CRISTIANA MIRANDA RAMOS FERREIRA
Na tese Apresentação de pacientes: dispositivo e discursos, investiga-se a prática de eminentes mestres da apresentação: Charcot, Clérambault e Lacan. A partir da análise das diferenças e particularidades de cada perspectiva, a autora encontra elementos para responder à questão que se lhe apresentava como um paradoxo: “Como um dispositivo que é considerado pela psicanálise um importante instrumento de intervenção clínica, capaz de produzir importantes efeitos terapêuticos em um sujeito psicótico, pode ser, ao mesmo tempo, concebido como um instrumento de poder, no qual o paciente é publicamente exposto, sem dele retirar qualquer benefício?”
Sob a influência das concepções teóricas de Foucault, localiza-se a origem de uma posição fortemente contrária à prática da apresentação, considerada por ele como instrumento máximo de abuso do poder médico. Para sustentar esse ponto de vista, Foucault edificou um mito: elegeu Charcot, um neurologista, como a figura mais emblemática da prática psiquiátrica.
Por meio da análise das apresentações de Charcot, pode-se destacar a diferença entre a apresentação de pacientes realizada sob a perspectiva da tradição médica, centrada no corpo, e a desenvolvida conforme a tradição psiquiátrica, com foco na fala do paciente. Essa diferenciação permitiu destacar dois aspectos fundamentais para se construir uma posição crítica sobre o tema: 1. entender as consequências que essa distorção no status quo de Charcot acarretou sobre o imaginário negativo construído em torno da apresentação; 2. discernir que o termo “apresentação de pacientes” designa, de forma genérica, uma multiplicidade de práticas que se distinguem tanto em seu objeto quanto em seu objetivo, o que faz variarem tanto suas estratégias de intervenção, como os seus efeitos e resultados.
Considerar a diversidade de práticas conduziu a uma disjunção entre o que seria o “dispositivo” da apresentação e o “discurso” que o anima. Tomar os quatro discursos como instrumento para essa análise permitiu definir como dispositivo o seu aspecto estruturante, estático, que congrega três elementos distintos: paciente, público e entrevistador; e o discurso, seu aspecto dinâmico, que orienta a articulação entre os três elementos. Investigar a apresentação de pacientes, sob essa perspectiva, permitiu diferenciar o que é efeito do dispositivo propriamente dito, ponto comum em todas as apresentações, e o que é próprio a cada discurso, cujo efeito irá variar em função daquilo que, em cada um deles, opera como verdade.
Dessa forma, a pesquisa sobre a prática da apresentação de pacientes na psiquiatria, desde seu surgimento até a atualidade, possibilitou perceber como esse dispositivo foi sendo animado pelos diferentes discursos ao longo da história, tendo como pano de fundo a variação na articulação entre suas dimensões clínica e de ensino, assim como sua apropriação e uso pela psicanálise. Para proceder a essa análise, a prática da apresentação foi agrupada sob três dimensões diferentes, estabelecidas em função da importância dada à fala do paciente: 1) psiquiatria clássica, cujo caráter investigativo encontrava na fala do paciente o seu principal meio de investigação diagnóstica, assim como de constituição do saber psiquiátrico; 2) psiquiatria que se convencionou chamar de “biologicista”, caracterizada pelo abandono do método clínico de observação, em favor do pragmatismo terapêutico, cujo interesse, focalizado nos efeitos das intervenções no corpo, levou a um crescente desinteresse pela fala do paciente e pela precisão diagnóstica; 3) psicanálise, mais precisamente a abordagem lacaniana, caracterizada pela aposta radical na palavra como via para aceder ao sujeito do inconsciente.
Cada uma dessas perspectivas seria orientada prioritariamente por um dos discursos, o que, consequentemente, incide sobre sua prática de apresentação. Embora, em uma apresentação, o apresentador possa recorrer a mais de um dos discursos, toma-se como prevalente aquele sob a luz do qual os impasses se decidem.
Assim, na psiquiatria clássica, orientada pelo Discurso do Mestre, a apresentação de pacientes alcançou lugar de destaque enquanto dispositivo clínico, considerando tanto seus efeitos terapêuticos, quanto de esclarecimento diagnóstico, assim como uma função de ensino e pesquisa da psiquiatria. Já a psiquiatria biologicista, sustentada no Discurso Universitário, opera a partir de um saber prévio, o qual se aplica ao paciente. Nessa perspectiva, há um empobrecimento da clínica, que vai resultar em um empobrecimento da prática de apresentação, pois o desinteresse pela investigação e pela particularidade do caso implica fazer calar o paciente, uma vez que tudo que é subjetivo é visto como perturbador ao modelo da universalização. Essa é a forma de apresentação que faz jus às críticas de Foucault, na medida em que ela perde seu caráter clínico investigativo, para reduzir-se a um aparelho de exibição de fenômenos e sintomas. Quanto à psicanálise, orientada pelo Discurso do Analista, ao tomar o sujeito no lugar do Outro, possibilita-lhe bordejar, circunscrever o que lhe sucede, de forma a afastar o impossível de suportar a partir de um tratamento pela palavra (LEGUIL, 2004). Consideraram-se, ainda, os movimentos da reforma psiquiátrica, que, orientados pelo Discurso Histérico, condenaram a apresentação de pacientes, classificando-a como um desrespeito aos direitos do cidadão/paciente.
Analisar a apresentação de pacientes sob esse ponto de vista levou a um redimensionamento da questão em torno dessa prática. Afinal, não se trata de discutir se este é um dispositivo clínico ou didático, pois essas duas dimensões podem-se conjugar de diferentes maneiras. O que essa pesquisa permitiu ressaltar é que se trata essencialmente de um dispositivo de transmissão, na medida em que, para além de qualquer intenção, seja ela clínica, seja de ensino, o que o público pode testemunhar é uma operação discursiva que implica um certo fazer do entrevistador com o real colocado em cena pelo psicótico. E, ainda mais, como o dispositivo da apresentação favorece a presentificação do real de gozo, gozo que receberá de cada discurso um tratamento diferente, visto que cada discurso implica precisamente uma forma própria de operar com o real, a apresentação de pacientes, em última instância, revela os recursos e limites de cada discurso para lidar com o real em jogo na loucura.