Na Clínica De Hoje?
Mesmo com todas as críticas e até perseguições que a psicanálise vem sofrendo nestes tempos, estimo que estamos em um momento oportuno, ainda que isso não implique qualquer conforto. Primeiro, porque essas críticas e essas perseguições podem e devem ser enfrentadas por nós, analistas (e aqui já introduzo o tema que vocês elegeram para esta entrevista), como uma transferência apresentada na faceta que Freud já chamava de “transferência negativa”. Além disso, vivemos em um mundo onde é intenso o apelo que se faz ao corpo:

No que concerne mais especificamente às terapêuticas, uma boa parte das propostas atuais reduz os sintomas a “transtornos” que, embora qualificados de “mentais”, encontram nos corpos um lugar em que eles ganham consistência e no qual devem ser feitas as intervenções terapêuticas. Afinal, “localizações cerebrais” e “marcadores biológicos” são buscados como formas de se conferir maior objetividade ao diagnóstico e ao tratamento, que, muitas vezes, é necessariamente associado ou mesmo restrito a medicamentos.

Quanto ao que caracteriza, de modo geral, nossa civilização, senão tudo, certamente, uma grande parte do que se propõe e se experimenta, hoje, como “modos” ou “estilos” de vida implica o corpo em sua exigência de satisfação constante.

Ora, a psicanálise é uma experiência que se faz com o corpo e no corpo. Portanto, ela tem toda condição para responder às incitações que nossa civilização faz aos corpos como campo privilegiado de satisfação, bem como às reduções pelas quais muitas terapêuticas atuais tomam os sintomas, identificando-os apenas como o que é somático. Nossa diferença (e também nosso desafio em termos de implantação e reiteração neste mundo) é que, para nós, os corpos são o que eu chamaria de caixas de ressonância e também de dissonância, ressaltando que esses “sons” corporais não são captáveis nem pelos tradicionais e também cada vez mais sofisticados aparelhos de “ultrassonografia”, nem pela tecnologia de ponta instrumentalizada como “ressonância magnética”. Afinal, esses sons manifestam-se, segundo nos ensina Lacan, como “no corpo, o eco do fato de que há um dizer” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 18), ou seja, eles são pulsionais. Embora sejam às pulsões que a civilização procura responder (silenciando-as, nos tempos mais repressivos, ou, como acontece mais em nossa atualidade, mais permissiva, incitando-as), embora seja também algo das pulsões que muitas terapêuticas contemporâneas — mesmo sem usarem tal nome — propõem controlar (como no caso dos “hiperativos”), ou incitar (como no caso dos “deprimidos”), é a psicanálise que consolidou modos efetivos para que possamos abordá-las e vivê-las. É na experiência analítica que se pode constatar o quanto as palavras afetam os corpos e o quanto ansiamos para falar com os corpos e também para fazê-los falar. Por conseguinte, embora se tente muito isso hoje em dia, não há como livrar os corpos vivos desse tipo de afecção. Por isso, conforme eu lhes dizia inicialmente, temos de nos haver hoje com uma enorme transferência negativa quanto à psicanálise e nos encontramos, concomitantemente, em um momento oportuno.

2) Segundo Éric Laurent (2013), “A Crise Das Normas E A Agitação Do Real” Remetem-Nos A Uma Dupla Série Causal: De Um Lado, “Os Corpos São Muito Mais Deixados Por Sua Própria Conta, Marcando-Se Febrilmente Com Signos Que Não Chegam A Lhes Dar Consistência E, Por Outro Lado, A Agitação Do Real Pode Ser Lida Como Uma Das Consequências Da ‘Ascensão Ao Zênite Do Objeto A’.”
Quais As Consequências Dessa Constatação Na Direção De Um Tratamento Em Nossos Dias, Que Pretende Fundamentar-Se Na Teoria E Ética Lacanianas?

Parece-me que minha resposta à questão anterior já antecipa elementos que respondem a esta segunda. Quais são os “signos” (para tomar aqui a passagem de Éric Laurent citada por vocês) que não chegam a “dar consistência” aos corpos, mas que os marcam “febrilmente”? Há uma multiplicidade deles: “tatuagens”, “drogas”, “baladas”, “silicones”, “energéticos”, “celulares”, “roupas”, “TPM”, “ponto G”, “Viagra”, “sexo”… etc…. Essa variedade, que cada vez se multiplica mais, mostra, concomitantemente, como o “objeto a”, por ser efetivamente um “condensador” de gozo, ou seja, de satisfação, encontra-se em ascensão no mundo contemporâneo, mas ela também evidencia, especialmente para quem é sensível à escuta analítica, o fracasso desses signos em dar aos corpos alguma consistência. Em outros termos, há uma produção de múltiplos objetos e uma busca incessante por eles porque não há efetivamente objeto capaz de suturar o vazio que faz os dizeres ecoarem nos corpos. Por sua vez, a experiência analítica tem como cingir e responder a tal vazio sem ser pela proliferação dos objetos. Nossos consultórios de psicanálise, bem como os atendimentos e intervenções que muitos de nós fazem nas instituições de saúde, de defesa social e de ensino comportam muitos exemplos de como os corpos são objetos de intensos investimentos, de incisivas intervenções, mas sem que isso resulte em alguma consistência para aqueles que se apresentam com eles, visando a um tratamento, um acolhimento, uma resposta. Entre esses exemplos, eu citaria: a busca incessante pelo “over” nas toxicomanias, que ganha, com o crack, um viés ainda mais tenebroso, o “menor abandonado”, cuja trajetória de infrações o faz sempre ser abandonado, o entediado, que vaga pelas noites ou pelos shoppings, sem encontrar o que ele não sabe que está procurando, a anoréxica, que recusa o alimento para, insistentemente, comer nada, aquele que não encontra mais lugar no corpo para mais uma tatuagem…

Sobre como a psicanálise pode tratar essas inconsistências, essas experiências de esvaimento dos corpos manifestada na própria apresentação dos corpos como objetos, eu já destaquei, na primeira resposta, e também no meu texto (LAIA, 2013), que se encontra no site do VI ENAPOL (evocado também, a princípio, por vocês): nossas intervenções se valem da “trama corpo-linguagem”, da escuta do que ecoa, inclusive nessas inconsistências corporais, como dizer. A transferência, nesse contexto, é decisiva, pois os corpos inconsistentes de hoje não param de buscar os corpos, e, nessa trajetória, o corpo do analista pode fazer diferença entre os múltiplos corpos que servem como anteparo, âncora, bússola, mas também como diluição, errância, perdição aos corpos agitados de hoje. Por fim, se a ética da psicanálise se vale da orientação de não ceder quanto ao desejo, de agir em conformidade com o desejo (segundo os termos de Lacan, no Seminário 7, 1959-1960/1988, p. 373-390), encontro, em uma passagem do primeiro testemunho de Marcus André Vieira como A.E. (Analista da Escola), uma indicação preciosa para articularmos tal orientação com a definição lacaniana da pulsão, no Seminário 23, como “no corpo, o eco do fato de que há um dizer” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 18). Tematizando exatamente como a transferência permitiu-lhe abrir “um espaço corporal sem lugar e forma claros” e também marcado por “nada do Outro”, ou seja, alheio a qualquer referência, no qual “ecoavam as intervenções sonoras do analista e que sentia sua presença, reagindo à sua voz de outra forma”, Marcus André Vieira nos mostra como a experiência analítica deu-lhe alguma consistência para o “tanto de gozo fora do corpo, de vida que não cabe na vida e se manifestava como vontade” de ele, Marcus, se “lançar para dentro e não para fora, para o encontro com um desejo a descobrir e não a antecipar” (VIEIRA, 2013, p. 31, grifos do entrevistado). Considero preciosa tal passagem, no que concerne à ética da psicanálise e à experiência analítica hoje, porque, em nosso mundo, tomado pelo imperativo da satisfação, os corpos estão sempre às voltas com o desejo a antecipar, e à experiência analítica cabe suscitar o que poderá apresentar-se como um desejo a descobrir. É desse desejo a descobrir que não se deve ceder, e é esse desafio que sustentamos na experiência analítica, particularmente hoje em dia, quando o mundo é assolado pela urgência de se antecipar o desejo para que se possa garantir a onipresença da satisfação.

3) Ainda Hoje, Poderíamos Constatar, Como Freud, Que “Sempre Resta O Sintoma, Na Medida Em Que Ele Interroga Cada Um Sobre O Que Vem Incomodar-Lhe O Corpo”. Entretanto, Éric Laurent (2013) Nos Alerta De Que “Precisamos Conceber O Sintoma Não Com Base Na Crença No Nome-Do-Pai, Mas Baseados Na Efetividade Da Prática Psicanalítica”.
O Que Significa, Para A Apresentação E O Manejo Da Transferência, Ir Para “Além Do Sintoma Histérico, Que Supõe, No Horizonte, O Amor Ao Pai”?

O amor ao analista, isto é, o investimento que liga o analisando ao analista, pode ter o amor ao pai como uma das formas pelas quais a transferência se processa. Freud mesmo fala do analista como um “substituto” dos primeiros objetos de investimento libidinal, e o pai se encontra entre esses objetos. Mas a transferência e seu manejo não se reduzem a isso. Mesmo quando tomamos a transferência, tal qual Freud, como uma forma de “neurose” forjada na própria experiência analítica, ela não é mera repetição do que se passou e não foi elaborado. A parte em que o sintoma se trama com o amor ao pai é, a meu ver, mesmo sob a forma de “neurose de transferência”, aquela que é decifrável, inclusive porque o Nome-do-Pai tem, segundo podemos ler na “metáfora paterna”, a função de traduzir, decifrar o enigma do “Desejo da Mãe” (LACAN, 1957-1958/1998, p. 563). Entretanto, como nos vai ensinar um Lacan mais tardio em relação àquele dessa operação de metaforização, “uma mensagem decifrada pode continuar a ser um enigma” (LACAN, 1973/2003, p. 550). Assim, quanto ao sintoma, ele comporta, como tem insistido Jacques-Alain Miller, uma opacidade ao sentido e à decifração, e, nesse viés, o analista como parceiro-sintoma, na transferência, não é pura e simplesmente um substituto do pai.

4) Em TEXTOaCORPO #18, Lemos: “O Novo Status Do Sintoma Significa Muito Mais Que Constatar Que Não Há Sintoma Sem Corpo. Ao Ser Acontecimento De Corpo, O Sintoma É Um Real Contingente E Singular, Pois Nenhum Acontecimento É Necessário E Universal. O Corpo, Como Sede Deste Acontecimento, Ademais De Ser Gozável, Deve Poder Receber, Como Letra, A Marca Escrita Pelo Sintoma, E Por Isso É Literável” (ARENAS, 2013). Miller (2012) Refere-Se Ao Ultimíssimo Lacan Apontando Que: “No Lugar De Função Da Fala, Campo Da Linguagem E Instância Da Letra, Temos Lalíngua, Apalavra E Lituraterra, Que Esboçam Certamente Um Outro Lacan”.

Já Que O Sintoma Se Inscreve No Corpo, Como Escutá-Lo E Interpretá-Lo, Se Há, Nos Tempos De Hoje, Uma Dificuldade No Relato Pelo Falasser? Como Articular Escuta E Leitura (Do Sintoma Que Se Escreve), Uma Vez Que O Corpo É Tomado Como Aquilo Do Qual Goza O Sujeito? Como Fica A Transferência?
O que vocês estão chamando de “dificuldade no relato” se manifesta, muitas vezes, como uma dificuldade de dizer, de contar o que se passou, de falar do que está acontecendo, de decifrar o sintoma, ou, pelo menos, de ser sensível à sua decifração. Entretanto, se a psicanálise faz diferença, em um mundo onde, o tempo inteiro, se insiste que “falar faz bem”, é porque, para nós, a dificuldade para relatar não é menos um dizer. Por isso, a experiência analítica não se reduz a uma trama biográfica: os analisantes se surpreendem com o que escapa à suas biografias e que, ainda assim, os determinam, mobilizam seus sintomas, constituem seus desejos. Nesse viés, quando pretendemos discutir, no VI ENAPOL, as diferentes nuances de “Falar com o corpo”, essa fala se processa mesmo quando não há muita disposição do falante ao relato, porque o corpo é uma espécie de “estranho” com o qual, contrariando o que dizem, primordialmente, nossos pais, insistimos em falar, porque ele, com sua presença inusitada, enigmática, nos faz falar. A transferência é decisiva nesse contexto porque, como constatamos na orientação lacaniana, um analista é talhado, por sua análise pessoal e pelas supervisões, a tomar a forma desse “estranho” que é o corpo com que falamos, muitas vezes, sem escutar qualquer palavra, e, como esse “corpo estranho”, na transferência, um analista poderá fazer ecoar (ou mesmo amplificar) o inaudível não para que este seja propriamente escutado ou relatado, mas para que possamos cingir e nos virar com tal opacidade.

5) Acompanhamos, No Momento Atual, A Agitação Dos Corpos Dos Jovens, Em Uma Série De Manifestações, Nas Quais Os Analistas Políticos Identificam Uma “Crise Da Representação”.
Que Articulação Se Pode Fazer Entre O Lugar Ocupado Pelo Corpo Na Atualidade E As Novas Formas De Identidade?

As manifestações recentes parecem evidenciar que a crise das normas atinge inclusive o campo mesmo dos protestos. Afinal, no início, o que surpreendeu a todos foi o fato de não se saber de onde surgiu tanta gente que, até então, supunha-se que estava mais conectada à internet do que à suposta “realidade do país”. Uma faixa dos manifestantes proclamava: “Somos a rede social”, e encontro nela um excelente exemplo do que Lacan chamava de interpretação pelo equívoco. Afinal, nesses tempos de Facebook, Instagram, WhatsApp e Twitter, o sintagma “rede social” refere-se a corpos imersos no chamado “mundo virtual”, mas, nas manifestações, eis que esses corpos, que ninguém sabia muito bem onde estavam, aparecem nas ruas sob a forma das “manifestações”. Em outros termos, os corpos dos manifestantes “pularam” do “mundo virtual” para as “manifestações” em várias cidades brasileiras, da mesma forma como a anamorfose pintada por Holbein, no quadro Os embaixadores (comentado por Lacan, no Seminário 11), “pula”, enigmática, do que esse quadro representava em termos dos objetos da ciência, das artes e dos representantes da diplomacia, ou seja, da “realidade” do então século XVI (LACAN, 1964/1988, p. 84-115).

À medida que os protestos foram-se multiplicando, tudo parecia ter-se tornado motivo de protesto, e, nesse sentido, a própria concepção do que seria “protestar” se mostrou, senão diluída, certamente ainda mais opaca. Dessa surpresa frente a essa diluição e à opacidade, algo me pareceu manter-se e que tem a ver com o que, na pergunta, vocês chamaram de “agitação dos corpos”. Fazendo aproximação entre o subtítulo do VI ENAPOL e essas manifestações recentes no Brasil, parece possível sustentar que a “agitação do real” é uma “agitação dos corpos”, e que, quando há “crise das normas”, os corpos se agitam. Pergunto-me, nesse aspecto, se o sintoma “social” corporificado por essas manifestações não pode ser lido na vertente do que, graças a Jacques-Alain Miller, temos podido encontrar em Lacan como “acontecimento de corpo”. Assim, se uma das faixas ostentadas nessas ocasiões dizia: “Não são só 20 centavos”, eu não a leio apenas como ressaltando que há mais motivo para protestos do que o aumento das passagens de ônibus ou o direito à gratuidade do transporte público para estudantes. Prefiro lê-la assim: os “20 centavos” de aumento nas tarifas de ônibus não foram apenas o “significante” que causou a agitação dos corpos sob a forma de protestos, eles são o significante que acionou o gosto, ou, se quisermos usar um termo mais lacaniano, o gozo dos corpos de se manifestarem, especialmente porque as manifestações se tornaram mais frequentes depois que alguns corpos que se batiam por transporte público mais barato ou gratuito foram alvos de inusitada violência policial na cidade de São Paulo. Com base no que alguns analisantes me contaram sobre suas participações nas manifestações e acompanhando-as direta ou indiretamente, eu diria que não eram apenas os “20 centavos”, porque o que se descobria ali, a cada manifestação, era a satisfação dos corpos que, como também se pôde logo notar, não era apenas a dos corpos se encontrarem, mas também de se deixarem tomar por colisões e ímpetos mortíferos. Assim, retomando minha referência ao quadro de Holbein, é importante lembrar que a anamorfose que “pula” da representação é um crânio de caveira, e, se ela me permitiu fazer essa relação com os corpos cuja agitação surpreendeu a todos nessas recentes manifestações, parece-me igualmente importante que, como analistas, nós certamente não temos que desprezá-las (afinal, o que agita os corpos nos concerne desde os sintomas histéricos os mais clássicos), tampouco temos que tomá-las como uma crise da representação manifestando, como pretenderia um Badiou, o irrepresentável na política como uma solução inequívoca.

Duas frases de Lacan, que faz do equívoco um bem-dizer, surgem-me, aqui, como uma posição interessante frente às manifestações: “Eu aguardo, mas não espero nada” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 133). Essa passagem é instigante porque, comportando um enigma ao lidar com os verbos “aguardar” e “esperar”, atribui-lhes uma diferença que não é tão clara ao senso comum, nem para os dicionários, mas que é real para a psicanálise de orientação lacaniana. Afinal, “esperar” ressoa em “esperança” e, portanto, em uma expectativa de que há um sentido, um ideal, mesmo que (mortiferamente ou não) inalcançáveis e que comportem uma convocação do Outro, de um lugar ao qual se pode chegar, aspirar, fazer consistir. Bem diferente, “aguardar” implica a presença viva de um corpo, sem lugar para uma expectativa ou uma convocação quanto ao sentido, ao ideal ou ao Outro. Assim, um analista é aquele que, frente à agitação dos corpos, aguarda sem esperar, transmitindo-lhes, assim, inclusive, alguma serenidade. Novamente, posso verificar aqui com vocês o quanto vivemos um momento oportuno para a psicanálise de orientação lacaniana, mesmo que essa oportunidade não nos reserve qualquer conforto.

 


 

Referências
ARENAS, G. O corpo, gozável e literável. TEXTOaCORPO #18. 2013. Disponível em: http://www.enapol.com/Boletines/018.pdf. Acesso em: 21/07/2013.
LACAN, J. (1957-1958). “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 537-590.
LACAN, J. (1959-1960). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
LACAN, J. (1964). O Seminário, livro 11: os quarto conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
LACAN, J. (1973). “Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos”, In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 550-556.
LACAN, J. (1975-1976). O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
LAIA, S. Falar com o corpo, um solilóquio e a experiência analítica. 2013. Disponível em: http://www.enapol.com/pt/template.php?file=Textos/Hablar-con-el-cuerpo-un-soliloquio-y-la-experiencia-analitica_Sergio-Laia.html. Acesso em: 21/07/2013.
LAURENT, É. “Falar com seu sintoma, falar com seu corpo”. 2013. Disponível em: http://www.enapol.com/pt/template.php?file=Argumento.html. Acesso em: 21/07/2013.
MILLER, J.-A. “O escrito na fala”. Opção Lacaniana online, nova série, ano 3, n. 8, jul. 2012. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_8/O_escrito_na_fala.pdf. Acesso em: 21/07/2013.
VIEIRA, M. A. “Mordidavida”, Opção Lacaniana, n. 65, abr. 2013, p. 31.



O Corpo Da Criança E Os Discursos

ANDREA EULÁLIO DE PAULA FERREIRA, MARGARET PIRES DO COUTO E TEREZA CRISTINA CÔRTES FACURY

 

1 Introdução

Na contemporaneidade, a criança e seu corpo tornaram-se objetos privilegiados nos mais diversos saberes. Vários são os discursos que buscam regular, orientar e disciplinar o corpo da criança, esquecendo-se, frequentemente, de que ela é um sujeito capaz de interpretar e expressar seu próprio saber.

Hiperativos, deprimidos, fóbicos, autistas, agressivos, etc., são alguns dos nomes distribuídos a partir das avaliações escolares e científicas, configurando o momento atual em que grande parte das crianças encontra-se categorizada, apagando o traço da singularidade que concerne a cada sujeito.

Ao abordar esse tema, pretendemos investigar como, na atualidade, os discursos — enquanto modos de aparelhar e/ou produzir o gozo — buscam regular as relações dos sujeitos crianças e seus corpos. Para isso, trabalharemos com a hipótese, formulada pelo ensino de Lacan, de que o discurso da ciência, e não a ciência, pode funcionar segundo a lógica do discurso universitário e do discurso do capitalista. A obra científica genuína não exclui a causa, e, por isso, afirma Lacan (1973/1993, p. 40), “o discurso científico e o discurso histérico têm quase a mesma estrutura”. Assim, nessa estrutura discursiva, a verdade, como encontro com o real, não é eliminada, mas confrontada.

Por outro lado, a psicanálise, destinada sempre a ser uma ciência do particular, permite demonstrar que o discurso analítico, ao acolher a criança e seu saber, produz efeitos de histericização sobre seu corpo, demonstrando que esse corpo pode recusar a ditadura dos significantes-mestres produzidos pelo discurso da ciência.

2 O Corpo Da Criança No Discurso Científico

Em “Alocução sobre as psicoses da criança”, Lacan (1967/2003) afirma que o corpo é mantido na ignorância pelo sujeito da ciência e indaga se chegaríamos a ter direito de desmembrá-lo em nome dessa ignorância. Qual é a verdade sobre o corpo que a ciência tende a ignorar?

Submetida ao imperativo da harmonia, a ciência desconhece aquilo que Lacan demonstrou ser a diferença entre ter um corpo e ser um corpo. “É totalmente estranho estar localizado num corpo, e não se pode minimizar esta estranheza” (Lacan, 1954-1955/1985, p. 97). De acordo com Miller (2004), por mais corporal que seja, o ser falante, ao ser feito pelo significante, divide seu ser e seu corpo, produzindo uma falha de identificação. É por isso que, nesse corpo, se passam coisas imprevistas, coisas que escapam, acontecimentos que deixam traços desnaturais e disfuncionais.

Ao longo da história, o corpo se constituiu, gradativamente, como objeto da ciência, sendo concebido ora como natureza, ora como máquina, até tornar-se objeto de intervenções que vão além da finalidade terapêutica. Na tentativa de aprisioná-lo no discurso da ciência, o corpo padece, atualmente, cada vez mais, de transtornos inespecíficos, que fazem proliferar os diagnósticos médicos. Ele faz sintoma, é assolado pela angústia, escapando à estratégia de domá-lo. O grande número de sintomas no corpo que chega às nossas clínicas constitui-se em evidências daquilo que fora excluído, ignorado pelo discurso da ciência, e que retorna na cena do mundo.

No campo da história, Foucault já demonstrou que, desde a época clássica, o corpo foi descoberto como objeto de poder, de manipulação e treinamento, na tentativa de torná-lo obediente e dócil. Para o autor, o século XVII inaugurou novos métodos de controle minuciosos do corpo, que ele nomeou como “métodos disciplinares”. Esses métodos foram-se tornando fórmulas de dominação cada vez mais aprimoradas. Em Vigiar e punir, publicado originalmente em 1975, Foucault define a disciplina como o “poder da norma” (Foucault, 1975/1993, p. 164), que, ao conduzir à homogeneidade, permite medir os desvios, tendo como função maior o adestramento. Demonstrou a difusão da sociedade disciplinar e de seus mecanismos por meio da vigilância permanente, exaustiva e onipresente. Para ele, o sucesso do poder disciplinar se deve ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação em um procedimento que lhe é específico, o exame.

De acordo com Foucault (1975/1993), a técnica do exame permite que cada indivíduo seja descrito, mensurado, medido e comparado a outros. Essa técnica faz com que a individualidade de cada corpo entre para uma documentação administrativa em que tudo é anotado, as atitudes e comportamentos são registrados em detalhes. Os corpos tornam-se legíveis, dóceis e objetivados. Não seria esse esquadrinhamento do corpo o que encontramos nas técnicas de avaliação e de seus protocolos, que visam a descrever e mensurar o comportamento dos sujeitos?

Isso se esclarece, por exemplo, quando observamos a criação do protocolo de “Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil” (IRDI), utilizado tanto em creches como nos consultórios pediátricos, que tem o objetivo de diagnosticar e tratar o autismo.i Fundamentado em pressupostos teóricos psicanalíticos sobre a constituição psíquica de crianças de 0 a 36 meses, ele foi elaborado e validado com 31 indicadores clínicos de risco para a detecção precoce de transtornos psíquicos do desenvolvimento infantil, observáveis nos primeiros 18 meses de vida da criança. O IRDI aparece como um instrumento de promoção de saúde mental nos primeiros estágios do desenvolvimento da criança, pois se entende que os cuidados psíquicos na infância reduzem a incidência de distúrbios mentais tanto nessa fase quanto na vida adulta (BERNARDINO; MARIOTTO, 2009).

Será possível observar e registrar o inconsciente? Não será essa proposta mais uma a alimentar a série: avaliação, classificação e medicalização?

Quanto ao fenômeno contemporâneo da medicalização das crianças, pensamos que essa seria uma nova técnica disciplinar com o objetivo de controle dos corpos. Porém, como operaria essa nova forma de “disciplinarização”?

A teoria dos discursos, desenvolvida por Lacan (1969-1970/1992), em O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, pode ajudar a responder a essa questão. Lacan apresenta os discursos como laço social, uma estrutura que ultrapassa a palavra, antecede a fala dos sujeitos, organiza-as, permitindo dar um tratamento ao que escapa à articulação significante, quer dizer, um tratamento ao gozo que se encontra presente em todo laço social.

Os quatro discursos que Lacan matemiza — o discurso do mestre, o discurso histérico, o discurso universitário e o discurso analítico — correspondem a quatro tramas discursivas, quatro lugares de enunciação e quatro configurações significantes diferentes. Eles se diferenciam pela sua posição espacial e pela rotação que os quatro significantes (sujeito, significante-mestre, saber e o objeto a) fazem nos quatro lugares do discurso que, por sua vez, são fixos.

Os quatro lugares, lugar do agente, lugar do outro, lugar da verdade e lugar da produção, estão assim dispostos:

 

Nossa hipótese, como dito anteriormente, é que a ciência possa desenvolver-se a partir da lógica do discurso universitário e também do capitalista, como veremos adiante. A estrutura do discurso universitário ajuda a pensar como o saber científico, sustentado na lógica do poder disciplinar descrita por Foucault, ocupa-se dos corpos das crianças:

Trata-se, então, da lógica do discurso universitário, matemizado por Lacan da seguinte forma:

 

Nesse mesmo seminário, Lacan analisa as consequências ou os efeitos produzidos quando o saber (S2) está no lugar de agente ou na posição dominante do discurso. Para Lacan, no discurso universitário, o S2, o saber, ocupa o lugar da ordem, do mandamento, de forma anônima, pois se encontra separado de seu autor. No lugar da verdade (S1), está o significante-mestre operando para portar a ordem do mestre. O mestre não está mais aí na posição de domínio, o que permanece é seu mandamento, seu imperativo categórico, por meio do saber científico universal e generalizante. O efeito dessa configuração é o desconhecimento da verdade inconsciente e a tirania do saber que se apresenta como “verdade científica”. A verdade do sujeito, verdade, essa, sempre particularizada, é rejeitada em prol de uma verdade universal, aquela produzida pela ciência.

Assim, quando o agente do discurso é o saber, ele sempre se dirige ao Outro como objeto, “objetalizando-o”. É o mestre que ocupa o lugar da verdade, e o que se produz, nesse discurso, e, ao mesmo tempo, se perde, se exclui, é o próprio sujeito do inconsciente, com sua divisão.

Na contemporaneidade, verificamos uma perigosa aliança entre o saber científico e o capital, potencializando aquilo que Foucault descreveu como objetivação dos corpos e que, com o ensino de Lacan, extraímos como “objetalização” do sujeito.

Lacan matemizou um quinto discurso, o do capitalista, como uma nova modalidade do discurso do mestre, definindo-o como o laço social dominante em nossa sociedade:

Diferentemente da lógica dos outros discursos, o discurso do capitalista tenta eliminar a dimensão do impossível ao prometer o acesso direto do sujeito aos objetos e do mestre ao saber. Efetivamente, ele não promove o laço entre os sujeitos, mas a relação do sujeito com o objeto, supostamente capaz de recuperar o gozo perdido, que a entrada do ser falante na linguagem instaura.

Nesse sentido, o saber científico tem como objetivo produzir os objetos de consumo e colocá-los à disposição do sujeito. A divisão é transformada em déficit, fazendo com que o sujeito transforme seu mal-estar estrutural, a falta da estrutura, em um menos, na ilusão de que poderá ser preenchido com um objeto produzido e elevado pelo mercado à categoria do objeto a. Esse circuito faz funcionar a máquina da produção incessante de novos objetos a serem consumidos, transformando o próprio sujeito em um desses objetos. O efeito de toda essa maquinaria é o rechaço da divisão e sua consequente anulação do desejo, ao fazer crer que seria possível, e não mais impossível, o encontro com o objeto de satisfação. Os medicamentos entrariam na série desses produtos a serem produzidos, ofertados e consumidos. Então, como pensar a relação entre o corpo da criança e o saber científico, partindo da lógica do discurso capitalista?

Temos, no lugar da verdade, o significante-mestre representado pelos interesses do capital e a lógica do mercado. Esse significante-mestre comanda o saber científico e impõe a produção cada vez maior de novos objetos a serem consumidos: por exemplo, o medicamento. No lugar do agente, temos o sujeito criança com seu corpo não mais tomado como um corpo marcado pela falta, pela dimensão traumática que todo corpo apresenta para o ser falante. Ao contrário, temos um corpo marcado pelo signo do déficit, mesmo que pela vertente do excesso, ao escapar ao padrão considerado normal. Por isso mesmo, é um corpo a ser docilizado, domado, domesticado, silenciado, ao se endereçar, sem intermediários, ao saber científico e ao seu produto: o medicamento. Eliminada a dimensão do impossível (sem barras), nesse discurso demonstrado pelas setas que indicam a conexão direta, o corpo da criança se torna o objeto da ação do saber científico, sem as mediações necessárias que poderiam manter a disjunção entre a verdade e a produção presente nos outros discursos.

3 O Corpo Da Criança No Discurso Analítico

Qual o lugar que o corpo da criança assume no discurso analítico?

Para Cristina Drummond (2012), o conceito de objeto a construído por Lacan fornece importantes elementos para tratar a relação da criança com o corpo.

No texto “Nota sobre a criança”, de Lacan (1969/2003), podemos isolar as duas posições da criança na estrutura familiar: como sintoma do par parental e como objeto do fantasma da mãe. Nessa segunda vertente, o autor afirma que a criança se torna o objeto da mãe e não mais tem outra função senão a de revelar a verdade desse objeto (Lacan, 1969/2003, p. 369). Trata-se, afirma Lacadée (1996), de uma situação em que a criança é tomada no fantasma da mãe de tal maneira que vem realizar a presença desse objeto a em seu fantasma. A criança satura esse modo de falta, dando-lhe corpo ou oferecendo seu corpo como objeto condensador de gozo da mãe. Ela vem saturar a falta da mãe, condensando sobre seu ser a verdade desse objeto.

Ao comentar o texto “Alocução sobre as psicoses da criança”, de Lacan (1967/2003), Drummond (2012) isola duas consequências dessa teorização da criança como objeto a para sua mãe. A primeira delas diz respeito ao questionamento do mito de completude presente na teorização dos pós-freudianos sobre a relação da criança com a mãe. Extrai, daí, uma orientação ética ao tratamento analítico de crianças: “opor a que seja o corpo da criança que corresponda ao objeto a” (Lacan, 1967/2003, p. 366). Trata-se, portanto, de impedir que a criança seja fixada na fantasia materna. A segunda consequência situa o achado clínico de Winnicott, afirmando que o ponto central dessa formulação “não é que o objeto transicional preserve a autonomia da criança, mas que a criança sirva ou não de objeto transicional para sua mãe” (Lacan, 1967/2003, p. 366).

Ainda de acordo com Drummond (2012), há, em muitos dos sintomas das crianças, na atualidade, a impossibilidade de fazer a operação de separação desse lugar de objeto que ela é para o outro, e essa impossibilidade retorna sobre o corpo da criança. Há, nelas, uma enorme dificuldade de interrogar sobre o desejo materno e fazer dessa interrogação um enigma. Além disso, encontramos nesses sintomas a dificuldade da criança para se separar do lugar de resto de um discurso do mestre ou de um gozo que a produziu.

A problemática que se coloca quando o sintoma se aloja no corpo é se o analista poderá constituir-se como um destinatário da fala do sujeito, dividindo-o, fazendo surgir sua demanda de saber, enfim, pondo em funcionamento o discurso do inconsciente.

Nesse sentido, a estrutura do discurso analítico ajuda a pensar a operação possível e esperada pelo analista:

Trata-se do lugar do analista que, ao se fazer de objeto, endereça-se à criança como um sujeito dividido e, ao manter seu saber abaixo da barra, permite a ela produzir seu próprio saber e se separar dos significantes-mestres que a capturavam. Nesse sentido, o efeito dessa operação seria a histericização do sujeito — demonstrada por Lacan por meio da lógica do discurso histérico — que pode encontrar nesse dispositivo um lugar de endereçamento para seu sofrimento. Ao poder endereçar-se ao campo do Outro, a partir de sua divisão, o sujeito pode supor o inconsciente e produzir um saber sobre esse real que toma seu corpo.

Em outro texto, “A criança objetalizada” (2007), Cristina Drummond ressalta que o discurso científico fez do corpo da criança uma mercadoria que pode ser usada e descartada pela ciência. Desalojá-la desse lugar e se opor que a ciência faça do corpo da criança um objeto comercializado, disciplinarizado e medicalizado é, portanto, uma orientação ética da psicanálise.

 


 

Referências
BERNARDINO, L. M. F.; MARIOTTO, R. M. M. “Detecção de riscos psíquicos em bebês de berçários de Centros Municipais de Educação Infantil de Curitiba”, In: CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 9. E ENCONTRO SUL BRASILEIRO DE PSICOPEDAGOGIA, 3., Curitiba, PUCPR, 26 a 29 de outubro de 2009.
DRUMMOND, C. “A criança objetalizada”, Almanaque on-line, Revista Eletrônica do IPSM-MG, n. 1, jul./dez., 2007.
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1 O protocolo IRDI foi desenvolvido pelo Grupo Nacional de Pesquisa sob a Chancela do Ministério da Saúde e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), no período entre 2001 e 2008.

Andrea Eulálio De Paula Ferreira, Margaret Pires Do Couto E Tereza Cristina Côrtes Facury
Andrea Eulálio de Paula Ferreira – Psicanalista, mestranda em Estudos Psicanalíticos (UFMG). E-mail: andrea.eulalio@hotmail.com. Margaret Pires do Couto – Psicanalista, doutora em Educação pela Faculdade de Educação da UFMG, professora do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva. E-mail: mpcouto@uol.com.br. Tereza Cristina Côrtes Facury – Psicanalista, mestra em Estudos Psicanalíticos pela UFMG. E-mail: terezafacury@gmail.com



A Exceção Que Depõe A Regra

BERNARDO MICHERIF CARNEIRO

 

Atualmente, nas instituições públicas, os analistas têm assumido não só funções clínicas ou técnicas, mas, em escala ascendente, a formulação e implantação de políticas. Se a psicanálise estabelece sua prática pelo modo como aborda o caso excepcional, esse movimento, contudo, leva a um questionamento inevitável: como pensar a exceção na abordagem da lógica de funcionamento de uma instituição? Isso exige não só um empenho na formação clínica, mas uma dedicação aos assuntos institucionais. É a isso que este texto se propõe.

Para investigar esse assunto, Giorgio Agamben é aqui eleito como um autor que reflete sobre as questões políticas da época atual, lançando luz sobre o pensamento de outros autores como Carl Schmitt e Michel Foucault.

Carl Schmitt introduz o que ele entende ser o cerne da ordem política: “A exceção é mais interessante do que o caso normal. O que é normal nada prova, a exceção comprova tudo… quando se quer estudar corretamente o caso geral, somente se precisa observar uma real exceção” (SCHMITT, 1922/2006, p. 15). Agamben faz dessa concepção de Schmitt um princípio que norteia seu pensamento.

Para justificar sua investigação, Agamben parte de uma constatação de Schmitt sobre a ausência de uma teoria do estado de exceção no direito público. Mais do que uma ausência, Agamben aponta para uma recusa do direito em reconhecer uma esfera da ação humana em si extrajurídica, o que confirma a premissa de que, se a lei tem lacunas, o direito não as admite.

Mas, se, por um lado, o vazio jurídico do estado de exceção se mostra impensável pelo direito, por outro lado, esclarecer a relação do direito com o estado de exceção se reveste de uma relevância estratégica decisiva.

Visando a ultrapassar essa barreira, Agamben eleva uma frase de Schmitt à dignidade de matema: “Soberano é quem decide sobre o estado de exceção”. Matema que articula três elementos indissociáveis: soberania, decisão e estado de exceção.

Agamben formula o paradoxo da soberania na mesma linha em que Lacan formaliza o pai primevo de “Totem e tabu”, em sua lógica da sexuação, ou seja: “Eu, o soberano, que estou fora da lei, declaro que não há um fora da lei” (AGAMBEN, 2002, p. 23).

O soberano é aquele que fixa os limites de uma ordem jurídica e territorial desde que não se inclua nela. Essa topologia introduz, na interseção entre política e direito, no nexo entre localização e ordenamento, uma zona ilocalizável de exceção. O ordenamento do espaço não se dá pela fixação de seus limites e a expulsão da exceção, mas pela captura do fora, da exceção, incluída no ordenamento sem pertencer a ele.

Agamben enfatiza o fato de que o estado de exceção atual não é um legado da tradição absolutista ou dos regimes ditatoriais, mas uma consequência da democracia-revolucionária.

A Revolução Francesa conduziu a um modelo de Estado que vê sua soberania reduzida ao poder do carimbo. O Estado de Direito, anônimo e impessoal, declara-se o guardião da Constituição. O sonho de uma burocracia previsível e formada juridicamente realiza-se: um estado que administra, mas não governa. Miller ratifica: “Na maior parte do tempo, o que se decide num governo? O preço do bilhete do metrô. Administra-se. Não é preciso política para isso” (MILLER, 1997/2005, p. 213).

Tudo que não é legalmente reconhecido é suprimido, como um elemento impuro. Com a eliminação do problema da exceção, a unidade do Estado democrático se sustenta sob o desconhecimento do que o funda como potência política. Diante de uma real exceção, ergue-se o lema: “Aqui termina o Estado de Direito”.

Contudo, Miller extrai desse modelo político sua lição: “Estabeleçam um regime administrativo puro e vocês verão o retorno do Mestre, de um verdadeiro Mestre. É de fato perigoso procurar apagar a soberania pela administração” (MILLER, 1997/2005, p. 211). Quanto mais a ordem jurídica pretende homogeneizar-se, forcluindo a exceção, mais ela propicia que a decisão soberana ressurja de fora, como um elemento autônomo e sem legitimidade.

A partir do momento em que a regra se pretende sem exceção, o tempo não tarda em fazer surgir justamente a exceção, esmagando a ordem vigente entre os dedos. A decisão ressurge sem nenhuma roupagem jurídica, e o soberano se eleva como uma lei viva. Baseado nesse cenário, Agamben confere valor axiomático à frase de Walter Benjamin: “O estado de exceção tornou-se a regra”.

Todavia, tornar o estado de exceção um paradigma de governo marca uma ruptura entre política e direito. O soberano confirma que, por estrutura lógica, não precisa do direito para fundar o direito. Por isso, Agamben se esforça em estabelecer uma nova topologia da exceção no universo jurídico. Em uma época em que o estado de exceção se configura como técnica de governo, trata-se de constatar a inevitabilidade estrutural da exceção.

O estado de exceção, na medida em que suspende a ordem vigente, ergue-se como a figura que preserva o poder do Estado em detrimento do direito, fazendo subsistir uma ordem pública sem validade jurídica. Na atualidade, a ação de Estado é trazida para fora do direito, e os conceitos jurídicos se indeterminam, sendo substituídos por termos como “bom costume”, “iniciativa imperiosa”, “motivo importante”, “segurança e ordem pública”, “estado de perigo”, “caso de necessidade”, os quais não se referem a uma lei, mas a um acontecimento. Na contemporaneidade, a segurança predomina como técnica de governo. Toda medida de Estado se justifica em nome de uma situação de perigo à ordem pública.

É impossível definir, com certeza, quando se está diante de um verdadeiro estado de emergência, mas é justamente essa incerteza que se torna o fundamento para o exercício da soberania estatal. O Estado subtrai um caso particular da aplicação da lei e decide sobre algo que se apresenta como indecidível de fato e de direito.

O Poder Executivo se incumbe de remediar uma lacuna do direito com uma ação da qual não há garantia de que promova a salvaguarda da Constituição. O estado de exceção se desenha como a tentativa de suturar a fratura existente entre o estabelecimento da lei e a possibilidade de sua aplicação prática. Ele é o instituto que distingue lei e decisão, no qual “o mínimo de vigência formal coincide com o máximo de aplicação real e vice-versa” (AGAMBEN, 2004, p. 58).

Diante da indecidibilidade dos problemas jurídicos, a decisão soberana se revela a matriz anômica sobre a qual a ordem jurídica repousa. Para Agamben, o estado de exceção se expõe como o fundamento secreto de toda lei.

Para esclarecer esse fato, o autor retorna à noção de Estado moderno. Agamben formaliza a estrutura do Estado a partir da articulação entre três elementos: uma localização delimitada, em que funciona um ordenamento estabelecido, a partir do qual se define o modo de inscrição da vida no território. Ou seja, o nascimento de uma pessoa em uma determinada nação o constitui como cidadão perante a Constituição nacional.

Contudo, a dinâmica do poder, atualmente, implica um pressuposto: o corpo biológico e a saúde da nação se revelam o fator politicamente decisivo. O Estado territorial é transposto para um Estado população, no qual a vida humana se tornou a aposta em jogo nas estratégias políticas do exercício do poder.

Miller confirma: “O gozo se tornou um fator da política” (MILLER, 2004, p. 19). Vive-se uma época de nacionalização dos corpos, em que organismos são propriedade estatal. O Estado não mais se ancora no laço social, na exterioridade das representações coletivas em relação aos indivíduos, mas na rotina produzida pela organização dos corpos.

Assim, como o poder público assume para si os cuidados com o corpo biológico dos cidadãos, a política se torna, então, biopolítica. Mas o que determina a biopolítica contemporânea não é o fato de a vida ter-se tornado objeto dos cálculos do poder do Estado, algo que já prevalecia, mas a constatação de que o corpo biológico, até então um elemento exterior ao ordenamento estatal, torna-se o espaço político por excelência.

Nesse sentido, a ruptura com o Estado territorial não se efetivou na interseção entre política e direito, mas no modo de inscrição da vida na ordem estatal. O nexo entre nascimento e nação, com que se pretendia definir a noção de cidadania no modelo tradicional de Estado, perde seu automatismo. A cidadania converte-se em algo do qual era preciso provar-se digno, produzindo como resto uma vida humana que cessa de ter valor jurídico. A essa manifestação da vida, que não se inscreve no direito dos homens, Agamben denomina “vida nua”, uma espécie de dejeto social.

Desnuda-se uma vida humana que se tornou politizada por meio de seu abandono a um poder incondicionado. Por isso, ele aponta a implicação da vida nua na cena política como o núcleo originário do poder soberano. A contribuição da decisão soberana à cena política é a produção do corpo biopolítico como a figura humana a ser capturada fora de qualquer jurisdição.

Seguindo essa trilha, Agamben traz à luz um modo de captura coletiva do poder soberano, ao qual denomina “bando”. Para ele, o que está em bando é abandonado ao poder de quem o baniu. Essa junção entre a insígnia da soberania e o banimento da comunidade é o suporte da configuração do espaço público em que hoje se vive.

Nesse sentido, Agamben evidencia o campo de concentração como a matriz oculta da inscrição da vida no espaço público, o paradigma biopolítico do exercício de um poder indeterminado e, portanto, fora dos limites da lei. O campo de concentração surge como o protótipo da estratégia estatal para traçar um limiar além do qual a vida cessa de ter valor jurídico. Com isso, Agamben reatualiza o matema da soberania, de Schmitt, propondo: “Na biopolítica moderna, soberano é aquele que decide sobre o valor ou sobre o desvalor da vida enquanto tal” (AGAMBEN, 2002, p. 149)

O Estado instaura uma espécie de epidemiologia social, na qual autoriza a eliminação da vida indigna de ser vivida, o que corresponde ao aniquilamento de categorias de indivíduos julgados como não integráveis ao corpo da nação. A tarefa política de nosso tempo consiste em suturar a fratura biopolítica fundamental que divide o povo. De um lado, o corpo político integral, uma inclusão que se espera sem restos. Do outro, um amontoado de corpos carentes, uma exclusão que se pretende sem retorno.

A esperança que anima o sentimento nacional é que a separação da vida nua possa garantir a unidade do povo. Mas a sobrevivência dos excluídos constitui um elemento embaraçoso para a comunidade. A sociedade reclama ao Estado por controle, para que este elimine os indivíduos que ameaçam a integridade da nação. Por isso, o paradigma da política estatal se restringe à polícia, que se torna o mecanismo efetivo de tutela da vida dos cidadãos e luta contra os inimigos da nação.

Apesar do tom apocalíptico, Agamben mantém sua expectativa por “uma renovação categorial atualmente inaudível, em vista de uma política em que a vida nua não seja mais separada e excepcionada no ordenamento estatal” (AGAMBEN, 2004, p. 141).

Agamben adverte que ainda há um lugar viável para o direito após a deposição de sua articulação com a soberania. Segundo ele, a política viveu um longo período de atrofia na sua relação com o direito, restringindo-se ao seu papel de validação formal da previsão legal. Porém, ele conclui que a ação verdadeiramente política é aquela que corta o laço que une o direito à soberania.

Não se trata da anulação do direito, mas da desativação do dispositivo jurídico, que, por meio do estado de exceção, não cessa de tentar capturar a vida humana em seus confins. Milner enfatiza: “O silêncio da lei é o que a faz funcionar” (MILLER; MILNER, 2006, p. 7). Trata-se de expor o direito em separação absoluta da vida, como mera vigência formal, e a vida em sua condição originária de abandono fora dos limites da lei. Abrir esse espaço entre o direito e a vida é o que torna possível o surgimento de uma ação política.

Por isso, Agamben se remete à figura de um direito não praticado, apenas estudado. Trata-se não de negá-lo, mas de introduzi-lo em uma existência indeterminada. O direito reduzido à sua dimensão de semblante e que, somente a partir da ação política, poderia encontrar um valor de uso que não o precede, mas, ao contrário, surge a posteriori, como modo de afirmação de sua existência. Um direito que assume a vida como um elemento impossível de ser inscrito na ordem jurídica.

 

 


Referências
AGAMBEN, G. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
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MILLER, J.-A; MILNER, J.-C. Você quer mesmo ser avaliado?: entrevistas sobre uma máquina de impostura. Barueri, SP: Manole, 2006.
SCHMITT, C. (1922). “Teologia política I: quatro capítulos sobre a doutrina da soberania”, In: ______. Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 1-60.
(1) Texto apresentado no Núcleo de Psicanálise e Direito do IPSM-MG, em 17 de abril de 2013.

Bernardo Micherif Carneiro
Psicanalista, mestre em Estudos Psicanalíticos (UFMG). E-mail: bernardomcarneiro@yahoo.com.br.



Apresentação De Pacientes: Dispositivo E Discursos

CRISTIANA MIRANDA RAMOS FERREIRA

 

Na tese Apresentação de pacientes: dispositivo e discursos, investiga-se a prática de eminentes mestres da apresentação: Charcot, Clérambault e Lacan. A partir da análise das diferenças e particularidades de cada perspectiva, a autora encontra elementos para responder à questão que se lhe apresentava como um paradoxo: “Como um dispositivo que é considerado pela psicanálise um importante instrumento de intervenção clínica, capaz de produzir importantes efeitos terapêuticos em um sujeito psicótico, pode ser, ao mesmo tempo, concebido como um instrumento de poder, no qual o paciente é publicamente exposto, sem dele retirar qualquer benefício?”

Sob a influência das concepções teóricas de Foucault, localiza-se a origem de uma posição fortemente contrária à prática da apresentação, considerada por ele como instrumento máximo de abuso do poder médico. Para sustentar esse ponto de vista, Foucault edificou um mito: elegeu Charcot, um neurologista, como a figura mais emblemática da prática psiquiátrica.

Por meio da análise das apresentações de Charcot, pode-se destacar a diferença entre a apresentação de pacientes realizada sob a perspectiva da tradição médica, centrada no corpo, e a desenvolvida conforme a tradição psiquiátrica, com foco na fala do paciente. Essa diferenciação permitiu destacar dois aspectos fundamentais para se construir uma posição crítica sobre o tema: 1. entender as consequências que essa distorção no status quo de Charcot acarretou sobre o imaginário negativo construído em torno da apresentação; 2. discernir que o termo “apresentação de pacientes” designa, de forma genérica, uma multiplicidade de práticas que se distinguem tanto em seu objeto quanto em seu objetivo, o que faz variarem tanto suas estratégias de intervenção, como os seus efeitos e resultados.

Considerar a diversidade de práticas conduziu a uma disjunção entre o que seria o “dispositivo” da apresentação e o “discurso” que o anima. Tomar os quatro discursos como instrumento para essa análise permitiu definir como dispositivo o seu aspecto estruturante, estático, que congrega três elementos distintos: paciente, público e entrevistador; e o discurso, seu aspecto dinâmico, que orienta a articulação entre os três elementos. Investigar a apresentação de pacientes, sob essa perspectiva, permitiu diferenciar o que é efeito do dispositivo propriamente dito, ponto comum em todas as apresentações, e o que é próprio a cada discurso, cujo efeito irá variar em função daquilo que, em cada um deles, opera como verdade.

Dessa forma, a pesquisa sobre a prática da apresentação de pacientes na psiquiatria, desde seu surgimento até a atualidade, possibilitou perceber como esse dispositivo foi sendo animado pelos diferentes discursos ao longo da história, tendo como pano de fundo a variação na articulação entre suas dimensões clínica e de ensino, assim como sua apropriação e uso pela psicanálise. Para proceder a essa análise, a prática da apresentação foi agrupada sob três dimensões diferentes, estabelecidas em função da importância dada à fala do paciente: 1) psiquiatria clássica, cujo caráter investigativo encontrava na fala do paciente o seu principal meio de investigação diagnóstica, assim como de constituição do saber psiquiátrico; 2) psiquiatria que se convencionou chamar de “biologicista”, caracterizada pelo abandono do método clínico de observação, em favor do pragmatismo terapêutico, cujo interesse, focalizado nos efeitos das intervenções no corpo, levou a um crescente desinteresse pela fala do paciente e pela precisão diagnóstica; 3) psicanálise, mais precisamente a abordagem lacaniana, caracterizada pela aposta radical na palavra como via para aceder ao sujeito do inconsciente.

Cada uma dessas perspectivas seria orientada prioritariamente por um dos discursos, o que, consequentemente, incide sobre sua prática de apresentação. Embora, em uma apresentação, o apresentador possa recorrer a mais de um dos discursos, toma-se como prevalente aquele sob a luz do qual os impasses se decidem.

Assim, na psiquiatria clássica, orientada pelo Discurso do Mestre, a apresentação de pacientes alcançou lugar de destaque enquanto dispositivo clínico, considerando tanto seus efeitos terapêuticos, quanto de esclarecimento diagnóstico, assim como uma função de ensino e pesquisa da psiquiatria. Já a psiquiatria biologicista, sustentada no Discurso Universitário, opera a partir de um saber prévio, o qual se aplica ao paciente. Nessa perspectiva, há um empobrecimento da clínica, que vai resultar em um empobrecimento da prática de apresentação, pois o desinteresse pela investigação e pela particularidade do caso implica fazer calar o paciente, uma vez que tudo que é subjetivo é visto como perturbador ao modelo da universalização. Essa é a forma de apresentação que faz jus às críticas de Foucault, na medida em que ela perde seu caráter clínico investigativo, para reduzir-se a um aparelho de exibição de fenômenos e sintomas. Quanto à psicanálise, orientada pelo Discurso do Analista, ao tomar o sujeito no lugar do Outro, possibilita-lhe bordejar, circunscrever o que lhe sucede, de forma a afastar o impossível de suportar a partir de um tratamento pela palavra (LEGUIL, 2004). Consideraram-se, ainda, os movimentos da reforma psiquiátrica, que, orientados pelo Discurso Histérico, condenaram a apresentação de pacientes, classificando-a como um desrespeito aos direitos do cidadão/paciente.

Analisar a apresentação de pacientes sob esse ponto de vista levou a um redimensionamento da questão em torno dessa prática. Afinal, não se trata de discutir se este é um dispositivo clínico ou didático, pois essas duas dimensões podem-se conjugar de diferentes maneiras. O que essa pesquisa permitiu ressaltar é que se trata essencialmente de um dispositivo de transmissão, na medida em que, para além de qualquer intenção, seja ela clínica, seja de ensino, o que o público pode testemunhar é uma operação discursiva que implica um certo fazer do entrevistador com o real colocado em cena pelo psicótico. E, ainda mais, como o dispositivo da apresentação favorece a presentificação do real de gozo, gozo que receberá de cada discurso um tratamento diferente, visto que cada discurso implica precisamente uma forma própria de operar com o real, a apresentação de pacientes, em última instância, revela os recursos e limites de cada discurso para lidar com o real em jogo na loucura.

 


 

Referências
LEGUIL, F. “La experiencia enigmática de la psicosis en las presentaciones clínicas”, L-ment@l – Principios para una formación posible en la presentación de enfermos, Bogotá: Edición, 2004, p. 44-47.

Cristiana Miranda Ramos Ferreira
Psicanalista, doutora em Estudos Psicanalíticos (UFMG), correspondente da EBP – Seção Minas, professora na Faculdade de Psicologia – FEAD. E-mail: cris.ramos.bhz@gmail.com



O Objeto Autístico E Sua Função No Tratamento Psicanalítico Do Autismo

PAULA RAMOS PIMENTA

 

 

Qual o lugar dos objetos para o autista? Por que uma aparentemente banal manipulação de objetos pode trazer um efeito apaziguador para a crise autística?

Tais questões, essenciais por surgirem da experiência, guiam minha busca de formalização nesta tese. O estudo sobre as diferentes concepções do autismo e suas decorrentes propostas de tratamento, que empreendi no mestrado, promoveu a fagulha inicial deste trabalho ao chegar à solução encontrada por Temple Grandin por meio de um objeto por ela construído. Grandin, mundialmente conhecida por ser, concomitantemente, autista e Ph. D. em psicologia animal, defende publicamente a importância que tem sua “máquina de apertar”[2] para ajudá-la a manter-se mais sociável e afastada de intensas crises.

Da manipulação de objetos à construção de um especial, como recurso protetor contra uma angústia aniquiladora, vê-se que os objetos são alçados a um lugar insigne pelo autista. O estudo de seus atributos, bem como de suas funções, implica em reconhecê-los como essenciais para a orientação de tratamento dos autistas. A tese aqui defendida segue nesse caminho, acrescendo-o pela concepção de objeto proposta pela psicanálise lacaniana. O objeto passa a ter um lugar basilar para a construção do corpo, ou para supri-la quando ela não ocorreu, como sucede nos casos de autismo.

Este trabalho conduz-se por um percurso teórico que parte da noção de objeto como promotor do alheamento autista do mundo e encontra a aparente formulação paradoxal sobre a função essencial desses objetos como apoio para a interação social do autista.

A metodologia utilizada é o Estudo de Caso, sendo o campo da pesquisa composto pela clínica da autora, que atende crianças e adolescentes autistas desde 1996, e por casos da literatura psicanalítica e outras. Uma especificidade que traz riqueza à investigação psicanalítica no âmbito da universidade foi aqui posta em prática: os casos são convocados para problematizar uma questão, a ser respondida teoricamente. Em poucas passagens da tese eles se prestam a ilustrar uma elaboração teórica anteriormente proposta.

Uma observação suplementar refere-se ao termo “criança”, preferido como opção de referência ao autista. Sabe-se que há autistas adolescentes e adultos, no entanto o termo criança, generalizável no texto para todos eles, não se mostra inadequado, por se supor que o tratamento é iniciado na infância, uma vez que as manifestações sintomáticas do autismo surgem até os três anos de idade.

O tema do autismo tem estado atualmente em pauta, no Brasil e no mundo. Associações de pais de autistas procuram obter das autoridades envolvidas um retorno científico e político sobre as dificuldades de seus filhos. Coagem os cientistas a se definirem por tratamentos mais efetivos para o autismo, apoiando-os, por meio de fundações de pesquisas, a investigarem sobre suas causas. Às políticas públicas educativas e de saúde, requisitam maiores recursos para a escolarização e o tratamento dos autistas.

Uma das discussões mais áridas promovidas por essa mobilização recaiu sobre o tratamento. A intervenção comportamental, por meio dos programas ABA (Applied Behavior Analysis) e TEACCH (Treatment and Education of Autistic and Related Communication Handicapped Children), tomou a cena ao promover a aprendizagem de habilidades sociais e funcionais pelo autista, bem como orientar os pais quanto a suas atitudes frente aos filhos. A despeito da postura mecânica adquirida pelas crianças, que aprendem mas verdadeiramente não assimilam o fundamento do que lhes foi ensinado, os psiquiatras, no Brasil, são quase unânimes em indicar o tratamento comportamental para os autistas.

Na França, chegou-se à proposição legal de se interditar os psicanalistas de tratarem autistas, sob a alegação de se reconhecerem como eficazes apenas as intervenções educativas. Enquanto no Brasil apenas alguns médicos repudiam a proposta de trabalho psicanalítico com os autistas, na França esse desprezo não se mostra suficiente, uma vez que os psicanalistas têm forte presença nos aparatos públicos de tratamento. A responsabilidade social do governo sustenta tais instituições, encaminhando-lhes as crianças, restando aos pais que optarem pelas intervenções educativas seu custeio com recursos próprios. Subentende-se daí o radicalismo da requisição francesa.

Em reação, os psicanalistas de orientação lacaniana, que trazem vasta bagagem de experiência no trabalho com crianças autistas e psicóticas nessas e outras instituições confederadas com a Associação Mundial de Psicanálise[3], abriram-se à sociedade para mostrar-lhe como a psicanálise trata os autistas. Um site foi lançado[4], em fevereiro de 2012, e os psicanalistas foram para a mídia defender sua prática, salientando sua disponibilidade ao diálogo, sobretudo com os pais de autistas.

Como contraponto ao tratamento comportamental, cuja metodologia estabelece programas de ensino com base no reforçamento das respostas corretas e na extinção das incorretas, surgiram o método Floortime e o programa Son-Rise. Ambos trazem a proposta, compartilhada pela psicanálise, de aceitar o modo particular do autista se apresentar. Respeitam o tempo da criança ao definirem que deve partir dela a disposição ao contato. Ao terapeuta cabe promover um ambiente que lhe seja facilitador e aproveitar as dicas dadas pela criança ­— como um olhar, por exemplo — para seguir com a interação mínima estabelecida.

O tratamento psicanalítico apresenta, em termos gerais, conjunção com essa proposta, ao mesmo tempo que dela se diferencia. Sua leitura original do autismo, com base nos conceitos de Outro, corpo e gozo, encaminham o tratamento por meandros díspares.

Esta tese surge nesse contexto, posicionando-se contrária ao puro adestramento do autista, que desconsidera seu lugar de sujeito, e se propondo a aclarar a orientação psicanalítica de tratamento, o que a faz diferenciar-se, contudo, de suas congêneres psicodinâmicas.

A composição do trabalho edificou-se sobre três eixos de leitura, expostos nos três capítulos iniciais. A organização lógica dos eixos tomou como estrutura o processo da construção lacaniana do Estádio do Espelho. Os mesmos pontos dessa progressão teórica são reproduzidos na problemática autista.

Sendo assim, o tema do objeto introduz diretamente a questão da tese e a interpela. Em sua elaboração imaginária, Lacan afirma que, no mesmo golpe especular em que o Eu é constituído, compõem-se também os objetos-entidades do mundo externo. Ainda em outros termos, inicialmente, persegue a localização do que veio posteriormente a chamar de objeto a, não “especularizável”, que bordeja e recobre o corpo. Este passa a ser, portanto, o tema do capítulo seguinte. A constituição do corpo decorre da borda instituída pelo objeto a. No autismo, por não ter havido o arremate definidor do corpo, promovido pela extração do objeto, a constituição corporal evidencia-se problemática.

Mais à frente em sua teorização, Lacan faz compor com o imaginário o simbólico. A dimensão da linguagem surge posteriormente em sua elaboração, mas com uma função original de revestir simbolicamente o corpo, por meio dos significantes-mestres do Outro, fundamentando uma alienação simbólica que norteia a imaginária. O capítulo dedicado à linguagem vem demonstrar o embaraço radical do autista com a posição de enunciação, que exige a alienação do sujeito a esses significantes-mestres.

Por fim, fecha-se o ciclo com o quarto capítulo, que estabelece os rumos para o tratamento do autista, remontando novamente aos objetos como seu eixo condutor. Objetos promotores de uma borda postiça que delimita precariamente um corpo para o autista.

Desse modo, o capítulo 1 se conduz pelas características dos objetos autísticos. Define, inicialmente, a categoria nosológica do autismo, identificando a dificuldade de interação social como um de seus pilares diagnósticos. Em oposição às pessoas, demarca a relação com os objetos como sendo de especial importância para essas crianças. A última seção do capítulo parte da nociva função de alheamento dos objetos autísticos e chega à proposta de uma teoria da gradação, que implica a concepção de uma dinâmica pulsional propiciada por esses objetos.

O capítulo 2 visa ao uso dos objetos autísticos para simular a operação lacaniana de extração do objeto pulsional, da qual decorre uma localização do gozo. Para que se estabeleça um corpo, é preciso que as zonas erógenas sejam delimitadas. No autismo, as manifestações desregradas da pulsão pressupõem uma ausência da consistência corporal. Para examinar tal aspecto, percorre-se o processo da constituição do corpo, em Freud e em Lacan. Em seguida, erigem-se os índices dessa ausência no autismo. A desregulação pulsional do autista é demonstrada fenomenologicamente e embasada pela ausência de extração do objeto.

O capítulo 3 empenha-se no tratamento da linguagem no autismo. Traça, preliminarmente, as indicações de Lacan, as quais acentuam essa relação. A maneira como os autistas usam a linguagem se subdivide, essencialmente, em duas: aquela do privilégio dado ao som, à materialidade do significante, e uma outra que contempla o sentido, mas de um modo funcional, sem a prosódia típica da fala. Um terceiro tipo assumido pela linguagem do autista foge a seus costumes: em situações críticas, adota uma posição de enunciação, com o uso correto do pronome “eu”, pronunciando frases de caráter imperativo. Essa fala tem o mérito de pôr à prova a tese comportamentalista do deficit cognitivo, ao demonstrar a capacidade do autista de elaborar corretamente sua verbalização.

Para instituir a possibilidade de comunicação funcional que encerra um sentido, vê-se a conveniência do dispositivo linguístico do signo. A seção consagrada à singularidade da linguagem do autista contempla esse propósito, bem como esclarece a sua dificuldade em assumir uma posição de enunciação. Um cotejamento entre autismo e esquizofrenia arremata esse capítulo, em razão de suas semelhanças conjugadas com suas particularidades.

O quarto e último capítulo retoma a pergunta da tese sobre o lugar dos objetos na clínica do autismo, formalizando algumas orientações. Com base na identificação anterior de um movimento espontâneo do autista que procura instaurar imaginariamente a perda que não ocorreu no nível simbólico, ele contempla esse arremedo de extração do objeto acentuando as indicações apoiadas no âmbito da instância da letra. Outrossim, a evidenciação da função vital fundamentada pelos objetos autísticos complexos salienta o lugar do duplo, ocupado por esses objetos e eventualmente pelo analista. Finalmente, oficializa-se o caráter fundamental de borda do corpo que localiza o gozo, resguardado pelos objetos, circunscrevendo sua essencialidade para a clínica do autismo.

A conclusão retoma o percurso teórico da tese e relança perguntas que tocam de perto a prática clínica. A indicação, para essas crianças, de um trabalho institucional, fica premente.

Cabe justificar, desde já, o uso do termo “sujeito” para essas crianças. Por ser falada pelo Outro, mesmo que não lhe responda à altura, o termo já se mostra apropriado. Trata-se do sujeito como efeito de remissão de um significante a um outro. O fato de o autista aceder aos significantes do Outro, em momentos pontuais, indica que há um sujeito que pode ser, inclusive, tomado numa enunciação. Ademais, a presença momentânea de um olhar, habitualmente ausente, leva a se considerar sobre a existência de um efeito-sujeito, sobre o qual recai a aposta do analista.

 

(1) Tese apresentada à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, em 28 de novembro de 2012. A banca foi formada pelos psicanalistas e profs. Drs. Jésus Santiago (orientador), Ana Lydia Santiago (coorientadora), Ana Beatriz Freire (UFRJ), Angélica Bastos (UFRJ), Ram Mandil (UFMG) e Ângela Vorcaro (UFMG).
(2) Squeeze machine, no original.
(3) O RI3, Réseau International d’Institutions Infantiles.
(4) O site www.autismos.es traz seu conteúdo completo em quatro línguas — espanhol, francês, inglês e italiano —, apresentando-se com uma linguagem clara e desprovida de termos técnicos, com o intuito de se fazer entender pelos leitores não iniciados na psicanálise, sobretudo os pais de autistas.



Elaborações Psicanalíticas Sobre A Melancolia E A Mania

ADAUTO CLEMENTE

 

Em seus primeiros trabalhos, Freud (1895/1975) comparou a melancolia a uma “anestesia psíquica”, decorrente de diminuição da produção ou de evasão da energia somática sexual, como uma “hemorragia interna”, diminuindo a reserva disponível de libido. Ou seja, a melancolia estaria ligada à perda de libido.

O avanço posterior da teoria freudiana passou a ter como foco as “psiconeuroses”, e o estudo do afeto depressivo só foi retomado por Freud em “Luto e melancolia” (1917/1975), com uma elaboração tópica sobre tais estados. Ambos constituiriam respostas à perda do objeto, mas, na melancolia, observava-se uma perturbação da estima de si, habitualmente ausente no luto. A perda desencadeante parecia ter valor apenas ocasional e poderia ter natureza diversa: um objeto amado, perdas de natureza mais ideal e, por fim, situações em que não se consegue distinguir claramente o que foi perdido, o que estaria na base do mecanismo da melancolia. Encontram-se, nesse texto, três aspectos que Freud considerou essenciais na melancolia: a perda do objeto, o retorno da libido ao eu e a ambivalência.

O trabalho do luto supõe o desligamento gradual da libido investida no objeto perdido, permitindo que ela seja deslocada para outros objetos. Na melancolia, tal ação psíquica não se efetiva. A libido não é transferida a outros objetos, mas se volta para o eu, identificado com o objeto perdido. A perda do objeto se converte em perda do eu e a hostilidade contra o objeto perdido passa a ser dirigida contra o próprio eu, sob a forma de recriminações e autoagressividade. O suicídio do melancólico seria uma tentativa de atingir nele mesmo esse objeto perdido com o qual estava narcisicamente identificado.

Freud atribuiu a origem da tendência melancólica a perturbações na relação com os objetos que remontam primórdios do processo de constituição do eu, daí sua localização como uma “neurose narcísica”. O momento constitutivo da configuração do objeto ocorre conjunta e concomitantemente à constituição do eu. Esse é o momento crucial que também é destacado na posição depressiva concebida por Melanie Klein e no estádio do espelho explorado por Lacan.

A posição depressiva representa o momento em que o bebê deixa de se relacionar somente com o seio, as mãos, a face, os olhos da mãe, como objetos separados (parciais), e reconhece a mãe como um objeto total, com seus aspectos bons e maus. Concomitantemente à introjeção de objetos cada vez mais totais, o ego também se torna mais integrado, menos dividido nos seus componentes bons e maus, e o bebê se defronta com a própria ambivalência. A experiência da depressão se manifesta no temor de que os próprios impulsos tenham destruído o objeto amado, mobilizando, no bebê, a vivência da culpa, ou seja, a necessidade de reparar o objeto de suas pulsões e fantasias destruidoras (SEGAL, 1975).

Em circunstâncias favoráveis, as repetidas experiências de luto e reparação, de perda e recuperação, gradualmente, modificam a crença do bebê na onipotência de seus impulsos destrutivos. Nisso consistiria a elaboração da posição depressiva. Vivências posteriores de perda podem reativar essa experiência depressiva infantil. Se a posição depressiva foi alcançada, ou ao menos parcialmente elaborada, as dificuldades encontradas no desenvolvimento posterior do indivíduo não serão de natureza psicótica, mas neuróticas. Portanto, para Melanie Klein, o desenvolvimento do sentido de realidade psíquica é inseparável do sentido de realidade externa. Concepção semelhante pode ser encontrada na formulação de Lacan sobre o estádio do espelho.

Segundo Lacan (1949/1998a), a criança organiza e unifica as sensações do corpo fragmentado em uma totalidade por meio de uma imagem especular, em um processo de ancoragem que torna possível a constituição do “sentimento de si”. A criança busca sinais de confirmação de sua imagem unificada que lhe chegam pelo olhar, pela voz e pelos gestos maternos. Ao integrar-se nessa imagem unificada, porém, a criança também sofre uma alienação, pois essa imagem especular que a constitui lhe é exterior. Nesse processo, permanece um “resto”, que resiste a essa especularidade, uma falta que clama pelo preenchimento e que sustenta a condição de desejante do ser humano. O sujeito deseja o que lhe falta; não havendo falta, não há desejo (PERES, 2006).

A resposta a essa falta será distinta em função da presença ou não do significante fálico. Se ele é operante, frente ao vazio da falta, é feito um apelo à ordem significante. Assim, no luto neurótico, o trabalho significante repara a perda, e o objeto será inscrito na fantasia. Na melancolia, entretanto, devido ao elemento forclusivo, a resposta não se faz por um trabalho significante, e ocorre identificação com o objeto perdido. Freud considerava que a libido circula do eu aos objetos, podendo ser investida ou retirada dos mesmos. No entanto, existe uma resistência natural da libido em desligar-se, e algo da libido sempre resta no eu, sem representação (MATTOS, 2009). Assim é que Lacan descreve o “objeto a” como “a reserva derradeira e irredutível da libido” (LACAN, 2005, p. 121), ou como aquilo “que resta de irredutível na operação do advento do sujeito” (LACAN, 2005, p. 179). A identificação do melancólico a esse objeto “resto” da operação de constituição do sujeito aponta sua posição de objeto a, na sua vertente de resto inútil do simbólico (QUINET, 1999). Assim, Lacan deslocou as teorias sobre a relação de objeto para uma teoria sobre a falta de objeto.

A ambivalência foi outro aspecto da melancolia destacado por Freud, como resultado da emergência dos conflitos inconscientes de amor e ódio ao objeto. Para Abraham (1911/1970), a ambivalência do melancólico é determinada pelo desapontamento sofrido junto ao objeto na fase oral, que expõe o sujeito a efeitos destrutivos nas fases subsequentes: severidade, culpa e incansável necessidade — e seu irreparável fracasso — em reintegrar o objeto. Isso o levaria a um sadismo exacerbado e afastado da consciência, que retornaria nos sonhos, em atos sintomáticos, nas ideias de culpa ou em tendências masoquistas, o que explicaria a atitude passiva e o prazer que os melancólicos parecem obter no próprio sofrimento.

Em “O Eu e o Isso” (FREUD, 1923/1975), Freud apresenta novas concepções sobre a melancolia, à luz da teoria estrutural do funcionamento psíquico: ela estaria relacionada às exigências de um supereu extremamente enérgico, que ataca implacavelmente o eu. O supereu se converte, então, em ponto de confluência das tendências mortíferas, daí a máxima que “o supereu do melancólico é pura cultura de pulsão de morte”. O componente de culpabilidade decorreria das relações do eu com o ideal do eu: o eu assume culpas e aceita submeter-se a castigos, por ter introjetado e por estar identificado com o objeto sobre o qual recai a ira do supereu. O sentimento de culpabilidade não alcança tamanha dimensão nos neuróticos, porque eles apelariam a outros mecanismos para defender-se do sadismo do supereu, por exemplo, recorrendo ao Outro para regular o gozo ou à absorção do gozo pelo simbólico (PERES, 2003).

Em “Kant com Sade” (LACAN, 1962/1998b), Lacan descreve a “dor de existir em estado puro” do melancólico. A dor de existir é aquilo que retira do sujeito toda a ilusão, todo o sentido e todo o apego ao objeto. Contra seus golpes, a função do desejo se exerce e confere substância à existência. A dor de existir é uma realidade em todas as estruturas clínicas, mas se revela com tal extensão e intensidade no melancólico que a própria “realização da vida pode confundir-se com o anseio de pôr fim a ela”. Privado da função protetora do desejo, o sujeito melancólico é confrontado com a dor de existir em estado puro e pode escolher a morte como solução (SANTIAGO, 2009).

Em “Televisão”, Lacan (1974/2003) alinha a tristeza em uma perspectiva ética, definindo-a como uma covardia moral. Ao contrário do que faz supor o termo médico depressão, tal estado não pode ser reduzido à sua base no corpo e nem uniformizado quanto à simples gradação da causa e de seus efeitos. O termo depressão tem caráter pouco discriminativo em termos de diagnóstico. Diante de um estado depressivo, seria preciso delimitar uma covardia repressora, na qual o “não quero saber nada sobre isso” não seria incompatível com a admissão do inconsciente; de outra, a covardia forclusiva própria das psicoses.

Várias manifestações melancólicas tornam-se inteligíveis quando entendidas sob a perspectiva dos efeitos da foraclusão. Colette Soler (2010) propõe sua ordenação em dois grupos: os fenômenos de mortificação e o delírio de indignidade.

A entrada da linguagem implica uma subtração de vida, revelada na neurose pela castração, mutilação parcial do gozo que será compensada com o apelo aos objetos. Em outras palavras, o menos-de-gozo da castração condiciona a busca neurótica por objetos mais-de-gozo. Nas psicoses, a instância da perda se absolutiza, e a subjetivação posterior dessa perda primária define a diferença entre elas. Na melancolia, essa falta constitutiva é subjetivada como dor moral e adquire o sentido de culpa, assumida pelo sujeito como uma certeza não dialetizável, daí o delírio de indignidade. O melancólico crê não possuir nada daquilo que poderia dar valor à vida (amor, fortuna, força, coragem, etc.). Ao contrário do paranoico, que é fundamentalmente inocente e identifica o gozo no lugar do Outro ao qual dirige suas recriminações, o melancólico dirige acusações a si mesmo. A autodifamação seria uma versão própria do empuxo-à-mulher nos melancólicos, versão assoladora porque desvela um gozo masoquista que não encontra Outro com quem fazer um par. De modo que, quando o sujeito ainda espera um castigo externo, isso não é de todo desfavorável, pois essa expectativa ainda o enlaça a um Outro que seja capaz de expiar sua culpa (SOLER, 2010).

Lacan caracterizou a alucinação como fenômeno paradigmático de retorno do significante no real, típico das psicoses. Outros fenômenos podem ser entendidos pelo mesmo mecanismo, ou seja, o retorno no real também pode apresentar-se como perplexidade, anarquia da intencionalidade, desregulação dos ritmos vitais, alterações na vivência do tempo, fenômenos que são observados em todas as psicoses. Diferentemente de outras psicoses, tipicamente desencadeadas pelo encontro com Um-Pai (LACAN, 1958/1998, p. 584), a melancolia é frequentemente desencadeada por uma perda, que suscita tais experiências de mortificação, como a inibição psicomotora, a insônia e a anorexia. No melancólico, tais manifestações são diferentes de seus homólogos neuróticos, pois desvelam a perturbação vital produzida pela modificação libidinal, com retorno do vetor do desejo sobre o próprio sujeito (SOLER, 2010).

Freud reconheceu a tendência da melancolia em transformar-se em seu estado sintomático oposto, a mania. Os textos psicanalíticos não apresentam, sobre a mania, teorias tão elaboradas como para a melancolia. Comumente, as explicações analíticas da melancolia foram estendidas à mania, como uma antítese. A mania representaria um triunfo do eu sobre a perda do objeto, deixando libido livre para investir vorazmente em novos objetos.

Do ponto de vista estrutural, a alternância entre melancolia e mania foi entendida como uma liberação do eu subsequente à cruel supressão do eu pelo supereu (FREUD, 1927/1975). A elação maníaca será comparada à festa, à alegria da transgressão, à liberdade libidinal; resultado da interrupção momentânea da ação censora do ideal do eu. Ela corresponderia ao triunfo da coincidência temporária do eu com o ideal do eu, interrompendo a repressão e o gasto psíquico que ela exigia, com liberação de energia, convertida em afetos (FREUD, 1921/1975).

Para Abraham, o maníaco estaria arrebatado por suas pulsões orais, entregue a uma embriaguez de liberdade e grandeza, decorrentes do enfraquecimento da repressão. Melanie Klein trouxe a noção de “defesa maníaca” como uma negação da realidade psíquica, sem distinguir a negação repressiva e a negação forclusiva (SOLER, 2010).

Lacan (1974/2003) definiu a excitação maníaca como “o retorno no real daquilo que foi rechaçado de linguagem”. Portanto, o mesmo triunfo da instância negativa da linguagem pode tomar a forma do abatimento mortífero da melancolia ou da excitação maníaca. Porém, o próprio Lacan propôs uma distinção entre ambas no que se refere à função do objeto a (LACAN, 2005, p.364-365). Na mania, o que está em causa é a não-função do objeto a, ou seja, o sujeito não se apoia nesse objeto, ficando entregue à metonímia lúdica e sem limites da cadeia significante, bem exemplificada pelos fenômenos de fuga de ideias (FERRARI, 2006).

 


 

Referências
ABRAHAM, K. (1911). “Notas sobre as investigações e o tratamento psicoanalítico da psicose maníaco-depressiva e estados afins”, In: ______. Teoria psicanalítica da libido: sobre o caráter e o desenvolvimento da libido. Rio de Janeiro: Imago, 1970, p.32-50.
FERRARI, I. F. “Melancolia: de Freud a Lacan, a dor de existir”, Latin-American Journal of Fundamental Psychopathology on Line, vol.1, n.6, 2006, p. 105-115.
FREUD, S. (1895). “Los orígenes del psicoanalisis. Manuscrito G: Melancolia”, In: ______. Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1975, tomo IX, p. 3.503-3.508.
FREUD, S. (1917). “Duelo y melancolia”, In: ______. Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1975, tomo VI, p. 2.090-2.100.
FREUD, S. (1921). “Psicologia de las masas y analisis del yo”, In: ______. Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1975, tomo VII, p. 2.563-2.610.
FREUD, S. (1923). “El yo y el ello”, In: ______. Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1975, tomo VII, p. 2.701-2.728.
FREUD, S. (1927). El Humor, In: ______. Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1975, tomo VIII, p. 2.997-3.000.
LACAN, J. (1949). “O estádio do espelho como formador da função do eu”, In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998a, p. 96-103.
LACAN, J. (1962). “Kant com Sade”, In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998b, p.776-803.
LACAN, J. Seminário, livro X: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
LACAN, J. (1974). “Televisão”, In: ______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 508-543.
LACAN, J. (1957-1958). “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 537-590.
MATTOS, C. P. “Um tempo para a perda: articulação da função do objeto a”, Curinga, Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n.29, 2009, p. 59-62.
PERES, U. T. “Depressão e melancolia”, In: Psicanálise passo a passo 22. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
QUINET, A. “Fenômenos elementares e delírio na melancolia para Jules Séglas”, In: ______. Extravios do desejo: depressão e melancolia. Rio de Janeiro: Marca D’Água, 1999, p.15-84.
SANTIAGO, J. “A dor de existir melancólica”, Curinga, Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n.29, 2009, p.45-52.
SEGAL, H. “A posição depressiva”, In: ______. Introdução à obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago, 1975, p.80-94.
SOLER, C. Estudios sobre las psicosis. Buenos Aires: Manantial, 2010.
1 Sob orientação de Francisco Paes Barreto.

 


 

Adauto Clemente
Médico graduado pela UFJF, com residência em Psiquiatria pela UFMG e em Psiquiatria da Infância e Adolescência pelo CPP (atual CEPAI) – Fhemig. Doutorando em Saúde Coletiva pelo Centro de Pesquisas René Rachou da Fiocruz (bolsista da CAPES). E-mail: adautoclemente@yahoo.com.br